domingo, fevereiro 03, 2013

O alinhamento postural/articular como fator de previsão da saúde articular: Modelo reeducativo de intervenção em Fisioterapia

Partindo do pressuposto fundamental da Teoria das Cadeias Musculares1, paradigma de Fisioterapia reeducativa, de que é a “forma que regula a função” e de que a biomecânica é função das características posturais e de alinhamento articular, é racional presumir que o alinhamento articular é fator condicionante do desenvolvimento de patologia degenerativa (por exemplo, segundo a meta-análise de Tanamas et al.2, o alinhamento da articulação do joelho em valgo ou em varo, constitui variável independente para o desenvolvimento de artrose da articulação do joelho). O facto tem implicações determinantes para a prática da Fisioterapia, com uma intervenção do tipo “radical” (ou causativa) a ter de incluir o manuseamento das características de alinhamento articular, sem o qual, na perspetiva de Coelho3, o movimento articular poderá significar um nível de atrito aumentado e potencialmente implicativo de processos inflamatórios, e o treino de força muscular poderá implicar um aumento no conjunto prévio de desequilíbrios musculares.
Assim sendo, a lógica da Fisioterapia deverá ser essencialmente global, requerente de um trabalho, que, inclusivo dos métodos de Reeducação Postural3, 4, 5, sugere o seguinte esquema3: Relaxamento/Alongamento » Mobilidade acessória (Terapia Manual) » Mobilidade grosseira/funcional » Força (ou Resistência muscular), com o alongamento miofascial associado às terapias manipulativas a melhorar o alinhamento postural/articular e a anteceder o exercício dinâmico.
Seguindo a lógica prévia, Bernard Bricot6 sugere um conjunto de influências posturais ascendentes com origem no pé: pé varo = joelho varo, rotação externa da anca, inclinação posterior da bacia e diminuição das curvaturas vertebrais; pé valgo = joelho valgo, rotação interna da anca, inclinação anterior da bacia e aumento das curvaturas vertebrais; o que sugere uma intervenção reeducativa com igual origem no pé, seja a nível miofascial (ex. alongamento da fáscia plantar do pé), seja a nível neurológico (ex. utilização de palmilhas de integração sensitiva 6).
Por outro lado, a influência miofascial tende a ser advogada pela Teoria das Cadeias Musculares, assumindo que o joelho valgo (que é uma deformidade que aproxima as superfícies externas da articulação, dando a impressão de a rótula se encontrar internalizada) se associa frequentemente a um encurtamento dos adutores pubianos (músculos internos da coxa) e/ou da banda íleo-tibial (músculos externos da coxa) e o joelho varo (contrário ao do descrito no joelho valgo) se associa frequentemente ao encurtamento da banda íleo-tibial, com a intervenção a requerer uma prévia correção destes alinhamentos com a potencialidade da reunião de alongamento simultâneo à correção da “deformidade” por Terapia Manual.
No caso das curvaturas vertebrais, a Teoria das Cadeias Musculares concebe, por exemplo, que uma hiperlordose ou aumento da curvatura lombar (possíveis causas: encurtamento da musculatura lombar e/ou do diafragma e/ou do psoas) tende a estar associada a uma hiperlordose ou aumento da curvatura cervical, com possíveis consequências degenerativas para as zonas de transição da coluna (a nível inferior, pode implicar o desgaste da articulação da anca), com a cifose ou curvatura dorsal aumentada (e a sugerir um aumento do risco de conflito sub-acromial e/ou degeneração da articulação do ombro) por mera aparência ou por associação a outros fatores (como por exemplo o encurtamento das cadeias musculares ântero-internas, particularmente o músculo pequeno peitoral), o que explica o tripé de tratamento de Mézières de deslordose da coluna + desrotação dos membros + expiração (pelo facto de as deformidades significarem, pelo menos teoricamente, um misto sinérgico de aumento das curvaturas da coluna, rotação interna dos membros e bloqueio diafragmático em inspiração) 1, 3, 4, 5. Se bem que diferentes métodos de Reeducação Postural impliquem diferentes visões interventivas 3, com uma lógica de trabalho mais “ascendente” ou mais “descendente” 7, há também a possibilidade de um trabalho feito da periferia para a zona sintomática, com o exemplo de uma problemática cervical implicar um trabalho prévio no quadrante inferior + deslordose lombar, só depois seguido da mobilidade dorsal e da intervenção cervical propriamente dita, ou de uma diminuição das curvaturas vertebrais cervical e lombar a implicar o treino de posturas de deslordose dorsal.
Apesar de ser encarado muitas vezes como pré-científico, o modelo reeducativo pode ser visto como racional, a conceber uma intervenção em Fisioterapia Reumatológica também ela de uma racionalidade que transpõe a lógica dominantemente observada (que tende a corresponder sobretudo ao mero tratamento dos sintomas).
Por outro lado, não deve entender-se, a partir do que fica dito, que se presume que uma intervenção deve seguir regras prescritas, até porque, mais do que advogar uma intervenção do tipo “Prática Baseada na Evidência”, prefiro bastante mais uma Prática Baseada no Raciocínio Clínico, com este último a ser tão moldável quanto a condição igualmente mutável e continuamente metamórfica da unidade fenomenológica e irrepetível do doente.
Dentro do mesmo espírito fenomenológico, devemos também considerar que a idiossincrasia postural e de alinhamento articular passa por desempenhar o papel de preditivo tanto da saúde articular quanto do rendimento do atleta, o que, se, de algum modo, nos leva a pensar que há corpos naturalmente mais “preparados” para uma prática física com menos restrições, também nos leva a assumir que o trabalho de alongamento é, sobretudo para os atletas que não possuem corpos tão “posturalmente preparados”, condicionante de uma prática com menos riscos de desgaste articular (em última análise, diferentes posturas poderiam significar diferentes “prescrições” desportivas e/ou de atividade física, o que não implica que haja atividades normalmente mais ou menos agressivas do que outras).
                                       
Referências bibliográficas

1.      Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert, 1949.
2.      Tanamas S, Hanna F, Cicuttini F, Wluka A, Berry P, Urquhart D. Does knee malalignment increase the risk of development and progression of knee osteoarthritis? A systematic review. Arthritis & Rheumatism (Arthritis Care & Research) 2009;61;4:459-467.
3.      Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Editora Contra-Margem, 2008.
4.      Coelho L. Mézières’ method and muscular chains’ theory: From postural re-education’s physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológica Portuguesa 2010;35:273-274.
5.      Nisand M. La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris: Éditions Josette Lyon, 2006.
6.      Bricot B. Posturologia (3ª edição). São Paulo: Ícone Editora, 2004 (edição brasileira).
7.      Bienfait M. Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico. São Paulo: Summus editora, 1995.

(Publicado na revista 'Fisio' da Associação Portuguesa de Fisioterapeutas)

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