segunda-feira, abril 19, 2010

Bullying: visão de uma vítima

Há alguns anos atrás, quando descobri pela primeira vez o significado do termo “bullying”, estava longe de pensar que o mesmo “fenómeno” viesse a tornar-se uma moda, assaz mais um fenómeno conceptual das “indústrias culturais”. Nessa mesma altura em que descobri o conceito de “bullying”, senti-me feliz pelo facto de existir um nome para aquilo que eu próprio tinha vivido durante anos a fio.
Lembro-me que, quando ingressei numa nova escola por volta dos dez anos de idade, não levaria muito tempo para que os gozos e as ameaças se tornassem uma constante na minha vida. Acusavam-me de ser “menina”, de ser mariquinhas. E eu sofria por não me rever nas acusações. E pelo menos metade da turma a que pertencia criou o hábito de me gozar e assediar diariamente, horas e horas a fio. Esse gozo durou todos os anos do meu percurso naquela escola e naquela turma. E, à medida que os anos iam passando, também a minha pessoa se foi modificando. Anos e anos de gozo levaram-me ao extremo da máxima auto-depreciação; perdi os poucos amigos que tinha, a minha personalidade tornou-se sombria e o meu comportamento intelectualizado, o meu corpo era desvalorizado e até a minha identidade sexual se achou totalmente baralhada. Lembro-me que fiquei incapaz de ir à casa de banho em conjunto com outros rapazes, pois as acusações constantes dos mesmos faziam com que não tivesse auto-estima suficiente para partilhar um mesmo espaço de forma “masculina” (ainda hoje, mais de quinze anos depois, sou incapaz de urinar no urinol masculino de casas de banho públicas).
Durante todos os anos que aquele gozo durou, e todos os anos seguintes, o meu medo dos rapazes e das relações com as raparigas, viria a minar a minha vivência adolescente e juvenil, tornando-me algo anti-social e preconceituoso relativamente às pessoas (quando não intolerante).
Lembro-me que o bullying a que fui sujeito não fez com que as minhas notas baixassem. Antes pelo contrário! Intelectualizei-me, refugiei-me nos livros e arranjei uma forma um tanto ou quanto artificial de me expressar.
E durante todo o processo nunca contei nada aos pais. Refugiei-me dentro de mim mesmo, no meu mundo interior... e também nos meus livros.
Nunca tentei mudar de escola, pois algo me dizia que havia algo em mim que iria acompanhar-me também na nova escola. Seria alvo de novos gozos... E tal aconteceu de facto quando fui para a escola secundária. Ao perceber que havia algo implícito em mim que me tornava vítima de bullying nos diversos contextos (escolares ou não escolares) da minha vida, percebi que o gozo e o assédio fariam parte constante da minha vida. Agora, penso, mais do que nunca, que existe, de facto, um “perfil de vítima”...
E, assim como existe um perfil de vítima, também existe, provavelmente um perfil de vitimizador. Não sei se estes perfis estão de algum modo dependentes dos estratos sociais ou das condições de vida. No meu caso, sei que foram certos maneirismos, associados a um certo tipo de personalidade, que precipitaram todas as formas de assédio. Mas, de uma coisa estou certo: é tão real o bullying sofrido modificar toda a nossa vida quanto é real que o bullying não pode ser resolvido pela mera mudança do estatuto ou comportamento do professor.
É claro que a justiça implícita no “não gozar” acarreta que não devamos tentar modificar o perfil da vítima (ao contrário do que o meu ex-psicanalista diria). Mas também é certo que o perfil do vitimizador é tal que não existe qualquer vantagem em aumentar os níveis de controlo dos “bullers”. Qualquer criança ou adolescente saberá que o controlo do professor é visto como “uma mamã que protege o pequeno filho”. Qualquer criança ou adolescente sabe que os castigos ou chamativos de atenção aumentam ainda mais os gozos e os assédios. Lembro-me que, sempre que um professor repudiava um dos meus vitimizadores, logo que o professor virava a cara, esse mesmo “valentão” tudo fazia para se vingar do potencial “queixinhas”. Daí desconfiar muito da forma como as “autoridades” estão a conceber o fenómeno de bullying.
Claro que o perfil e o comportamento dos professores, pais e educadores também contam. Não vá outra criança apanhar um daqueles professores de educação física que é ele mesmo um vitimizador (as aulas de educação física da minha adolescência ainda hoje me provocam um certo ressentimento relativamente a todas as formas de treino físico)... Mas, confesso que tenho dúvidas de que o fenómeno do bullying possa ser travado pela mera imposição de uma autoridade. Talvez fosse mais vantajoso promover a (re)construção das relações entre colegas e entre professores-alunos, assim como promover o equilíbrio do Sistema que comporta o conjunto dos alunos, pais, professores e todos os agentes sociais com estes envolvidos. E, em última análise, é toda uma cultura, toda uma sociedade que tem de mudar. Para que o preconceito e a intolerância possam medrar no seio de uma sociedade “aberta” (Karl Popper)!...

4 comentários:

Anónimo disse...

Concordo plenamente com o seu ponto de vista. Pensar a sério no bullying dá muito trabalho; é preferível o recurso à velha estratégia da autoridade para acalmar rapidamente as ansiedades de todos. Deixe-me também dizer que admiro muito a sua capacidade de se expor (algo tão humano e que já vai sendo tão raro nos nossos dias) e de assumir posições frequentemente inaceitáveis pela maioria. Obrigado por ser como é.
Alexandra

o vizinho do blog ao lado... disse...

Ao ler o seu post senti que passamos pelos mesmos problemas na infância e principalmente na adolescência, os mesmos “tipos de agressão”, tudo o que se passou consigo passou-se da mesma forma comigo. Hoje com 26 anos ainda tenho esses fantasmas que me perseguem.

o vizinho do blog ao lado... disse...

Também sou fisioterapeuta.

Hugo Machado disse...

Olá Luis Coelho. Estou a fazer um trabalho sobre o Bullying e caí aqui no seu blogue. E ao ler, vi-me descrito em todas as suas palavras, e entendi uma a uma, e o seu significado que, lembrava uma descrição por mim feita.
A única diferença entre os "nossos textos auto-descritivos" é a de que, eu era chamado de "menina" e "maricas", porque realmente brincava só com as meninas (identidade instintiva), e não me relacionava com os rapazes. E, claro, a minha identidade sexual da altura, veio revelar-se na minha homossexualidade, mais tarde descoberta em toda a sua acepção. Tudo o resto, é igual entre nós, desde as humilhações, angustia, tristezas, depressões, pensamentos de suícidio, a não partilha de espaço com pessoas do mesmo sexo, casas de banho, inclusive.
Da auto-estima nem se fala, e a dependência de ansioliticos e anti-depressivos para me manter estável, para me manter vivo, foram e são, essênciais para me arrastar até onde conseguir.
Quem sabe a felicidade ainda me espera ao virar da esquina, aliás, nos possa esperar...
Um abraço, a minha solidariedade e compreenção, bem como, o desejo de uma melhor sorte face à minha.
Hugo Machado