quarta-feira, outubro 24, 2012

O lugar do «Corpo vs. Espírito» na eterna dialética «Emoção vs. Razão»

Num plano inicial, exclusivo de minuciosidades técnicas relativas aos dados provenientes da neuropsicologia cognitiva, não é possível conceber – malgrado o desejo de muitos partidários de “espiritualidades terapêuticas” – uma grande compatibilidade entre o “corpo psíquico” – expressão que pretendo representativa daquela parte do psiquismo de que se ocupa o estudo dominante da Psicologia e da Psicanálise – e a Espiritualidade (tal como é entendida pela Sabedoria Universal). Tal facto perturba muitas consciências que pretendem encontrar na “Espiritualidade” uma solução “salvífica” para problemáticas interiores (ou até mesmo exotéricas), assim como abala certas considerações relativas ao lugar da Razão no mundo moderno em que vivemos e agimos.
Atendendo à Hierarquia dos Modos de Conhecimento de Platão (“esquema” que, a meu ver, decalca com muita precisão a Realidade cognitiva do ser-humano), não podemos deixar de conceber que o corpo se pretende sobretudo ao nível da Dóxa, um nível de “dignidade ontológica” inferior ao da Epistéme, o que pressupõe que o nível a que atuam grande parte das terapêuticas psico-corporais (incluindo a mais séria Psicanálise) ainda tem pouco a ver com a Racionalidade (mesmo que, num plano de conhecimento neurobiológico recente, possamos conceber a proximidade da Racionalidade relativamente ao corpo e ao sentir). Ora, acontece que a Espiritualidade, no sentido que a antiga Sabedoria Universal sempre lhe atribuiu, é qualquer coisa que se inicia principalmente no nível mais elevado da Epistéme, correspondente a um tipo de Razão contemplativa (Noésis) que pressupõe, de algum modo, a superação do “sortilégio carnal e exotérico”, mesmo que o caminho para esse nível elevado de Consciência e Liberdade pressuponha uma relação dialética (eventualmente temporária) com a entidade corpórea. Isto significa, portanto, que o “Espírito” depreende um alto nível de Racionalidade, superior inclusive ao tipo mais conhecido e “popular” de racionalidade científica (correspondente ao nível mais baixo de Epistéme, a Diánoia), no qual o mundo tecnológico e capitalista se encontra flagrantemente imergido.
Isto significa, por um lado, que a verdadeira Espiritualidade tem pouco a ver com esse mundo fortemente mercantilizado e mistificado de terapêuticas psico-corporais, as quais, não obstante o valor holístico revisto na forma sintética como compreendem a relação corpo-mente, não têm por costume propugnar suficientemente a entrada no nível mais elevado de Racionalidade, que é apanágio do encontro “iniciático” (ou pré-iniciático) do homem com o Divino (mesmo que se suponha que este “Divino” exista dentro do próprio homem e enquanto sua criação abstrata); podem, por um lado, facilitar o processo de “sofrimento” e “consciencialização” que é condição necessária ao “crescimento espiritual” e ao trepar da hierarquia platónica (isto ocorre quando se exerce uma terapêutica verdadeiramente holística e que, em última análise, permita um certo tipo de gnose, coisa vivificável exemplificativamente na meditação), mas o que acontece muitas vezes é que essas mesmas terapias acabam por servir como meros paliativos e/ou placebos, que mais rapidamente atuam como ‘fatores’ de “bem-estar” e como anestesiadores da consciência.
Neste contexto, a Psicanálise talvez possua um lugar especial nessa capacidade de Gnose necessária ao crescimento espiritual, mas ainda assim correntemente se verifica que a Terapia Psicodinâmica tende muitas vezes para o exercício de motivação ao exotérico e mundano, entendendo aquilo que compreendemos como verdadeira Espiritualidade como uma mera “racionalização” defensiva, eventualmente “patológica”. Daí que defenda a Psicanálise se concebida como exercício dialético corpo-mente que não obste à racionalização, enquanto estratégia eventualmente temporária de acesso aos níveis mais elevados de racionalidade, mas nunca se concebida como estratégia de gestão das emoções capaz de eternizar o posicionamento do sujeito nos níveis mais baixos de “racionalidade”, que o mesmo seria perpetuar o lugar do ser-humano num “não crescimento” – correspondente , em termos esotéricos, ao “eterno retorno” carnal do homem nas sucessivas Eras de vivência (reencarnações) –, numa imutável resistência exotérica de acesso do homem aos níveis mais próximos do Divino.
Ao propugnar a gestão dos processos psico-corporais, a Psicanálise pressupõe, de facto, que o homem se deve manter sempre no seu nível mais Ego-maníaco, adiando perpetuamente o encontro do Eu com o Não-Eu (com o Todo Universal). E aí mantém-se a Psicanálise – à semelhança das diversas Terapias Psico-corporais – numa relação de conluio com a Eticidade egoísta e com um tipo de Liberdade dita “individualista”, o que, mesmo concebendo o resultante de um qualquer tipo de Ética relacional ou comportamento (aparentemente) altruísta, jamais poderão ser elididos o óbvio interesseirismo e o evidente egoísmo dos comportamentos em questão. Pois que é um facto que, ao nível do Eu, ao nível do corpo, tudo é Egoísmo, mesmo o comportamento aparentemente mais altruísta. O altruísmo verdadeiramente desinteressado e desprovido de “ansiedades interiores” só existe ao nível do Todo Universal, num nível em que as grilhetas do corpo e daquele “Caos interior necessário para parir uma estrela que dança” de que falava Nietzsche já tenham sido superados e vencidos. Portanto, a Ética é necessariamente racional, restando para o campo das emoções a possibilidade de surgirem emoções positivas e aparentemente éticas (porque socialmente adaptativas ou meramente bem-vistas), com esta Via (a emocional) a corresponder, na minha perspetiva, a um caminho tenebroso e pouco confiável (para além de, como já dissemos, obviamente interesseiro). É, de facto, um caminho de “prazer”, mas que possui – ali muito por perto – o outro lado da moeda – o “desprazer”, com isto a significar que, mesmo parecendo o caminho mais fácil e natural (porque respeitador da natureza instintiva), o mundo do Corpo constitui uma “escolha” tremendamente obtusa e traiçoeira.
Facilmente se depreende que este mesmo “caminho do corpo” é naturalmente temporal e dialético, funcionando numa dinâmica de dualidades, com o equilíbrio mediano sintético a cuidar-se como “ideal” e desejável (mas muitas vezes inalcançável), quando o caminho mais “árduo” – o que pretende o escalar da Hierarquia platónica – pressupõe uma via mais segura – e a única genuinamente ética – de alcançar a verdadeira Felicidade.
Daqui resulta uma possibilidade de tipologia das “felicidades”, com as duas referidas – a “emocional” e a “racional” – a parecerem igualmente promissoras e igualmente devedoras de Liberdade, quando, na verdade, existe uma décalage monumental entre as duas. No contexto da «Liberdade», podemos atender ao facto de que o caminho “psico-corporal” atenta num tipo de “liberdade” completamente diferente da que se pretende no caminho “racional”, pois que, na primeira, se pretende uma “liberdade” mais “corpórea”, que rememora o “bom selvagem” de Rousseau, enquanto que, na segunda, a Liberdade é feita num caminho progressivo, “para o interior e para cima”. Em ambas se pretende a libertação face a um conjunto de falsas e castradoras doutrinações “disciplinadoras” (que, no plano da modernidade dessacralizada/exotérica, liberal, capitalista, híper-científica e tecnológica, abundam ao ponto de se assumirem como pura fonte de alienação… de um tipo de alienação que, a meu ver, provém de uma ação dialética entre o “corpóreo-instintivo” e a razão analítica/Diánoia). Na via “corpórea” pretende-se a fusão com a natureza. Na via “racional” pretende-se a fusão com o Divino. A primeira acaba por ser reducionista. A segunda acaba por ser holista. A primeira resulta numa liberdade regressiva (que, a ser mantida, perpetua ad infinitum os ciclos reencarnativos), uma pseudoliberdade. A segunda resulta numa liberdade progressiva e verdadeiramente evolutiva.
É certo que aquilo que a Psicanálise propõe tem mais a ver com o tipo de liberdade “individual” a que estamos habituados a apelidar de “liberdade”. Um tipo de liberdade que se aproxima da perspetiva “liberal”, no sentido tanto filosófico (com plena representação no Existencialismo, apesar da negação deste das realidades determinísticas apregoadas pela Psicanálise “diagnóstica”, que, eventualmente, são moralmente desresponsabilizadoras), quanto económico do termo, e que tendeu historicamente a antagonizar o tipo de liberdade “coletiva” (semelhável à que preconizamos) que havia sido (e ainda é) advogado pelo Marxismo. Um tipo de liberdade que não compreende o outro tipo de liberdade, que depreende a relação com o Todo, sendo que esta última, na sua relação íntima com a Racionalidade, poderia até propor o encontro conceptual do Marxismo com a Espiritualidade, não fosse a distância monumental entre as duas “Estruturas” no ponto de vista do ‘acesso’ à citada Liberdade. É que o Marxismo pretende manter a Liberdade ao nível dos homens e ao nível da historicidade dialética (é temporal), num plano científico claramente materialista (apesar de não positivista) e num plano metafísico “determinista” e materialista (trata-se, de facto, de “trazer o Céu para a Terra”, trazer o “paraíso” aos homens), enquanto que a Espiritualidade pretende levar os homens a alcançar o plano do divino e do intemporal (no eterno, perdem-se as dualidades conflituais, perde-se a dialética), e isto num plano científico já mais contemplativo (a tal Noésis) e num plano metafísico inicialmente determinista (nomeadamente, no sentido individual) e, num momento “final”, libertarista (no sentido do Todo Universal). Obviamente, a Liberdade no sentido Espiritual tem pouco a ver com a Liberdade no sentido do Ego. E a plenitude do encontro metanóico (ou seja, para além da Noésis) tem pouco a ver com o bem-estar psico-corporal, o tal que muitos procuram nas já citadas terapêuticas pretensamente espirituais (e que, como já percebemos, de verdadeiramente Espirituais têm pouco).
Resta falar agora do que muda (?) em todas estas perspetivas, se tivermos em conta os novos dados da neurobiologia, segundo os quais existe uma relação íntima entre as estruturas cerebrais responsáveis pela dita Razão intuitiva e as áreas cerebrais apelidadas de somato-sensoriais (e que são responsáveis pela receção e análise de vários dados relativos às sensações corporais e quinestésicas). Ou, dito de outro modo, será que tudo o que dissemos se torna diferente se pensarmos que a velha dicotomia Corpo vs. Mente ou Emoção vs. Razão tende atualmente a ser atenuada pela evidência neurocientífica que pretende colocar a Consciência mais elevada na direta dependência das sensações corporais (muito particularmente as internas) e dos sentimentos (que passam por emoções tornadas conscientes)? Para mim, a resposta é essencialmente “Não”, pois que a perspetiva filosófica apresentada mantém-se essencialmente a mesma, porque devedora de uma projeção fundamental do funcionamento do Homem enquanto Consciência Universal (ou seja, no plano Existencial, tudo se mantém tão válido como antes!...). O que não implica que não possamos, de algum modo, conceber que existe, de facto, um corpo “consciente”, um corpo feito “alma”, um corpo que tende para o “Espírito”, algo como uma dialética entre o Corpo (Dóxa) e a Razão (Noésis) que exclui a passagem pela Razão analítica (ou Diánoia), traduzível na perceção de um “Corpo bio-psico-social” que grande parte da Medicina (entre profissões afins) ainda não reconhece (pois que persiste em ver o corpo segundo uma perspetiva de racionalismo científico/dianóico, que o reduz a uma “máquina” segmentada, pouco afoita a uma visão do corpo “Uno” enquanto “metamorfose permanente”), qualquer coisa que a semiótica entende como “proxémica” e que atesta o lado mais simbólico (e até ritualístico) de uma Estrutura que aparentemente constituiria um mero Significante.
Este “Corpo Espiritual”, devedor de uma relação próxima com a Racionalidade, este Corpo que “Somos” e não “Temos” (Merleau-Ponty), este “Corpo noético”, este sim, podemos apregoar, não tanto como um designativo da verdadeira Espiritualidade (porque, ao nível do Absoluto, não existe tal materialidade concreta, objetiva e individualizada), mas mais como um passo significante nesse tão longo (mas desejavelmente mais curto) caminho que empreendemos na busca do Divino em nós, do «EU Total e Eterno» que já não é ‘Eu’.

sexta-feira, outubro 05, 2012

Esoterismo e Psicanálise: encontros e oposição

Eis que assiste tanto ao desiderato corrente das diferentes religiões como ao tecido ideomático que releva e transpõe as dissemelhantes escolas e tendências da Psicanálise esse objeto comum que se constitui no caminho quase perpétuo (se não verdadeiramente infinitesimal) e “alquímico” que direciona o homem na via da perfectibilidade espiritual, se bem que ambas as “vias” proponham, para o decurso da “iluminação” a alcançar, diferentes linguagens, assim como diferentes predisposições quase “prescritivistas”, que, não obstante os pontos ontologicamente semelháveis, ainda assim não deixam de, a determinado ponto, se reciprocamente negarem.
Pois que a Liberdade, entendida como o despimento das amarras psicossociais necessariamente – porque social e disciplinarmente – tecidas, enceta o caminho tanto de uma teoria psicanalítica convertida pragmaticamente em psicoterapia dinâmica como da maior parte das Estruturas espirituais que, por si mesmas, se convertem em exercícios religiosos mais ou menos desalienadores, mais ou menos dogmáticos. Uma Liberdade entendida como o caminho do homem feito simultaneamente para a frente e para trás, progressivo porque se trata de uma evolução, de um crescimento, mas regressivo porque busca teleologicamente a natureza imaculada e selvagem de um ser ainda humanamente intocado. Uma liberdade que pressupõe o acesso a Deus, feito progressivamente no sentido de o homem assumir-se a si mesmo como Deus (tomando, simbolicamente o lugar do pater, num processo que a psicanálise freudiana entende como “parricida” e que, em termos literários, Dostoiévski tão bem representou em «Os irmãos Karamázov»), feito regressivamente no sentido da desocultação do caminho babélico para o paraíso original. Uma liberdade que se faz caminhando para a frente no recuo persistente ao passado, numa via eterna ou quase eternamente perfeita na busca da perfeição que exigirá necessariamente o retorno, a reminiscência, a negociação com o conjunto intrépido e quase inesgotável de fantasmas que ladeiam o paraíso da casa-Mãe inconsciente e cognitivamente representado por um sempre complexificável Eu.
Não obstante a importância do “eterno retorno” e da “reactualização nostálgica das origens” (Mircéa Eliade) tanto no exercício psicodinâmico como na prática da religião pessoalmente exercitada ou coletivamente organizada, eis que, a um nível pragmático, tanto o destino como a Ética de ambas as vias se diferenciam quase radicalmente, ao ponto de, eventualmente, os dois “discursos” poderem obstar-se ou inimizar-se.
De facto, a psicanálise propende a libertação face à estrutura supermoral, supergóica, o que – bem entendido – permitirá centrar o homem no plano íntimo da sua individualidade, o que subjaz a uma liberdade com vista à felicidade, mais a do próprio do que a do Eu coletivo. Daqui sobra uma “Espiritualidade” essencialmente egoísta, feita para as necessidades imediatas e o tecido de uma vida específica. No máximo, o homem tornar-se-á um Deus livre e libertador, mas não social e Humanamente edificador. Para além do mais, o plano da mundanidade e do Eros farão perder muitas vezes o objeto do Conhecimento e do Espírito no mais peculiar sentido do termo.
Por outro lado, o plano da Espiritualidade, no sentido do verdadeiro Esoterismo – o que pode ou não incluir o exercício de uma religião particular ou institucionalmente organizada – pretende que a via da Libertação não fique pelo caminho no (re)acesso a Deus, que não se esgote no plano diretivo da felicidade individual e da prescrição hedonista, mas que permita esgotar-se somente quando a Iluminação genuinamente ontológica tenha tido lugar, com esta a requerer um processo intermédio de sofrimento que é condição necessária a um crescimento que se fará no ventre de uma plenitude coletiva. O horizonte é, portanto, mais alargado do que aquele que se obtém com a Psicanálise, pois se na Psicodinâmica o exercício emocional pode, pelo menos no processo e/ou caminho que tende para a Libertação, excluir-se de uma obrigação Ética, já na Espiritualidade esotérica a via terá sempre de ser Ética, pois que a “emocionalidade” do Eu terá de ser simultaneamente individual e coletiva, para além de compulsivamente conluiada com o plano da Razão, Razão pós-moderna de uma «racionalidade ética/estética» pós-científica [Claro que, tanto o plano do “sofrimento-crise”, como o plano da racionalidade e da felicidade coletiva são também reivindicações do exercício psicodinâmico, as quais, não sendo negáveis, ainda assim não assumem o plano teleológico de abrangência da espiritualidade esotérica].
Não nego, portanto, que o objeto final da Psicanálise permita também a Eticidade e a harmonização do tecido social (até porque a felicidade individual possibilita a construção de relações mais harmoniosas, em que os mecanismos de defesa parecem perder parte da sua “agressividade” e em que o “egoísmo sublimatório” perderá naturalmente força, com todas as consequências positivas que isso tem para a (des)construção de novos recalcamentos). Porém, o caminho para essa Libertação ética passa muitas vezes pela procura (assaz temporária) da consumação da individualidade ego-maníaca e até do exercício mundano da carnalidade espiritualmente desirmanada, “meios” que trairão o fim Ético que nos pretendemos como um todo social. Já o plano da Espiritualidade esotérica pretende o exercício compulsivo da Eticidade e a busca de um Sentido que dificilmente (ou só controvertidamente) poderá ser obtido com a traição da racionalidade ética (aqui a felicidade individual surge não como um meio mas como uma consequência natural de uma vida ética; o que significa que, na Psicanálise, parte-se do Eu para o Nós, enquanto que na Espiritualidade parte-se do Eu coletivo para o Eu individual). Seria este, inclusivamente, o plano da Religião organizada canónica, não fossem os preceitos rígidos da matriz de uma Ética exigente virem a ser processados num formato de transliteração “carnal” proibicionista que acabou, a um nível essencialmente Histórico, por transformar em dogma, crime e destruição aquilo que somente deveria pertencer ao plano da Liberdade e da Beleza (de resto o já conhecido papel da Religião como – ela-mesma – socialmente castradora – como a própria psicanálise freudiana tantas vezes terá referenciado, já na senda da filosofia de Feuerbach, Nietzsche ou Marx –, e portanto traidora da sua intenção basilar).
Obviamente, neste nosso mundo moderno dessacralizado e compulsivamente mundanizado, a exigência de um regresso ao Sagrado e ao Espírito urge como desígnio da Pós-modernidade e como necessidade fulcral de uma nova Racionalidade. O caminho exige o Esoterismo, e não tanto a Psicodinâmica que, até agora, se tem preocupado sobretudo com o plano da felicidade individual. O caminho exige, eventualmente, até o Sacrifício, a negação de certas formas de felicidade em prol de um Bem maior e de um Eu maior. Desafio óbvio no contexto de um tempo de valoração excessivamente psicologizante, em que o Eu individual é tratado como um pobre coitado, repleto de insuficiências e sedento de Direitos, e em que tudo e todos obstam ao sofrimento e procuram o caminho “moderno”, que é sempre o que custa menos e o que possibilita os resultados mais céleres. Desafio imenso neste nosso mundo em que o ser que troca o prazer pela estoicidade, o hedonismo pela disciplina, o bem-estar pelo sacrifício e o Direito do “Eu individual” pelo Direito do “Eu global” é visto como um extraterrestre desumano e alienado (louco, diferente, anormal, excêntrico, etc.), quando é precisamente o comportamento sacrificial e ético que subjaz à verdadeira Racionalidade, condição fundamental da Humanidade.
Um dia voltaremos a querer o percurso mais longo e mais difícil, pois que neste perduraremos por muito mais tempo! Um dia voltaremos ao tempo do Sagrado e ao tempo do Classicismo! E rezaremos para que o Homem possa, de facto, augurar uma verdadeira evolução, para que não volte – como que arrebatado por um ciclo temporal vicioso – a cair nos erros próprios daqueles tempos clássicos e sacralizados. É que, caindo nesses erros, o Homem já não estará de facto num verdadeiro tempo do Sagrado!
Em última análise, o que se pretende decisivamente é o encontro do Homem com o Universal e o Intemporal, o que acarreta a fusão do ser humano com o tecido valorativo da “Cidade de Deus” (que não deixa de ser, em última instância, uma criação do próprio Homem), e, sobretudo, a negação (e desapego) dos “valores” próprios do tempo específico em que vive, que são quase sempre apanágio de necessidades superficiais e mundanas que só fazem sentido face a um contexto forçosamente parcial e redutor.
Sejamos, então, definitivamente, o Homem sem Tempo, o Homem fora do tempo, o Homem feito “causa incausada”! (mesmo que tal ensejo reifique uma crónica oposição contra a moda, e uma tendência inescapável para o ascetismo e o isolamento de um ser eternamente “estrangeiro” – um “homem sem qualidades” no sentido de Musil –, uma desadaptação social muitas vezes encarada por uma certa psicanálise e por boa parte da Psiquiatria como precursora, senão manifesta de um comportamento psicopatológico, clinicamente diagnosticável como “perturbação” e até social e juridicamente afrontada como uma excentricidade ou até mesmo como um tipo de reacionarismo antissocial).
O contrato Espiritual passa obviamente pela via do Amor e esta pelo exercício sacrificial (diferente da visão erótica do Amor no sentido psicanalítico, em que a relação com os outros é vista em termos das necessidades do “Eu”, se bem que o ser “amado” pelos progenitores tenda a ser capaz de amar construtivamente o “outro”). Bases de edificação do homem do Espírito, que, dada a via das infindas tolerância e benignidade existentes num mundo onde tais qualidades são vistas como pouco “competitivas”, pode muitas vezes ser encarado como um “idiota” (no sentido dostoiévskiano do termo), e, dada a via preferencial de negação da carnalidade (onde, de facto, reside a fonte do Mal), pode muitas vezes ser visto como um ser casto e “castrado”, o qual, segundo certa intenção psicanalítica, carece de uma libertação face ao “fantasma materno” com o qual o “monge” sem líbido possui uma relação fantasmaticamente incestuosa traduzida presumivelmente numa “fixação edipiana”… libertação que poderia levar ao resultado oposto ao da Libertação no sentido “espiritual”, pois que a afirmação do Eu individual implica, de algum modo, a assunção da malignidade própria da instintividade egotista, necessariamente destruidora de um plano imediato de Eticidade abrangente (de facto, ao propor uma explicação para o sentimento de culpa que jaz na base do sacrifício – e à imagem do que a Psicologia e as neurociências têm feito… – a Psicanálise pretende, de algum modo, erradicar esse mesmo sentimento de culpa, por meio de um exorcismo que tem o mote tanto da mera justificação racional como da própria atividade no divã; a erradicação do sentimento de culpa pode facilitar o bem-estar psíquico individual, mas funcionará inevitavelmente como um meio de desconstrução das bases da Ética a “longo prazo”, assim como da “Obra”, a qual tende a resultar de um certo desiderato sublimatório de compensação narcísica). Que o mesmo será dizer que a libertação do inconsciente possui uma menor simbiose com o plano moral e portanto racional, enquanto que a libertação da “alma” (de carácter inclusivo essencialmente consciente) possui – semelhantemente ao revisto no plano da inevitabilidade da Liberdade responsável propalado pelos existencialistas (pois que, no plano da consciência, em que “a existência precede a essência”, a responsabilidade moral antecipa qualquer tipo de preocupação determinística a priori indireta capaz de agir como viático de desresponsabilização moral) – uma maior relação com a eticidade.
Ficam, portanto, nimiamente expostos pontos de contacto e pontos de oposição entre a teoria psicanalítica (predominantemente clássica) e o reino da ascensão espiritual, nos seus termos essencialmente “aplicados” e “terapêuticos”.

(a publicar na revista 'Biosofia')