quinta-feira, dezembro 20, 2012

Psicanálise versus Meditação: Corpo e Transcendência

Na extensão da eterna bipolaridade Corpo versus Mente, Sensível versus Inteligível, Múltiplo versus Uno, o binómio «Inconsciente versus Consciente» reitera a mecânica da dualidade que, numa perspetiva Espiritual, qualifica o mundo do concreto, a dimensão da relatividade material; binómio que, em última análise, presencia uma antiga querela adveniente do mundo das psicoterapias: Psicanálise (abordagem psicodinâmica) versus Terapia Cognitivo-Comportamental, que, na perspetiva da Sabedoria Universal (antiga e Espiritual) encerra, a meu ver, o correlato Psicanálise versus Meditação (esta última, analisado o modo de funcionamento ‘mental’, constitui, de certa maneira, uma abordagem essencialmente cognitivista). Veremos que, mais do que constituintes de diferentes formas de ver o Eu e a relação Corpo-Mente, as perspetivas paradigmáticas em análise compreendem dois modelos fundamentais de conceção da Realidade.
Diria que tanto a Psicanálise como a abordagem Cognitiva utilizam o Corpo como via de alcançar um fim, que, no caso da Terapia psicodinâmica, parece ser, de algum modo, de mote mais egoísta e autocentrado do que na Meditação, com a segunda a conter um fim Espiritual que apela à Ética e à Transcendência. Curiosamente, para além de se conceberem como formas de Psicoterapia praticáveis em indivíduos com ou sem problemáticas psicossomáticas associadas, ambas auguram igualmente servir de modelo a diversas práticas relacionadas com a atividade física.
A Psicanálise não se esgota obviamente no sortilégio do Inconsciente, pois que propõe uma visão modelar complexa de todo um Self, mas, ainda assim, não deixa de antever no Corpo, e até na Psicossomática, o palco matricial do seu trabalho, se bem que a Corporeidade seja por ela vista não só na sua vertente pulsional como igualmente na sua vertente expressiva e semiológica. Daí que, para além de constituir uma abordagem de trabalho do tipo elementar/corpuscular (no sentido em que opera na base da consciência, nos pré-requisitos da racionalidade e nas raízes dos sintomas neuróticos e/ou psicossomáticos), é também radicalmente evocada em práticas físicas como a dança, a expressão corporal, a psicomotricidade, as terapias psico-corporais e/ou de relaxamento, e, de modo eventualmente mais inaparente, na totalidade genérica das atividades desportivas (porque todas elas gozam de uma iniludível componente práxico-proxémica e de significado); não esqueçamos que o corpo É – designativo de uma mor telúrica prédica lógico-discursiva – mas também Significa – o que designa o menos carnal discurso semiótico.
Em particular, a perspetiva da Psicossomática centra a intervenção da Psicanálise – num e por meio de um – corpo que preconiza uma vertente simbólica, com muitas “dores” e outras manifestações clínicas de um corpo “patológico” a representarem conflitos e angústias que não puderam ser adequadamente abstratizados no plano mental, o que não implica que não possam “significar-se” e, portanto, ser interpretados, o que, em última análise, depreende a existência de uma linha entre o concreto e o subjetivo sem solução de continuidade.
Assim sendo, o modelo psicodinâmico não se exaure no divã do consultório do psicoterapeuta, tal como uma adequada perspetiva psicossomática não pode restringir-se a um contexto que se distancie da ambiência do praticante.
Por outro lado, mesmo concebendo que a perspetiva psicanalítica (e refiro-me, como já se percebeu, essencialmente ao clássico e modelar freudianismo) possui toda uma vertente de complexa abstração e de significação racional, o facto de pejarmos a Psicanálise com a sua dimensão dominantemente Corpóreo-Pulsional acarreta a aceitação deste modelo de intervenção como reducionista em comparação com os modelos que visam a superação do plano psico-corporal. Este reducionismo respeita, não tanto a uma qualquer dimensão de desvalorização pessoal, mas sobretudo à perspetiva de que a Psicanálise se propõe como uma base explicativa do comportamento e até de tudo o que aparenta ser racional, naquele sentido corpuscular segundo o qual o Superior depende e é explicado pelo Inferior.
Sendo assim, a perspetiva psicanalítica constitui-se, de algum modo, como essencialmente materialista (mesmo que de pendor especificamente mentalista), pois que, à semelhança das clássicas perspetivas científicas, depreende uma visão determinística da ação (o que não implica que não reconheça a existência do Livre-arbítrio, sem o qual não poderia advogar a possibilidade de mudança), tal como também figura ser reducionista, pois que, mesmo concebendo a mente como palco de abrangência sistémica, ainda assim, muito parece distanciar-se da visão de um Todo Espiritual e Transcendente, apanágio do exercício meditativo.
Acontece que, contrariamente ao exercício de gestão das emoções (e das dualidades polares que limitam os seus movimentos) – propugnado pela Psicanálise –, a Meditação, um pouco à semelhança das estratégias cognitivo-comportamentais, propõe o controlo e superação dos palcos emocional, volitivo/motivacional e cognitivo, com o objeto derradeiro de sobrepujar o plano do Eu. É que a verdadeira Meditação não pode ser descolada do contexto da Sabedoria Espiritual antiga, a qual coloca no Eu carnal (com este a incluir também os planos elevados da mente individual) a responsabilidade pelo ‘Mal’ e de todas as formas de Sofrimento. O que significa que a Espiritualidade, no sentido que lhe é dado pela Sabedoria Universal, propõe, com vista à construção de uma Ética global e à aproximação de um Todo Cosmológico hiper-racional, o abandono do plano da Individualidade (ego-maníaca), o que acaba por acarretar a consideração do corpo como um “meio para acercar um fim”.
A meditação concretiza-se com o treino de uma atenção localizada e inclui o corpo enquanto via para atingir certos estados de concentração. Atividades físicas “holísticas” como o Yoga podem (e devem) incluí-la. Mas, mais cedo ou mais tarde, o exercício meditativo propriamente dito convida ao abandono do plano simbólico-fantasmático da corporeidade e até da consciência (individual), considerando todas as formas de apego ao Eu como um processo displicente de autoilusão.
Ora, não podemos negar que tal perspetiva, segundo a qual o Superior acaba por explicar e comandar o Inferior e a Liberdade reitera a superação do Eu, parece ser de algum modo adversa à perspetiva científica tradicional e à visão clínico-patológica e psicodinâmica… Na verdade, tal atitude “ascética” só poderia ser vista pela Psicanálise como mera Defesa ilusória, uma forma de fugir à realidade concreta e de racionalizar a vivência pulsional (em derradeira perspetiva, poderíamos dizer que também essa Liberdade hiper-racional não passaria da sempre eterna ilusão de que somos livres, tão determinada quanto a mais fisiológica e basilar das necessidades).
No contexto moderno, certo é que dificilmente pode ser defendida uma visão espiritual descorporizada, pois que um novo modelo do todo Corpo-Mente fortemente monista-fisicalista teima em obter protagonismo. As questões de ordem científica e epistémica são complexas, passíveis de ser encaradas em termos de diferentes perspetivas e/ou escalas e “grelhas cognitivas”, mas parece-me que uma visão subtil inclusiva da Motricidade Humana é praticamente incontornável. Ora, seja porque a matéria é vista como extensão ou parte indecomponível do Absoluto, seja porque o apaziguamento das diferentes vertentes emocionais de um corpus em desunião com o Absoluto acarreta o jogo de cessação ou controlo das diferentes manifestações da matéria carnal, é inegável que a prática específica dos diferentes tipos de Yoga (implicativa dos anteriores) inclui o tipo de subtilidade corpórea que parece ser parte incontornável de um alcance Espiritual minimamente libertador.
Daí que o Yoga e o processo meditativo a que a sua filosofia acaba por apelar poderão, de algum modo, constituir processos únicos e valiosos para alcançar aquele nível de “Corpo feito Noésis” (Corpo tornado contemplativamente racional) que acredito pressupor necessariamente o processo simbolicamente ascensional. Nisso, o nível de transcendência é inesgotavelmente mais rico que o acarretado pelo processo psicanalítico, com este último a ser rico mas espiritual e eticamente questionável.
 
A primeira versão deste artigo intitula-se «Psicanálise vs. Espiritualidade: Corpo vivido ou corpo superado?» e encontra-se publicada no nº2 da revista 'Pódio' (www.revistapodio.pt)

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