sábado, janeiro 05, 2013

Esoterismo e Psicanálise III: Conclusão (Do “eterno retorno” à “fuga para a frente”)

«A grandeza não tem que ver com o que fazemos mas com o que não faz em nós o animal, que tem muita força e precisa de uma força maior para a não ter»

(Vergílio Ferreira, in «Em nome da Terra»)


«Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta»

(Fernando Pessoa)

Não há, infelizmente, entre os pobres e comuns mortais, uma consciência suficientemente apurada de que a Necessidade corpórea e o Mal Ego-maníaco são forças que dominam a vivência no estado Humano e que determinam a totalidade das ações, mesmo aquelas que possuem um aspeto mais Racional e Ético. A Felicidade continua a ser o aspeito fundamental do comportamento, e, a um nível carnal, ela equivale ao prazer, mesmo que relativo a uma projeção cognitiva mantida e evocada pela antecipação do encontro com o objeto erótico (explicativo, na verdade, do estado de amor passional). Ora, o Inconsciente psicanalítico mais não é do que a arquitetura mais obscura dos processos do Eros, com estes a significarem o mote da determinação da ação dos seres carnais, incluindo todos aqueles seres, outrora etéreos, que, por “escolha” ou “condenação”, acabaram por cair nos níveis da materialidade.
Na verdade, o “Inferno” do cristianismo literalista mais não é do que aquele que existe a um nível meramente Humano, com a existência na materialidade a ser apanágio do ‘Mal’ próprio da determinação egóica, se bem que possam existir diferentes tipos de “pecado”, com diferentes níveis de dignidade ontológica/ética, o que significaria – na gíria própria das trevas medievais – um merecimento de um adequado nível de vivência “infernal” (vejam-se, por exemplo, os diferentes níveis do “Inferno” de Dante).
A “Queda” nos níveis de materialidade é, como sabemos, qualquer coisa adstrita, em termos teosóficos, à própria nivelação dos diferentes demiurgos (correspondentes, para o cristianismo exotérico, aos “anjos caídos”) e à própria sucessão (e diferenciação sexual) das diferentes raças-raiz, como tão longamente se trata na obra da Madame Blavatsky. Essa mesma “Queda” (involução) representa o elo fundamental da constituição da consciência individual, processo requerido para o estabelecimento de um anátema à consciência pura/Divina, pré-requisito do decurso de crescimento/evolução com vista a um posterior regresso ao Absoluto.
Assim sendo, o abraçar de um corpo e de um mundo “prakritiano” embebido de Maya consubstancia-se como uma necessidade própria de um crescimento, de uma evolução que não poderia existir sem que primeiro se “involuísse”. O que acarreta, na perspetiva psicanalítica, a aceitação do estado de individuação/autonomização como um processo necessário e até desejável da existência Humana!...
A Psicanálise propõe, de algum modo, um mecanismo, tanto compreensivo quanto terapêutico, de vivência e gestão no mundo da “dualidade”, aceitando a “carnalidade” como algo de natural, a ser vivida e aceite sem culpabilidade, porque necessário à autonomização face aos Deuses/Pais. O que significa que a vivência e aceitação do Ego é vista, não só como desejável, mas igualmente como um mecanismo próprio da obtenção da verdadeira Autonomia, sem a qual, não é possível verdadeiramente evoluir. Isto implica que o “eterno retorno”, vivificado pelos rituais próprios das estruturas Espirituais e ainda mais ricamente pelas religiões exotéricas e idólatras, se necessário inicialmente como processo de reificação da segurança egóica, não pode deixar de ser visto como caracter neurótico, porque relativo à incapacidade de alcance de uma adequada sensação do Eu, sem a qual o Ego não pode nem deve evoluir espiritualmente. Aliás, se alcançado o verdadeiro sentido e consciência de um Eu, suficientemente autónomo relativamente aos “Criadores”, a Ética e o comportamento moral serão automaticamente vivificados, pois que um adequado sentido de consciência individual matará toda a necessidade compensatória do Eu se sobrepor ao Outro. Em última análise, a vivência gloriosa do Eu, ao destruir quaisquer necessidades compensatórias sublimatórias, acabaria por destruir a própria sensação de que seria requerida uma Evolução Espiritual no “devir”.
Assim sendo, a Psicanálise propende a busca de um equilíbrio na “dualidade” que mata a própria necessidade de evolução, entendendo aqueles que atentam um Equilíbrio Espiritual como estando a “compensar” a sua própria incapacidade de se assumirem como homens. É que, na perspetiva psicanalítica, à semelhança da perspetiva libertarista do “Pós-modernismo”, o Livre-arbítrio é visto como sendo alcançado pelo homem enquanto tal, e assumindo-se ele mesmo como um Deus, somente depois de uma adequada “morte de Deus” (o termo e a própria consciência do que apresentamos são sabidamente “nietzschenianos”); o Deus-Homem que se propõe não abandona nunca a “carne”, se bem que, bem provido de uma segurança Egóica, não chafurdará nela (nem fará uso e abuso de meios de vivência obsessiva das sensações ou das paixões), tal como também será capaz de respeitar a alteridade e até de abraçar ocasionalmente os formatos de uma Razão Dianóica (muito relacionada com a materialidade carnal) necessária à construção da obra científica e tecnológica.
Por outro lado, estando bem seguro de si mesmo, o Deus-Homem nada fará para alcançar os níveis mais elevados da Racionalidade (noética), nem necessitará de criar a Arte (um desequilíbrio permanente na dialética entre os sentidos e a razão noética), podendo estes ser vistos como uma mera necessidade compensatória da incapacidade de alcançar um sentido do Eu. Ou seja, a busca Espiritual, na sua pretensão de controlar e superar o plano corporal, pode ser visto como uma mera tentativa de anestesiar um processo de gestão e harmonização erótica, que, a não se realizar, somente irá confluir numa “defesa” do género “fuga para a frente”.
Assim sendo, a psicanálise não pode deixar de ver no esforço Espiritual a incapacidade de o Homem-criado se tornar Homem-Criador, pois que entende que o processo do “Inferno”/“Consciência Egóica” foi abortado pela necessidade de cessação das oscilações duais/”prakritianas”, que é o mesmo que dizer que o esforço cognitivo da meditação cala ou anestesia o processo de vivência carnal.
Ora, a falha do argumento psicanalítico está, de algum modo, presente no que já referimos lá atrás. Acontece que seria preciso ter um grande nível de inconsciência para não reparar que o ‘Mal’ e o Egoísmo são a regra e não a exceção da vivência carnal, o que, segundo o parecer psicanalítico, significaria que a Civilização ainda não teria atingido um adequado nível de autonomização/individuação ética. Por outro lado, a assunção de que é possível atingir tal nível implica assumir igualmente a existência de Livre-arbítrio, mas como podemos assumir a sua existência se padecemos condicionados pela necessidade própria da Determinação animalística? Será que a assunção desse mesmo Livre-arbítrio não terá de ser precedida pelo aumento gradual do patamar de Consciência? E esse aumento no nível de consciência não implicará precisamente que exista uma superação dos níveis da carnalidade animalística? …
Parece, então, que caímos num “quase-paradoxo”, com o crescimento no sentido emocional a requerer o mesmo pré-requisito de Consciência que o crescimento no sentido racional. Por sua vez, tanto a perspetiva Psicanalítica quanto a perspetiva Esotérica poderiam ser igualadas numa visão, de algum modo elementarista, segundo a qual o homem evolui num sentido emocional - cognitivo - intelectual - racional, de modo a alcançar o estado de Homem-Deus, dono do Absoluto na ação, mas não de uma Consciência Pura (que seria o desiderato final do exercício meditativo); esta visão parece mais pobre – nos planos ontológico, ético e metafísico – que a visão Espiritual/Esotérica/Teosófica, para a qual, em última análise, o Homem-Deus não é um Deus decisor na «ação» (portanto, com Livre-Arbítrio, com poder de Criação), mas sim um Deus acalentador na «não ação» (portanto, com Liberdade pura sem “Livre-arbítrio”, com consciência pura, que é já uma “não consciência”).
Assim, transparece a razão por que a via Esotérica é a única que respeita derradeiramente a Ética, pois que o momento final da Consciência é a de uma “Não Separatividade”, agarrada a uma subtilidade desprovida de condicionamento. A via Espiritual permite, portanto, o alcance do Absoluto, precisamente porque o Homem-Deus que se obtém não tem desejo ou intenção criadora. É certo que o corpo poderá funcionar enquanto via, meio ou instrumento para o alcance da consciência pura; enquanto a consciência não estiver completamente “desencarnada” existirá sempre elementarismo e algum nível de condicionamento (o que significa também a manutenção do ciclo kármico do Samsara), para que somente não exista qualquer nível de determinação num estado de Pura Consciência/Puro Ser, que é Pura Inconsciência e Puro Não Ser. Ao propor uma Ética por via de um Deus-Homem carnal, a Psicanálise, mesmo que bem-intencionada, não pode ter o alcance do Esoterismo, pois que este Deus-Homem, por ter intenção criadora e consciência de Separatividade, ou seja, por não ser Absoluto, é, no máximo dos máximos, um Demiurgo, um Deva, um Jeová, mas não um Ser Divino completamente isento de Ego. [Na perspetiva “microscópica”, diria que a Psicanálise não atinge jamais o nível ‘Atman’, até porque pretende não abandonar completamente o quaternário inferior].
Claro que uma certa visão niilista – mas nem por isso desimportante – poderá argumentar que o aumento de patamar de consciência terá sempre por trás um qualquer tipo de determinação subjetiva (traduzível psicanaliticamente), mas isso não implica que esse mesmo aumento não leve ao estabelecimento de um Estado gradual de menor subjetividade/Separatividade e de maior Subtilidade, o que, ainda assim, concedo não saber como poderá ocorrer sem que exista uma real e total libertação do corpo (ou desencarnação). Se há quem conceba a possibilidade de Atman sem um Brahman etéreo (ou seja, de uma consciência pura em vida humana individual), não deixa de ser difícil de conceber a possibilidade de atingirmos o Absoluto no campo da vida carnal, e ainda mais se nos referirmos a uma só vida (sem necessidade reencarnativa). A perspetiva materialista/elementarista culta vai sempre pressupor que a Espiritualidade propõe, por alegorias, qualquer coisa que acaba por corresponder parcialmente ao desiderato psicodinâmico: a necessidade de crescimento, de “individuação” ética, de importancionalização do Eu coletivo social e hiper-racional relativamente ao Individual, propondo que as duas vias de que temos sempre falado possuem, em última análise, um esquema “simbólico” comum ou pelo menos semelhável. Porém, não enfermará esta mesma visão materialista (instrumento de uma ciência Dianóica incapaz de medir aquilo que transpõe o limite do comensurável) do mesmo tipo de condicionamento carnal (que leva, portanto, à falta de Consciência Pura) que limita a visão verdadeiramente etérea de um Brahman existente per si?

[Todos os artigos «Esoterismo e Psicanálise» estão no prelo para publicação na revista 'Biosofia']

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