sábado, abril 24, 2010

Falsificacionismo ingénuo ou a epistemologia de Lakatos

Depois de ter escrito e publicado artigos sobre Popper e Kuhn, os dois nomes mais sonantes do mundo da teoria do conhecimento, urge laborar em algumas “evoluções”, pela mão específica de Imre Lakatos. Pois, na realidade, no seio de um certo acometimento do pensamento, concluo, de vez, que certos argumentos de Popper relativos à importância da “falsificação” como critério de demarcação e como requisito de crítica ao relativismo/historicismo não me convencem verdadeiramente; e, assim, a emergência do pós-modernismo torna-se uma realidade crua, um sentido fatal e inexaurível.
É possível que a realidade do pós-modernismo seja virtualmente falsa, pela virtualidade das possibilidades de controlo de certos factores consideravelmente difíceis de prever e controlar. Mas parece que o relativismo está mais próximo da realidade pragmática das coisas que o empirismo essencialista, pelo menos no que respeita ao funcionamento das ciências sociais. E não tenho dúvidas de que o critério do falsificacionismo não tem utilidade no funcionamento das ciências sociais, sendo estas totalmente probabilísticas.
Assim, o facto de certos acontecimentos não provarem de todo a emergência do princípio de observação mézièrista não implica a falsidade do princípio, no sentido em que a excepção não implica o abandono de uma certa propensão probabilística.
Conheço os argumentos de Popper relativos às críticas dos relativistas. Mas não sei se me convencem...
No contexto desta discussão, o nome de Lakatos é fundamental, no sentido em que este analista da obra de Popper fala da falsidade da evolução da ciência por “tentativa e erro” (tal como defendido por Popper), assim como se refere à ingenuidade de um critério de “falsificação” como princípio evolutivo do progresso das ciências. Este falsificacionismo “ingénuo” ou “dogmático”, defendido por Lakatos nos seus ensaios, aponta a epistemologia dos paradigmas de Kuhn como estando mais próxima da Verdade real ou pragmática das coisas. É que na realidade é assim que a ciência progride verdadeiramente: por jogos de resistência, apagões de teorias contraditórias, negações de falsificações, tentativas de inclusão das anomalias relativas à teoria, e, finalmente, uma rendição relativa a um novo paradigma no caso do período revolucionário ter sido bem sucedido.
O falsificacionismo continua a ser importante... mas no domínio das ciências exactas. Por outro lado, mesmo nestas, a evolução da ciência é feita por um processo que não tem nada a ver com o Ideal evolucionista propugnado por Popper. É que a realidade pragmática das coisas tem demonstrado que a dinâmica dos paradigmas e das “epistemis” (Foucault) domina a evolução da ciência, sendo que a incerteza e o relativismo são realidades impossíveis de apagar.
A partir daqui, resta apenas a tentativa de ter tudo em conta, de sermos necessariamente razoáveis, e de evitar ao máximo a fuga ao meio-termo. Nem Popper é Lei, nem o relativismo é necessariamente a resposta única das coisas.

Publicado em 'As Artes Entre As Letras', dia 28 de Julho de 2010

segunda-feira, abril 19, 2010

Bullying: visão de uma vítima

Há alguns anos atrás, quando descobri pela primeira vez o significado do termo “bullying”, estava longe de pensar que o mesmo “fenómeno” viesse a tornar-se uma moda, assaz mais um fenómeno conceptual das “indústrias culturais”. Nessa mesma altura em que descobri o conceito de “bullying”, senti-me feliz pelo facto de existir um nome para aquilo que eu próprio tinha vivido durante anos a fio.
Lembro-me que, quando ingressei numa nova escola por volta dos dez anos de idade, não levaria muito tempo para que os gozos e as ameaças se tornassem uma constante na minha vida. Acusavam-me de ser “menina”, de ser mariquinhas. E eu sofria por não me rever nas acusações. E pelo menos metade da turma a que pertencia criou o hábito de me gozar e assediar diariamente, horas e horas a fio. Esse gozo durou todos os anos do meu percurso naquela escola e naquela turma. E, à medida que os anos iam passando, também a minha pessoa se foi modificando. Anos e anos de gozo levaram-me ao extremo da máxima auto-depreciação; perdi os poucos amigos que tinha, a minha personalidade tornou-se sombria e o meu comportamento intelectualizado, o meu corpo era desvalorizado e até a minha identidade sexual se achou totalmente baralhada. Lembro-me que fiquei incapaz de ir à casa de banho em conjunto com outros rapazes, pois as acusações constantes dos mesmos faziam com que não tivesse auto-estima suficiente para partilhar um mesmo espaço de forma “masculina” (ainda hoje, mais de quinze anos depois, sou incapaz de urinar no urinol masculino de casas de banho públicas).
Durante todos os anos que aquele gozo durou, e todos os anos seguintes, o meu medo dos rapazes e das relações com as raparigas, viria a minar a minha vivência adolescente e juvenil, tornando-me algo anti-social e preconceituoso relativamente às pessoas (quando não intolerante).
Lembro-me que o bullying a que fui sujeito não fez com que as minhas notas baixassem. Antes pelo contrário! Intelectualizei-me, refugiei-me nos livros e arranjei uma forma um tanto ou quanto artificial de me expressar.
E durante todo o processo nunca contei nada aos pais. Refugiei-me dentro de mim mesmo, no meu mundo interior... e também nos meus livros.
Nunca tentei mudar de escola, pois algo me dizia que havia algo em mim que iria acompanhar-me também na nova escola. Seria alvo de novos gozos... E tal aconteceu de facto quando fui para a escola secundária. Ao perceber que havia algo implícito em mim que me tornava vítima de bullying nos diversos contextos (escolares ou não escolares) da minha vida, percebi que o gozo e o assédio fariam parte constante da minha vida. Agora, penso, mais do que nunca, que existe, de facto, um “perfil de vítima”...
E, assim como existe um perfil de vítima, também existe, provavelmente um perfil de vitimizador. Não sei se estes perfis estão de algum modo dependentes dos estratos sociais ou das condições de vida. No meu caso, sei que foram certos maneirismos, associados a um certo tipo de personalidade, que precipitaram todas as formas de assédio. Mas, de uma coisa estou certo: é tão real o bullying sofrido modificar toda a nossa vida quanto é real que o bullying não pode ser resolvido pela mera mudança do estatuto ou comportamento do professor.
É claro que a justiça implícita no “não gozar” acarreta que não devamos tentar modificar o perfil da vítima (ao contrário do que o meu ex-psicanalista diria). Mas também é certo que o perfil do vitimizador é tal que não existe qualquer vantagem em aumentar os níveis de controlo dos “bullers”. Qualquer criança ou adolescente saberá que o controlo do professor é visto como “uma mamã que protege o pequeno filho”. Qualquer criança ou adolescente sabe que os castigos ou chamativos de atenção aumentam ainda mais os gozos e os assédios. Lembro-me que, sempre que um professor repudiava um dos meus vitimizadores, logo que o professor virava a cara, esse mesmo “valentão” tudo fazia para se vingar do potencial “queixinhas”. Daí desconfiar muito da forma como as “autoridades” estão a conceber o fenómeno de bullying.
Claro que o perfil e o comportamento dos professores, pais e educadores também contam. Não vá outra criança apanhar um daqueles professores de educação física que é ele mesmo um vitimizador (as aulas de educação física da minha adolescência ainda hoje me provocam um certo ressentimento relativamente a todas as formas de treino físico)... Mas, confesso que tenho dúvidas de que o fenómeno do bullying possa ser travado pela mera imposição de uma autoridade. Talvez fosse mais vantajoso promover a (re)construção das relações entre colegas e entre professores-alunos, assim como promover o equilíbrio do Sistema que comporta o conjunto dos alunos, pais, professores e todos os agentes sociais com estes envolvidos. E, em última análise, é toda uma cultura, toda uma sociedade que tem de mudar. Para que o preconceito e a intolerância possam medrar no seio de uma sociedade “aberta” (Karl Popper)!...