segunda-feira, janeiro 21, 2013

O corpo da esfinge: O argumento materialista perante o Espiritualismo

O desígnio das matemáticas sagradas e do número pitagórico não pode deixar de residir na sua componente demiúrgica, atestada daquela sagacidade logóica que os antigos panteístas e os atuais esotéricos atribuem aos devas, que os cristãos literalistas e atuais exotéricos atribuem aos demónios e que os materialistas reduzem à lógica, à linguagem e aos sistemas analíticos. A tentação de representar o Universo por meio de uma sonoridade matemática, que patenteie a Ordem Universal mediante a sua dimensionalidade mágica e criativamente imaginativa, é provavelmente tão grande quanto o desafio científico que o materialista tem de circunscrever matematicamente a Ordem cósmica a um conjunto de leis que pretendem traduzir as instruções que veiculam o funcionamento do Todo, ou daquela parte do Todo que podemos conceber como estável. Mas se a primeira tentação se perfaz de uma certa magicidade, quiçá superstição própria de iludidos sonhadores, a segunda constitui o retrato do mundo “aceitável”, daquele que a modernidade acalenta na sua “normalidade” um tanto baudelairianamente inebriante. Assim sendo, talvez prefira iniciar o caminho que proponho pela via da Testemunha, perfeito de um tipo de embriagação vertical com início num pináculo assaz inseguro de transcendência.
E já que apelamos ao veículo da Transcendência, e associando-lhe a noção de números mágicos de Pitágoras, é forçoso iniciar a viagem pela inevitabilidade da Trindade, desse ternário que tudo ladeia, premeia e enforma. Pois que o número “três” constitui, de facto, a fórmula logóica fundacional do Cosmos – na sua dupla essência de Uno e Diverso, Inteligível e Sensível, Espiritual e Material – pois que tanto traduz a Trindade Divina de Pai, Filho e Espírito Santo (que corresponde, como sabemos, à Trindade Âtman, Budhi e Manas do Sanãtana Dharma, o Hinduísmo primitivo, e também da Teosofia blavatskiana), como corresponde ao número das idades do devir da materialidade humana. O número “três” a parecer “fazer sentido” na dupla dimensão do Eterno Estrutural – considerado como a única realidade verdadeira pelos espiritualistas – e do Efémero Devir – considerado pelos mesmos espiritualistas como ilusão, quimera a pressupor a necessidade de um processo evolutivo de desvelamento desencarnador.
No plano deste citado Devir, constituído por um processo inalienavelmente dialético a contrapor dinamicamente os dois pólos de uma dualidade Expansão vs. Retração (à semelhança do que aparece figurado na árvore sefirótica da Cabala judaica), o “três” denuncia o número de idades do homem, a referir:
1ª Idade: a infância – o tempo em que o homem/Homem depende, de forma mais premente, dos pais/Deuses, com estes a constituírem o conjunto das leis prescritivas do funcionamento do mundo e dos códigos explicativos da realidade. Para o homem, é, em termos piagetianos, um período de operações psicomotoras e concretas, em que a Imaginação e o Simbólico aparecem ainda fortemente entrosados numa realidade percebida como literal. Já para o Homem, caracteriza-se por uma fase de forte crença nas estruturas do Sagrado, premiada pela compreensão muitas vezes carnalizada do mito, com este a ser vivenciado por meio de ritos que podem atingir o zénite sacrificial. Em certas culturas, e mais uma vez à semelhança da criança, o Homem pode vir a enaltecer o questionamento – essa mítica idade dos porquês – com consequências igualmente do foro do Sagrado, mas vividas no contexto de uma profundidade que não remete necessariamente para uma concretude idólatra e até destruidoramente dogmática (se bem que o mito pode, de qualquer modo, fazer-se notar por ritos que não são de menor importância do que aqueles que caracterizam as religiões exotéricas).
2ª Idade: a adolescência/idade adulta – o tempo de desdeificação, desmitificação, desmistificação, seguido do abraçar de uma concretização materialista, quase sempre de um tipo de cientificidade positivista, capaz de ser representada pela abstração da linguagem matemática. Para o homem, é, piagetianamente falando, um período fértil de abstração, e freudianamente nos referindo, um período de diferenciação heterossexual; os pais deixam de ser concebidos como deuses, perdem autoridade perante o jugo de uma autonomização que se faz pela via da materialidade científica, terreno aliás fértil para o exercício de um contra-moralismo, porque, sendo profano e não possuindo, à partida, cor ético-moral (porque o paradigma da Performatividade que veicula o exercício da investigação é isento de intenção teleológica ou de construção metafísica), satisfaz os novos códigos de desconstrução secular. Para o Homem, é indubitavelmente a fase em que vivemos atualmente, essencialmente laica e dessacralizada, com a ciência de mote positivo a conceber-se ainda como paradigma dominante, sem orientação ética, numa relação de plena simbiose com o capitalismo e a Técnica, e metafisicamente de domínio essencialmente determinista. É, de facto, a fase do desenvolvimento em que o paradigma laplaciano de renúncia aos Deuses é tomado à letra, com a fé a ser substituída por um tipo de racionalidade científica, platonicamente “Dianóica”, se bem que a emancipação do Divino é explicado menos pela prescrição de um (novo) Logos científico-materialista (que, de resto, não implicaria o desaparecimento do Divino) do que pela criação de um novo tipo de embriagação “salvadora” ou, no mínimo, com poder de distratibilidade egomaníaca (e daí a conotação marxista da religião e do Capital com o ópio).
3ª Idade: a maturidade – o tempo da desconstrução das certezas científicas, a verdadeira Pós-modernidade de reacção à fase anterior (moderna) e de possível reassunção da Espiritualidade. Para o homem, é o tempo da perda derradeira das ilusões científicas, o período de aceitação de uma incerteza permanente, reificada pelo estiolar de todas as garantias, se bem que não tenha esta fase de ser conotada com um qualquer tipo de fragilização, mas antes com a verdadeira e cabal Sabedoria. Para o Homem, a fase Pós-moderna, preludiada por certos pré-requisitos epistemológicos relativos sobretudo à ingenuidade do Realismo e à importancionalização da subjetividade e da intencionalidade, dá ênfase ao indeterminismo, seja de um tipo absoluto (correspondente, portanto, ao livre-arbítrio), seja de um tipo virtual (correspondente à mera incapacidade de determinação), paralelo à aceitação de um conjunto avultado de hipóteses argumentativas, num número eventualmente infinito, ou, no mínimo, indeterminado.
No ponto de vista do estruturalismo de Foucault, a primeira idade trata de uma arqueologia do saber, pois que a essência do Sagrado ancora sempre no intemporal, e somente com a idade moderna – correspondente ao início da modernidade liberal – se põe a História humana em verdadeira e perfídica marcha. O que, em última análise, aproxima a Sacralidade dos homens da intemporalidade do absoluto Divino… Passe-se a lógica das analogias!…
A coerência analógica é o ponto de partida fulcral para o termo a que pretendo chegar, pois, assim como existe um paralelismo entre o pequeno homem e o grande Homem – semelhante, não necessariamente correspondente, ao da ontogénese com o da filogénese – existe, igualmente, um paralelismo entre a realidade microcósmica (entendida como humana) e a realidade macrocósmica (entendida como divina), o teísta “assim na terra como no céu”, entendido precocemente pelo Hermetismo de “O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima” (Lei da Correspondência).
Penso que tanto o paradigma espiritualista como o paradigma materialista concordam que a analogia microscópico – macroscópico é derradeiramente real. Aquilo em que se diferenciam é na ordem de importância ou dependência dessa mesma sequência analógica: o modelo espiritualista coloca as origens no eterno, no céu etéreo ou no interior objetivo, e entende a materialidade como o resultado – desejado ou indesejado – de uma “queda” na substância, sendo que a vida material humana somente reproduz turvamente a imagem das Essências; o modelo materialista coloca a base explicativa de todas as realidades na sua matriz corpuscular, entendendo a realidade espiritual como mero exercício imaginativo, em que a essência do Divino é construída pelo e à imagem do H/homem. Trata-se, portanto, de saber se é o Superior/Deuses que constrói o Inferior/H/homem à sua imagem ou se é o Inferior/H/homem que constrói o Superior/Deuses à sua imagem.
Um dos argumentos fundamentais dos Espiritualistas para justificar as origens na base do deífico ou do demiúrgico (Superior > Inferior) consta da grande semelhança arquetípica, no sentido dos construtos mítico, divino e ritualístico, existente entre as diferentes religiões, sobretudo entre aquelas que, pela grande distância e separatividade geográfica, não poderiam ter sido culturalmente “miscigenadas”. Assim o facto de existirem certas semelhanças entre religiões de continentes diferentes poderia ser explicado pela essência da revelação divina ou, no mínimo, da revelação demiúrgica (no plano teosófico, o demiurgo pode ser entendido, de algum modo, como a sucessão de entidades ou raças anteriores à raça humana). Neste contexto, o mito, que na Era cristã é entendido sobretudo como mera alegoria, poderia consubstanciar uma realidade literal.
Ora, não pode o materialista deixar de ver nesta construção uma semelhança com o literalismo propugnado pelo (mais ingénuo) Cristianismo exotérico, o erro de se interpretar em termos divinos a matéria do Inconsciente Coletivo, a qual poderá ser explicada integralmente pela via da substancialidade material. Para o materialista, o simples facto de os diferentes homens de geografias muito distantes entre si possuírem corpos basilarmente iguais (porque são da mesma espécie, mesmo que de raças diferentes) justifica a construção de estruturas arquetípicas semelhantes, pois que cérebros semelhantes (com estruturas psicanalíticas e neuropsicológicas comparáveis) e relações semelháveis desses corpos/cérebros com o meio justificariam a efetuação de (também) semelhantes processos de projeção psicológica, com estes a constituírem a projeção da realidade psicanalítica (que inclui, como sabemos, um conjunto muito avultado de processos meta-narrativos, como os sonhos e restantes realidades simbólicas) ou das capacidades neuropsicológicas (que, na verdade, têm muito de Universal) na realidade do meio, da cultura e da sociedade (com todos estes, claro, a influenciarem-se reciprocamente, e a evoluírem muitas vezes de formas bastante diversificadas, com o meio geográfico e até as condições meteorológicas e geológicas a contribuírem para certas divergências culturais e, portanto, religiosas). O inconsciente cognitivo passaria, segundo esta perspetiva, a conceber-se como consciência coletiva, e o mito passaria a ser herdado por um processo cultural de difusão oral.
Ainda segundo a perspetiva materialista, e querendo, de algum modo, reduzi-la ainda mais (pois que, para muitos, o que se apresenta já enforma de um valente reducionismo), poderíamos dizer que o Inconsciente coletivo poderia ter sido iniciado no inconsciente individual, tornado coletivo (e aqui já seria consciente) por um mecanismo de difusão cultural provavelmente associado a certas formas de liderança ou de prolixidade personalística. E é precisamente neste ponto em que nos deparamos mais uma vez com a perspetiva cíclica das três idades humanas, que tanto podem ser do pequeno homem, como do grande Homem, com a potencialidade de se poder estender num conjunto de ciclos repetidos incessantemente na História do grande Homem, ao ponto de se poder conceber como estrutura arquetípica, muito provavelmente “alegorizada” por um mito. E será preciso referir o importante mito respeitante ao enigma da esfinge, podendo a sua resolução ser entendida tanto como as três idades do Homem como as três idades ou estados de vida por que passaria o próprio Édipo (a maturidade de Édipo não surge precisamente depois de, após o choque de uma abrupta consciencialização, vazar os olhos e passar a andar com a bengala?)?
Assim sendo, a construção mítico-religiosa passaria sobretudo por um processo de generalização ao coletivo e alegorização ao etéreo (que mais não faz do que glorificar ainda mais o efeito de coletividade e de potenciar o conjunto das suas possibilidades determinísticas e, portanto, deônticas e moralizadoras) daquilo que é a “tragédia” da vida ou a “Epopeia” da existência individual, pois que o Eu é e será sempre o ponto de partida liminar para o entendimento fenoménico do mundo. Daí que assumir exageradamente a partitura de certos códigos moralmente prescritivos para o Ente coletivo, no formato de estruturas religiosas castradoras ou de construções esotéricas desfeitas em exageros de superstição carnal – à semelhança do que terá, a determinada altura, acontecido com certos tipos de Ideologia política, enformados a partir de estruturas filosóficas particulares – pode revelar-se como profundamente erróneo, com consequências práticas não muito diferentes daquelas que adviriam da refutação radical de toda a mística ou mágica que prenunciam a profundidade das belas – mas sempre “relativas” e complexificáveis – construções éticas.
Se bem que, à semelhança dos arquétipos, também os Valores ético-morais podem ser concebidos como meras construções mentalmente projetivas tornadas coletivas (e legitimadas pelas leis de Sociedades que pretendem, de qualquer modo, sobreviver enquanto tal), não podemos deixar, todavia, de sublinhar a importância da existência pragmática desses mesmos Valores, pois que constituem o ancoradouro crucial de uma fraternidade, cujo transtorno poderia fazer com que a Civilização perecesse (ou já tivesse, há muito, perecido).
Daí que mesmo a pertinência moral da apresentação destes argumentos “materialistas” poderia ser questionada e justamente criticada, não fosse a minha convicção de que a problematização e a relativização constituem igualmente parte da argamassa moral, nem que seja porque nos leva a questionar as certezas que, num determinado contexto (mas muitas vezes não encarado como tal), se assumem como dogma. Em última análise, não é a Sabedoria a Arte de conseguir gerir todas estas Verdades, com a capacidade de questionamento constante, capazes de tornar a mais simples ação um verdadeiro suplício, porque a (in)decisão ética acaba por ser vergada pelo peso da multiplicidade de perspetivas?
Claro que é ingénua a suposição da existência de uma racionalidade decisora, até porque a objetividade não existe e tudo se perfaz de subjetividade (a própria busca da transcendência tende a ser veiculada pela totipotência do Ego) – não obstante, e como já dissemos, muitas das construções mítico-espirituais são somente a representação da tormenta da interioridade – mas, ainda assim, não podemos deixar de desejar o encontro com a Razão, a via para a Fraternidade, real porque complexificada pelas diatribes do caminho de “busca”… com esta a ser eternamente transtornada pela pluralidade das linguagens… daqui, a ideia da “queda” na materialidade como condenação, e a noção de “crescimento” a não se limitar a uma vida, mas ao “eterno retorno” na sucessão reencarnativa do h/Homem, interpretável, num plano menos alargado, como “reactualização nostálgica das origens” (Mircéa Eliade), vivificável pelo rito ou até a cerimónia aparentemente mais profana.

sábado, janeiro 05, 2013

Esoterismo e Psicanálise III: Conclusão (Do “eterno retorno” à “fuga para a frente”)

«A grandeza não tem que ver com o que fazemos mas com o que não faz em nós o animal, que tem muita força e precisa de uma força maior para a não ter»

(Vergílio Ferreira, in «Em nome da Terra»)


«Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta»

(Fernando Pessoa)

Não há, infelizmente, entre os pobres e comuns mortais, uma consciência suficientemente apurada de que a Necessidade corpórea e o Mal Ego-maníaco são forças que dominam a vivência no estado Humano e que determinam a totalidade das ações, mesmo aquelas que possuem um aspeto mais Racional e Ético. A Felicidade continua a ser o aspeito fundamental do comportamento, e, a um nível carnal, ela equivale ao prazer, mesmo que relativo a uma projeção cognitiva mantida e evocada pela antecipação do encontro com o objeto erótico (explicativo, na verdade, do estado de amor passional). Ora, o Inconsciente psicanalítico mais não é do que a arquitetura mais obscura dos processos do Eros, com estes a significarem o mote da determinação da ação dos seres carnais, incluindo todos aqueles seres, outrora etéreos, que, por “escolha” ou “condenação”, acabaram por cair nos níveis da materialidade.
Na verdade, o “Inferno” do cristianismo literalista mais não é do que aquele que existe a um nível meramente Humano, com a existência na materialidade a ser apanágio do ‘Mal’ próprio da determinação egóica, se bem que possam existir diferentes tipos de “pecado”, com diferentes níveis de dignidade ontológica/ética, o que significaria – na gíria própria das trevas medievais – um merecimento de um adequado nível de vivência “infernal” (vejam-se, por exemplo, os diferentes níveis do “Inferno” de Dante).
A “Queda” nos níveis de materialidade é, como sabemos, qualquer coisa adstrita, em termos teosóficos, à própria nivelação dos diferentes demiurgos (correspondentes, para o cristianismo exotérico, aos “anjos caídos”) e à própria sucessão (e diferenciação sexual) das diferentes raças-raiz, como tão longamente se trata na obra da Madame Blavatsky. Essa mesma “Queda” (involução) representa o elo fundamental da constituição da consciência individual, processo requerido para o estabelecimento de um anátema à consciência pura/Divina, pré-requisito do decurso de crescimento/evolução com vista a um posterior regresso ao Absoluto.
Assim sendo, o abraçar de um corpo e de um mundo “prakritiano” embebido de Maya consubstancia-se como uma necessidade própria de um crescimento, de uma evolução que não poderia existir sem que primeiro se “involuísse”. O que acarreta, na perspetiva psicanalítica, a aceitação do estado de individuação/autonomização como um processo necessário e até desejável da existência Humana!...
A Psicanálise propõe, de algum modo, um mecanismo, tanto compreensivo quanto terapêutico, de vivência e gestão no mundo da “dualidade”, aceitando a “carnalidade” como algo de natural, a ser vivida e aceite sem culpabilidade, porque necessário à autonomização face aos Deuses/Pais. O que significa que a vivência e aceitação do Ego é vista, não só como desejável, mas igualmente como um mecanismo próprio da obtenção da verdadeira Autonomia, sem a qual, não é possível verdadeiramente evoluir. Isto implica que o “eterno retorno”, vivificado pelos rituais próprios das estruturas Espirituais e ainda mais ricamente pelas religiões exotéricas e idólatras, se necessário inicialmente como processo de reificação da segurança egóica, não pode deixar de ser visto como caracter neurótico, porque relativo à incapacidade de alcance de uma adequada sensação do Eu, sem a qual o Ego não pode nem deve evoluir espiritualmente. Aliás, se alcançado o verdadeiro sentido e consciência de um Eu, suficientemente autónomo relativamente aos “Criadores”, a Ética e o comportamento moral serão automaticamente vivificados, pois que um adequado sentido de consciência individual matará toda a necessidade compensatória do Eu se sobrepor ao Outro. Em última análise, a vivência gloriosa do Eu, ao destruir quaisquer necessidades compensatórias sublimatórias, acabaria por destruir a própria sensação de que seria requerida uma Evolução Espiritual no “devir”.
Assim sendo, a Psicanálise propende a busca de um equilíbrio na “dualidade” que mata a própria necessidade de evolução, entendendo aqueles que atentam um Equilíbrio Espiritual como estando a “compensar” a sua própria incapacidade de se assumirem como homens. É que, na perspetiva psicanalítica, à semelhança da perspetiva libertarista do “Pós-modernismo”, o Livre-arbítrio é visto como sendo alcançado pelo homem enquanto tal, e assumindo-se ele mesmo como um Deus, somente depois de uma adequada “morte de Deus” (o termo e a própria consciência do que apresentamos são sabidamente “nietzschenianos”); o Deus-Homem que se propõe não abandona nunca a “carne”, se bem que, bem provido de uma segurança Egóica, não chafurdará nela (nem fará uso e abuso de meios de vivência obsessiva das sensações ou das paixões), tal como também será capaz de respeitar a alteridade e até de abraçar ocasionalmente os formatos de uma Razão Dianóica (muito relacionada com a materialidade carnal) necessária à construção da obra científica e tecnológica.
Por outro lado, estando bem seguro de si mesmo, o Deus-Homem nada fará para alcançar os níveis mais elevados da Racionalidade (noética), nem necessitará de criar a Arte (um desequilíbrio permanente na dialética entre os sentidos e a razão noética), podendo estes ser vistos como uma mera necessidade compensatória da incapacidade de alcançar um sentido do Eu. Ou seja, a busca Espiritual, na sua pretensão de controlar e superar o plano corporal, pode ser visto como uma mera tentativa de anestesiar um processo de gestão e harmonização erótica, que, a não se realizar, somente irá confluir numa “defesa” do género “fuga para a frente”.
Assim sendo, a psicanálise não pode deixar de ver no esforço Espiritual a incapacidade de o Homem-criado se tornar Homem-Criador, pois que entende que o processo do “Inferno”/“Consciência Egóica” foi abortado pela necessidade de cessação das oscilações duais/”prakritianas”, que é o mesmo que dizer que o esforço cognitivo da meditação cala ou anestesia o processo de vivência carnal.
Ora, a falha do argumento psicanalítico está, de algum modo, presente no que já referimos lá atrás. Acontece que seria preciso ter um grande nível de inconsciência para não reparar que o ‘Mal’ e o Egoísmo são a regra e não a exceção da vivência carnal, o que, segundo o parecer psicanalítico, significaria que a Civilização ainda não teria atingido um adequado nível de autonomização/individuação ética. Por outro lado, a assunção de que é possível atingir tal nível implica assumir igualmente a existência de Livre-arbítrio, mas como podemos assumir a sua existência se padecemos condicionados pela necessidade própria da Determinação animalística? Será que a assunção desse mesmo Livre-arbítrio não terá de ser precedida pelo aumento gradual do patamar de Consciência? E esse aumento no nível de consciência não implicará precisamente que exista uma superação dos níveis da carnalidade animalística? …
Parece, então, que caímos num “quase-paradoxo”, com o crescimento no sentido emocional a requerer o mesmo pré-requisito de Consciência que o crescimento no sentido racional. Por sua vez, tanto a perspetiva Psicanalítica quanto a perspetiva Esotérica poderiam ser igualadas numa visão, de algum modo elementarista, segundo a qual o homem evolui num sentido emocional - cognitivo - intelectual - racional, de modo a alcançar o estado de Homem-Deus, dono do Absoluto na ação, mas não de uma Consciência Pura (que seria o desiderato final do exercício meditativo); esta visão parece mais pobre – nos planos ontológico, ético e metafísico – que a visão Espiritual/Esotérica/Teosófica, para a qual, em última análise, o Homem-Deus não é um Deus decisor na «ação» (portanto, com Livre-Arbítrio, com poder de Criação), mas sim um Deus acalentador na «não ação» (portanto, com Liberdade pura sem “Livre-arbítrio”, com consciência pura, que é já uma “não consciência”).
Assim, transparece a razão por que a via Esotérica é a única que respeita derradeiramente a Ética, pois que o momento final da Consciência é a de uma “Não Separatividade”, agarrada a uma subtilidade desprovida de condicionamento. A via Espiritual permite, portanto, o alcance do Absoluto, precisamente porque o Homem-Deus que se obtém não tem desejo ou intenção criadora. É certo que o corpo poderá funcionar enquanto via, meio ou instrumento para o alcance da consciência pura; enquanto a consciência não estiver completamente “desencarnada” existirá sempre elementarismo e algum nível de condicionamento (o que significa também a manutenção do ciclo kármico do Samsara), para que somente não exista qualquer nível de determinação num estado de Pura Consciência/Puro Ser, que é Pura Inconsciência e Puro Não Ser. Ao propor uma Ética por via de um Deus-Homem carnal, a Psicanálise, mesmo que bem-intencionada, não pode ter o alcance do Esoterismo, pois que este Deus-Homem, por ter intenção criadora e consciência de Separatividade, ou seja, por não ser Absoluto, é, no máximo dos máximos, um Demiurgo, um Deva, um Jeová, mas não um Ser Divino completamente isento de Ego. [Na perspetiva “microscópica”, diria que a Psicanálise não atinge jamais o nível ‘Atman’, até porque pretende não abandonar completamente o quaternário inferior].
Claro que uma certa visão niilista – mas nem por isso desimportante – poderá argumentar que o aumento de patamar de consciência terá sempre por trás um qualquer tipo de determinação subjetiva (traduzível psicanaliticamente), mas isso não implica que esse mesmo aumento não leve ao estabelecimento de um Estado gradual de menor subjetividade/Separatividade e de maior Subtilidade, o que, ainda assim, concedo não saber como poderá ocorrer sem que exista uma real e total libertação do corpo (ou desencarnação). Se há quem conceba a possibilidade de Atman sem um Brahman etéreo (ou seja, de uma consciência pura em vida humana individual), não deixa de ser difícil de conceber a possibilidade de atingirmos o Absoluto no campo da vida carnal, e ainda mais se nos referirmos a uma só vida (sem necessidade reencarnativa). A perspetiva materialista/elementarista culta vai sempre pressupor que a Espiritualidade propõe, por alegorias, qualquer coisa que acaba por corresponder parcialmente ao desiderato psicodinâmico: a necessidade de crescimento, de “individuação” ética, de importancionalização do Eu coletivo social e hiper-racional relativamente ao Individual, propondo que as duas vias de que temos sempre falado possuem, em última análise, um esquema “simbólico” comum ou pelo menos semelhável. Porém, não enfermará esta mesma visão materialista (instrumento de uma ciência Dianóica incapaz de medir aquilo que transpõe o limite do comensurável) do mesmo tipo de condicionamento carnal (que leva, portanto, à falta de Consciência Pura) que limita a visão verdadeiramente etérea de um Brahman existente per si?

[Todos os artigos «Esoterismo e Psicanálise» estão no prelo para publicação na revista 'Biosofia']