Como já tenho afirmado afincadas vezes, a base paradigmática de toda e qualquer deformação postural centra-se na existência de lordoses, entendidas como encurtamentos da cadeia muscular posterior.
Como sabemos, a cadeia muscular posterior constitui-se de feixes de músculos e fáscias com um poder de encurtamento e uma tendência para a retracção sem paralelo no sistema muscular tónico do corpo. Aliás, segundo o paradigma do método Mézières, tudo, absolutamente tudo parte do encurtamento da cadeia muscular posterior. Todos os encurtamentos relativos a outras cadeias musculares, como por exemplo o encurtamento das cadeias cruzadas anteriores na hipercifose dorsal, advêm na transmutação do encurtamento da cadeia posterior para a anterior eventualmente mediada por meio da cadeia inspiratória (diafragma).
As cadeias musculares têm, portanto, de ser vistas como unidas entre si, numa sinergia indecomponível. Por exemplo, a musculatura mastigadora e a língua são pontos de comunicação da cadeia posterior para a cadeia anterior. Por outro lado, o diafragma está unido a todas as cadeias, possuindo um papel reforçado na estruturação de contraturas desses mesmos conjuntos musculares, das quais a lordose lombar é a mais exemplar.
Ora, sabemos, portanto, que, segundo a perspectiva anteriormente apresentada, o corpo tem apenas uma cadeia muscular, e essa cadeia é fundamentalmente posterior; é lá que tudo começa e que tudo termina. Daí que as novas tendências, em termos metodológicos, de se falar num conjunto multifacetado de cadeias musculares (Souchard, Busquet) ou de trilhos anatómicos (Rolf, Myers), apesar de parecer inovadora, peca por trair a noção de unidade global do método original de Mézières.
Devemos, então, falar de uma só cadeia muscular, de um só músculo total do corpo. Claro que tal não significa que não possamos decompor analiticamente essa mesma cadeia. Aliás, a própria cadeia muscular posterior propriamente dita, conhecida como grande linha mestra posterior na linguagem de Souchard, cadeia estática posterior na linguagem de Busquet (lembremo-nos que para este autor, só há uma cadeia estática, que é a posterior; todas as outras são de natureza dinâmica) e linha superficial posterior para Myers (ou seja, devemos atender à existência de outros músculos ainda mais profundos, como o transverso abdominal e o multifidus), pode ser subdividida. Assim sendo, à semelhança do que fez Leopold Busquet, a cadeia posterior pode ser dividida em cadeia posterior superior (com limite inferior ao nível da bacia) e cadeia posterior inferior.
Da divisão anteriormente anunciada, advêm questões de grande relevância para a compreensão das deformidades e o próprio treino da flexibilidade.
Acontece que, segundo inúmeras observações realizadas em ambiente clínico e desportivo, tem havido uma tendência para se considerar que existe um equilíbrio sinérgico muito especial entre as duas partes (superior e inferior) da cadeia muscular posterior. Este equilíbrio é muito semelhante ao tipo de equilíbrio existente entre grupo muscular agonista com tendência ao encurtamento e grupo muscular antagonista (ao anterior) com tendência ao alongamento.
Assim sendo, passemos a analisar a questão anteriormente exposta. Reparemos na grande maioria dos atletas. E reparemos especialmente nos elementos do sexo masculino. A grande tendência destes indivíduos é de possuírem uma certa tendência para a retracção dos ísquiotibiais e tricípete sural. Porém, não é muito comum possuírem lordose lombar aumentada. Eventualmente, poderão ter alguma cifose, mas esta pode ter múltiplas origens... Por outro lado, olhemos para as ginastas e a grande maioria das professoras de fitness. É muito comum vermos estas atletas passearem o seu corpo como se fossem modelos, exibindo a sua coluna profundamente “direita” ou “recta”. “Que boa postura que tenho!”, pensará esta atleta e todos os que para ela olham; e isto pelo simples facto de permanecer “direita”. Pena é que tal endireitamento signifique tudo menos uma boa postura, pois o que existe verdadeiramente é uma lordose excessiva a nível lombar e também a nível dorsal (provocando rectificação desta parte da coluna, assim como da cervical por compensação). Ora, minhas caras professoras de fitness, as mesmas que conseguem perfeitamente levar as mãos aos pés com as pernas esticadas e ultrapassar esse nível, saibam vocês que também vós sois retraídas. Estas atletas possuem retracção da parte superior da cadeia muscular posterior. E os primeiros de que falei, esses possuem uma retracção da parte inferior...
E é sempre assim que as coisas tendem a acontecer. Uma retracção da parte superior da cadeia muscular posterior tende a libertar a parte inferior da cadeia e vice-versa. Grande parte dos que não conseguem chegar com as mãos aos pés no teste Sit and Reach possuem uma retracção dos ísquiotibiais e, eventualmente, da banda íliotibial. Estas estruturas, quando retraídas, roubam o espaço de manobra funcional. Por outro lado, as retracções ao nível do ráquis roubam mobilidade à coluna, dificultando, por exemplo, a descida no Shoulder Bridge do Pilates, mas raramente impedem a chegada das mãos aos pés, sendo que este trajecto é feito fundamentalmente à custa da distensão dos ísquiotibiais.
Há, ainda, a somar o facto de que o alongamento da musculatura da coluna produz muito menos dor do que o alongamento dos ísquiotibiais, o que é explicado pela natureza da musculatura (a cadeia muscular posterior superior é constituída por uma miríade de pequenos músculos paravertebrais, sendo que o seu alongamento global, por maior que seja, produzirá pouco alongamento a nível muscular individual; já a cadeia muscular posterior inferior é constituída por muito menos músculos, sofrendo cada um deles proporcionalmente uma grande distensão aquando do alongamento); isto faz com que qualquer alongamento global da cadeia posterior, mesmo em pessoas com grande flexibilidade dos ísquiotibiais e lordose lombar/dorsal, seja sentida quase sempre na região popliteia.
Percebemos, então, que o comprimento excessivo da parte superior da cadeia muscular posterior tende a ser compensado com o encurtamento da parte inferior e vice-versa. Isto também poderá significar que, em casos muito particulares, a pessoa criou outro género de compensação. Por exemplo, aquando da minha formação em Mézières, o meu mestre Jean-Marie Drouard viu e mostrou uma doente que sentia dores a nível cervical e dificuldades de deglutição, sendo que, de resto, parecia ser completamente flexível (aliás, a doente era bailarina). Rapidamente, o formador percebeu que a retracção se encontrava ao nível da língua; no tratamento trabalhou a respiração com enfoque na expiração, ao mesmo tempo que puxava pela língua da bailarina como se a quisesse arrancar suavemente. O efeito foi espantoso, principalmente na fala da doente. Percebemos também qual a causa deste encurtamento tão específico: uma vida inteira a forçar o corpo ao alongamento rápido e intensivo.
Ora, eis que chegamos a um ponto fundamental da nossa discussão. Se é importante trabalhar a flexibilidade da cadeia posterior, será que o treino de flexibilidade não poderá provocar determinadas deformidades, se mal orientado? A resposta é Sim! O trabalho de flexibilidade deve ser realizado lentamente e sem tensão excessiva, ao longo do tempo, e sempre de forma global, incluindo toda uma cadeia. Se tal não acontecer, ao se realizar o alongamento (analítico), estamos apenas a transportar a retracção de um para outro lado da cadeia muscular. Daí que não seja estranho que várias pessoas verifiquem um aumento da lordose lombar ou aparecimento de uma rectificação dorsal depois de meses a trabalharem a flexibilidade dos ísquiotibiais. As pessoas associam esta transformação à melhoria postural, mas eis que o mais importante ficou por compreender: não houve verdadeiramente qualquer aumento de flexibilidade, houve apenas um transporte de um encurtamento de um para outro lado da cadeia muscular.
Aumentos significativos e verdadeiros da flexibilidade muscular são sempre muito difíceis de se obter, pois o corpo tem uma tendência enorme para se proteger dos estados de tensão. O que devemos fazer então? Devemos alongar sempre em “campo fechado” (Souchard), ou seja, em cadeia muscular, fechando os seus extremos, mantendo a respiração plena com enfoque na expiração, e uma atenção sempre presente relativamente ao aparecimento de compensações.
Por outro lado, conseguindo alongar completamente a cadeia posterior, é possível que a tal “compensação lordótica” viaje para o diafragma ou a cadeia anterior. Como o contrário dificilmente se verifica, então é possível conceber o plano mais eficaz de stretching global, o qual consiste no alongamento das cadeias pela seguinte ordem: cadeia inspiratória (o alongamento diafragmático tem de estar sempre presente) »» cadeia anterior (consequência) »» cadeia posterior (parte superior »» parte inferior).
Para finalizar, não devemos deixar de dizer que este género de compensações e/ou equilíbrio está presente, de uma forma mais ou menos idiossincrática, em todas as pessoas. Passo agora a uma citação da obra de Bertherat “Le corps a ses raisons”:
«Para corrigir as nossas fealdades importa, pois, corrigir os nossos pontos rígidos.
Ainda céptico, um dos estagiários julgou ter encontrado uma falha na teoria.
- Tudo isso é muito interessante, mas como explica o problema dos indivíduos demasiado flexíveis. A hiperlassidão existe, como sabe.
Françoise Mézières exibiu um sorriso malicioso.
- A hiperlassidão, meu amigo, só existe nos dicionários. Na vida real, nunca houve uma pessoa excessivamente flexível. - E, antes que o estagiário pudesse protestar, acrescentou: - Não tardará a ter a prova disso.
Com efeito, poucas horas depois, ela recebia diante de nós uma rapariga de quinze anos, que se fazia acompanhar do seguinte diagnóstico médico: hiperlassidão, com fragilidade de ligamentos.
E, rindo, a moça mostrou-nos os cotovelos, que giravam de forma preocupante. De pé, observada de perfil, as pernas pareciam igualmente ter deslizado nas suas articulações. Os joelhos eram em recurvatum, ou seja, as rótulas pareciam ter recuado, impelindo o joelho para trás.
Françoise Mézières indicou-lhe que se inclinasse para a frente e ela, aparentemente com a maior facilidade, pousou as palmas das mãos estendidas no chão. Até quase podia pousar os cotovelos. Todavia, a rotação interna dos joelhos era impressionante: as rótulas, em vez de se voltarem para a frente, convergiam.
Em seguida, a rapariga deitou-se de costas e Françoise Mézières, auxiliada por dois estagiários empenhou-se em alongar os músculos posteriores, tornando-se necessário um esforço pronunciado para obter uma desrotação dos joelhos. Os adutores estavam encolhidos e duros como cabos de aço. “Detesto pôr-me em fato de banho por causa deste vazio entre as coxas”, confessou a moça.
Quando, por fim, se conseguiu o alongamento dos músculos posteriores e, em resultado disso, a desrotação dos joelhos, verificámos que lhe era impossível alongar pé. A rigidez dos músculos posteriores da perna não o permitia. Deparava-se-nos, por conseguinte, rigidez após rigidez. Onde se encontrava o anunciado excesso de flexibilidade?»