quarta-feira, julho 22, 2009

Uma nova interpretação da "Síndroma da Deficiência Postural"

Seria assaz estranho fazer aqui a descrição de certos tratamentos segundo Mézières, em que, dentro de determinada postura, passamos a traccionar a língua ou a alongar os músculos mastigadores. Pois é certo que a fáscia que envolve o crânio e toda a musculatura externa dos olhos e face (incluindo os músculos mastigadores), assim como a língua e certos músculos internos da zona oral, perfazem uma zona "anterior" e "limite" da cadeia muscular posterior. Em especial, a língua e os músculos mastigadores fazem a ligação entre a cadeia posterior e as cadeias anteriores. Ora, o que há a tirar daqui é de extrema importância, pois leva-nos a compreender certos casos de patologia oral e dentária, certos casos de perturbação da temporo-mandibular, certos casos de enxaqueca, certas dismetrias faciais, e certas pertubações dos músculos óculo-motores, como condições que derivam da retracção das cadeias musculares.
Por exemplo, não é comum encontrar no mesmo doente perturbações da temporo-mandibular associadas a alterações da morfologia do aparelho dentário, tendência para a sinusite e o ronco nocturno. Assim como também é comum, naqueles casos tantas vezes apelidados de "síndroma da deficiência postural" (SDP), encontrar retracções ao nível do aparelho muscular mastigador, assim como alterações da temporo-mandibular e do aparelho visual; perguntar-me-ia até se o défice de convergência ocular tantas vezes referido como causa de dislexia relativamente ao SDP não estaria associado antes a um excesso muscular dos músculos óculo-motores externos... o que me leva a pensar que o alongamento global associado ao alongamento específico destes últimos poderia ajudar tanto ou mais do que a utilização de umas lentes prismáticas (as quais utilizam, de certa maneira, a modalidade "fortalecimento muscular" como paradigma...).
É uma série de conjecturas que há que ter em conta. Mas, efectivamente, já o pai da Posturologia francesa, Bernard Bricot, incluía nos seus escritos toda uma panóplia de dados relativos à "deficiência postural" associados a dados relativos às "cadeias musculares", gíria mézièrista, portanto igualmente francófona. O que sugiro é que, tal como tenho visto em muitos dos meus doentes com SDP, não é o sistema proprioceptivo e/ou neurológico que está na base do problema, mas sim o sistema miofascial propriamente dito. Pois um encurtamento (global ou local) da cadeia muscular posterior explica as alterações na tíbio-társica, as alterações a nível dos olhos, aparelho mandibular e língua. E assim também não será difícil explicar a relação entre dislexia e dificuldades na articulação verbal. Estas últimas, ao invés de serem consequentes da primeira, seriam um mero correlato delas, no sentido em que ambas as alterações derivam de certos encurtamentos musculares sinérgicos.
Uma das razões pelas quais afirmo o que afirmo é que, em vários dos meus doentes com SDP, a intervenção segundo a Reeducação Postural leva a resultados mais promissores do que a utilização mantida de, por exemplo, aparelhos dentários, lentes prismáticas e palmilhas de infra-vermelhos. Claro que podemos sempre pensar que tudo é consequência de um défice neurológico proprioceptivo, e este sim é que leva à transformação do "ecossistema muscular". Mas ponho em dúvida a possibilidade de ser tudo ao contrário... (mais uma vez, se coloca a temática de correlação vs. relação causa-efeito; muito se sabe sobre a existência de condições simultâneas: por exemplo, a patologia dentária e a patologia mandibular tendem a ser simultâneas entre si e também com a sensação de desequilíbrio, a qual tem sido associada aos problemas da temporo-mandibular... ou será que é a retracção típica da cadeia muscular posterior que, lá em baixo, causa problemas a nível da tíbio-társica?... E a problemática psiquiátrica associada a dores na temporo-mandibular? Será causa das dores - portanto psicogénicas -, ou estas serão consequência de um estado geral de insegurança que advem da condição física?... Podíamos continuar eternamente... tudo para demonstrar que, apesar de já sabermos muito sobre determinadas relações ou correlações, muitos de nós temos a tendência irritante para inferirmos de tais correlações relações de causa-efeito, quando, na realidade, não sabemos muito bem se é o ovo ou a galinha que surge primeiro...).
De uma coisa tenho a certeza: não faz qualquer sentido os fisioterapeutas de Reeducação Postural manterem-se calados relativamente a esta tão propalada condição: a Síndroma da Deficiência Postural. Os métodos de tratamento segundo Alves da Silva podem ser interpretados segundo a lógica de Mézières e vice-versa. Mas nada me leva a pensar que os mézièristas e RPGistas portugueses conhecem Alves da Silva ou que este conheça a intervenção mio-fascial global dos fisioterapeutas. O que proponho é, primeiramente, que exista aquele estado de perplexidade, que tantas vezes possuo, derivado de tantas pessoas falarem de formas diferentes dos mesmos conteúdos. Tantos significantes diferentes para o mesmo género de semântica!... isto é sintomático não só do que falo aqui como de muitas das variadas técnicas de fisioterapia (pois, muitas delas, apesar de terem sido formadas em diferentes contextos ou por diferentes especialistas, dizem praticamente o mesmo). Eis que urge a necessidade de se criar uma parcimoniosidade (semiótica) da Fisioterapia... ou das ciências da postura em geral!... (Mas destes terrenos da "filosofia analítica" da fisioterapia já muito falei, e decerto que nada poderia acrescentar ao que já génios - como Russell ou Wittgenstein - disseram).

segunda-feira, julho 20, 2009

A legitimidade da intervenção reeducativa: relembrando Hegel

Nos últimos tempos tenho desdenhado reflectir na legitimidade de intervencionarmos no doente em termos ditos “estruturais” ou “reeducativos”. Se um doente tem determinada perturbação e procura, directa ou indirectamente, um fisioterapeuta, assumimos logo, e à partida, que existe uma condição “anormal” que teremos que “normalizar”. Qualquer acto terapêutico, assim como qualquer acto médico, é uma forma de interferirmos na “natureza” de determinada perturbação, o que nos leva a pensar que o profissional de saúde é sempre um agente de um certo artificialismo, no sentido em que se intromete numa qualquer forma de (des)equilíbrio.
No contexto da Reeducação Postural, é comum encontrarmos certos indivíduos com certas posturas que estão de tal forma “fixadas” ou “estruturadas”, que se torna relevante reflectir até que ponto devemos “interferir” naquilo que vemos. Devemos, por exemplo, deslordosar uma hiperlordose lombar que existe há décadas em determinado indivíduo? Devemos corrigir determinada cifose num indivíduo idoso que nunca fez fisioterapia em toda a sua vida? Devemos induzir alongamentos “correctivos” em indivíduos com idades avançadas que nunca fizeram ou praticaram qualquer tipo de desporto?...
Ora, é preciso entender que é, efectivamente, real que certos indivíduos se encontram fixados ou estruturados em determinados “designs posturais”, o que nos leva a pensar que, no mínimo, a intervenção postural deverá ser feita de forma lenta e subtil. Porém, não posso deixar de pensar que, independentemente do grau de “estruturação” de determinada deformidade, seria um crime não tentar interferir com esse processo, tal como seria um crime deixar evoluir um estado cancerígeno ou deixar que uma demência se instalasse mais precocemente. Portanto, o que pretendo dizer é que mesmo que a patologia postural seja algo “normal” para determinado indivíduo, não podemos deixar de tentar induzir uma nova noção de normalidade, ainda mais porque, se o indivíduo em questão nos procura, é provável que o seu equilíbrio não seja assim tão “normal” (se a dor existe, então algo a provoca...).
Ora, o que pretendo introduzir aqui é a noção de que o “conflito” poderá ser necessário à evolução. Claro que o conflito poderá ser factor de agravamento da dor... E ninguém sabe melhor do que eu que, ao invertermos a evolução de determinada deformidade postural com demasiadada celeridade, arriscamo-nos a aumentar os sintomas ao invés de os reduzirmos. Mas, aparentemente, parece que o que conta é mais a viagem do que o destino, pelo que o conflito é necessário à estruturação de uma nova personalidade corpórea (nem que seja com a ajuda de algum paliativo anti-álgico, um analgésico ou um anti-inflamatório...).
Ninguém melhor do que Hegel espelhou extraordinariamente bem a noção de “evolução por meio de conflito”. Pois, para este filósofo, a evolução do homem, e da sua História, faz-se sempre por um processo dialéctico entre um facto e outro que o contraria; algo a que, mais tarde, se designou denominar respectivamente de “tese” e “antítese”. Ora, da relação entre um factor que tende num sentido e um factor que tende no sentido que, de certa maneira, contraria o primeiro, resulta algo mais organizado, algo mais evoluído, algo que não é só a soma dos factores anteriores. A esse “algo” convencionou-se chamar-se “síntese”. E é precisamente de um conjunto de sínteses que se trata a intervenção postural no ser humano. O que fazemos é, através da exploração de uma antítese (porque contrariamos as hegemonias posturais evolutivas e ontogenéticas), por meio por exemplo da deslordose ou da expiração, induzimos ao estabelecimento de uma síntese que é, no fundo, um estado de organização que tende ao “equilíbrio muscular e postural”.
Portanto, não sei se acredito na ideia de “postura normal para o sujeito”, se essa mesma postura se se afasta muito daquilo que consideramos o “normal” (ex: a 'bela forma' de Mézières). Acredito, sim, que não devemos intervencionar doentes que não possuam manifestações clínicas ou que simplesmente não tenham pedido para ser intervencionados. Mas, se o doente me procura, terá a sorte – ou o azar – de lhe ter calhado um terapeuta de orientação “morfodinâmica”, o qual consubstancia uma intervenção a um nível mais global que as intervenções analíticas (que são, de facto, menos indutoras de qualquer tipo de conflito).
Outra coisa que deverá ser pensada é a utilização de medicamentos como factores que auxiliam a vivência do “conflito”. Se o conflito deverá ser uma condição para a produção de uma nova forma de equilíbrio mais próxima da “homeostase”, não é de negligenciar que é de todo desnecessário tentar realizar a “viagem” no sentido da “síntese” sem a ajuda de métodos que promovam a diminuição das dores. Portanto, nada impede a utilização de algumas terapêuticas anti-sintomáticas, como a medicação analgésica e/ou anti-inflamatória. Para alguns doentes, pode ser a única forma de os intervencionarmos com um nível “sofrível” de dor.
Portanto, termino dizendo que, ao potenciar o paradigma da Reeducação Postural, não me estou a opôr a outras terapêuticas “auxiliadoras”, desde claro que estas últimas não contraponham a lógica da primeira.

sábado, julho 04, 2009

Viver o seu corpo. Para uma pedagogia do movimento

É o título de um livro de Yvonne Berge. É uma obra consagrada à importância da corporeidade, num sentido epistemológico que o "nosso" Manuel Sérgio tem apresentado e desenvolvido com bastante afinco. A obra defende a ludomotricidade e a dança enquanto formas criativas e expressivas de viver o corpo, em oposição à forma mais analítica, redutora e maquinista da vivência corporal do Fitness e das práticas gímnicas contemporâneas. É impressionante a forma como é defendido o método de "libertação psicossomática" por parte da autora. Assim como eu tenho defendido que o alongamento e o relaxamento (a inibição tónica) devem principar qualquer trabalho físico, também a autora defende que, pelo facto de os utentes serem comummente tensos e defensivos, o relaxamento psicossomático deve preceder o trabalho expressivo propriamente dito. Mas, ainda antes desse relaxamento, Berge defende, como primeira fase do processo "terapêutico/criativo", a libertação da sensibilidade receptiva.
Esta libertação permitirá a "abertura" ao processo de relaxamento profundo. O relaxamento permitirá a preparação de todo o processo criativo e expressivo. E este processo que é sobretudo a dança, também pode ser a criação artística ou a psicomotricidade, desde que feitas de forma "amadora" como um meio e não como um fim.
Na primeira fase de todo o processo, a autora defende a realização de tarefas de consciencialização corporal, sem que as mesmas apelem à reflexão ou a qualquer processo racional. O processo corpóreo tem de ser basilar, carnal, animal, e não superior ou racionalista. A reflexão impede a verdadeira integração corpórea, pois a mesma trata de ser um mecanismo de defesa. O trabalho deve ser básico e simples, sem correcções posturais conscientes que apelem a um certo/errado. "Nenhuma terapia saberá vencer más posturas enquanto não se eliminar na criança o medo, a timidez, a submissão passiva, o receio de desagradar ou a ânsia de fazer correcto para receber aprovação. É indispensável criar um clima de descontração que conceda a cada um o direito de se enganar, de ser simplesmente ele próprio." Isto leva-nos a pensar que o exercício feito "correctamente" pode não ser o nosso fim. Interessa mais a sensação, a vivência criativa do corpo, feita de forma totalmente livre. Não interessa tanto fazer "bem" ou "mal", mas fazer de forma autónoma e idiossincrática. E este devia ser o espírito do processo de e-ducação, o espírito de tirar do indivíduo o que ele tem de melhor, e não de inculcar no indivíduo formas correctas e disciplinadores de "ser" e "estar". Na realidade, todo o processo educativo deveria ser o mais "livre" possível, pois a incrustação de conhecimentos vindos de fora, e de forma muitas vezes acrítica, é uma mera imposição... e que direito tem alguém de impor uma realidade a um outro alguém?...
A autora questiona também o processo de intelectualização pura, o qual é, limitador, quando não integra a corporeidade. "Quando o intelecto se torna o único ponto de referência e de valorização, opera-se uma ruptura profunda na personalidade. Perde-se toda a capacidade de espontaneidade." Portanto, não interessa um intelecto sem corpo, não interessa uma racionalidade desprovida de concreto, não interessa a reflexão se desprovida do "palco das emoções". O que não significa aceitar a corporeidade tal como é vendida pelo Fitness ou pelo Wellness, pois a vivência do "corpo industrial" não é reeducativa ou reconstrutiva mas meramente escapista.
“Pelo relaxamento descobrimos já não o corpo que temos mas o corpo que somos.” O relaxamento é um pré-requisito de qualquer tipo de trabalho expressivo. É importante a criança “abandonar-se”! “O relaxamento resulta de uma harmoniosa repartição do tónus muscular, que deverá estar: bem situado, bem doseado, incessantemente adaptado aos movimentos exigidos.” “O chão é o lugar ideal para nos descontrairmos. A sua própria dureza alivia as crispações musculares, as tensões nervosas, enquanto que, sobre uma superfície mole, esta última cede e contribui para acentuar as más posições da coluna vertebral.” O relaxamento permite descondicionar o corpo das tensões sociais e hiper-racionais, permite preparar o corpo para tornar todo o esforço subsequente fácil. O relaxamento começa com a respiração. “Uma respiração desordenada pode causar perturbações no organismo e até criar graves desordens psíquicas.” “Mas a boa respiração não se aprende; estabelece-se espontaneamente quando o corpo está bem “afinado”, completamente descontraído.”
A obra de Berge evolui para a explicação das leis da estática. Um pouco ao jeito do que temos afirmado, a autora deduz – e bem – que a região posterior do corpo está feita para a força, enquanto a região anterior do corpo está feita para a flexibilidade. Infelizmente, a autora cai no erro de Balland, segundo o qual esta tendência deve ser mantida através da prática gímnica. Ou seja, Balland defende os exercícios de força para a parte posterior e os exercícios de flexibilidade para a zona anterior do corpo, negligenciando que é essa a tendência hegemónica do corpo e que é precisamente o contrário que deve ser realizado.
O livro entra, depois, nas actividades lúdidas, como a dança e o treino de equilíbrio, as quais estão correctas num certo ponto de vista, mas nunca no ponto de vista segundo o qual estas actividades permitem "fortalecer" a extensão e o endireitamento. O pré-requisito continua a ser o alongamento posterior; o trabalho lúdico-motor apenas potencia a relação harmoniosa com o todo e com a entidade postural entendida no sentido psicossomático.