sábado, julho 04, 2009

Viver o seu corpo. Para uma pedagogia do movimento

É o título de um livro de Yvonne Berge. É uma obra consagrada à importância da corporeidade, num sentido epistemológico que o "nosso" Manuel Sérgio tem apresentado e desenvolvido com bastante afinco. A obra defende a ludomotricidade e a dança enquanto formas criativas e expressivas de viver o corpo, em oposição à forma mais analítica, redutora e maquinista da vivência corporal do Fitness e das práticas gímnicas contemporâneas. É impressionante a forma como é defendido o método de "libertação psicossomática" por parte da autora. Assim como eu tenho defendido que o alongamento e o relaxamento (a inibição tónica) devem principar qualquer trabalho físico, também a autora defende que, pelo facto de os utentes serem comummente tensos e defensivos, o relaxamento psicossomático deve preceder o trabalho expressivo propriamente dito. Mas, ainda antes desse relaxamento, Berge defende, como primeira fase do processo "terapêutico/criativo", a libertação da sensibilidade receptiva.
Esta libertação permitirá a "abertura" ao processo de relaxamento profundo. O relaxamento permitirá a preparação de todo o processo criativo e expressivo. E este processo que é sobretudo a dança, também pode ser a criação artística ou a psicomotricidade, desde que feitas de forma "amadora" como um meio e não como um fim.
Na primeira fase de todo o processo, a autora defende a realização de tarefas de consciencialização corporal, sem que as mesmas apelem à reflexão ou a qualquer processo racional. O processo corpóreo tem de ser basilar, carnal, animal, e não superior ou racionalista. A reflexão impede a verdadeira integração corpórea, pois a mesma trata de ser um mecanismo de defesa. O trabalho deve ser básico e simples, sem correcções posturais conscientes que apelem a um certo/errado. "Nenhuma terapia saberá vencer más posturas enquanto não se eliminar na criança o medo, a timidez, a submissão passiva, o receio de desagradar ou a ânsia de fazer correcto para receber aprovação. É indispensável criar um clima de descontração que conceda a cada um o direito de se enganar, de ser simplesmente ele próprio." Isto leva-nos a pensar que o exercício feito "correctamente" pode não ser o nosso fim. Interessa mais a sensação, a vivência criativa do corpo, feita de forma totalmente livre. Não interessa tanto fazer "bem" ou "mal", mas fazer de forma autónoma e idiossincrática. E este devia ser o espírito do processo de e-ducação, o espírito de tirar do indivíduo o que ele tem de melhor, e não de inculcar no indivíduo formas correctas e disciplinadores de "ser" e "estar". Na realidade, todo o processo educativo deveria ser o mais "livre" possível, pois a incrustação de conhecimentos vindos de fora, e de forma muitas vezes acrítica, é uma mera imposição... e que direito tem alguém de impor uma realidade a um outro alguém?...
A autora questiona também o processo de intelectualização pura, o qual é, limitador, quando não integra a corporeidade. "Quando o intelecto se torna o único ponto de referência e de valorização, opera-se uma ruptura profunda na personalidade. Perde-se toda a capacidade de espontaneidade." Portanto, não interessa um intelecto sem corpo, não interessa uma racionalidade desprovida de concreto, não interessa a reflexão se desprovida do "palco das emoções". O que não significa aceitar a corporeidade tal como é vendida pelo Fitness ou pelo Wellness, pois a vivência do "corpo industrial" não é reeducativa ou reconstrutiva mas meramente escapista.
“Pelo relaxamento descobrimos já não o corpo que temos mas o corpo que somos.” O relaxamento é um pré-requisito de qualquer tipo de trabalho expressivo. É importante a criança “abandonar-se”! “O relaxamento resulta de uma harmoniosa repartição do tónus muscular, que deverá estar: bem situado, bem doseado, incessantemente adaptado aos movimentos exigidos.” “O chão é o lugar ideal para nos descontrairmos. A sua própria dureza alivia as crispações musculares, as tensões nervosas, enquanto que, sobre uma superfície mole, esta última cede e contribui para acentuar as más posições da coluna vertebral.” O relaxamento permite descondicionar o corpo das tensões sociais e hiper-racionais, permite preparar o corpo para tornar todo o esforço subsequente fácil. O relaxamento começa com a respiração. “Uma respiração desordenada pode causar perturbações no organismo e até criar graves desordens psíquicas.” “Mas a boa respiração não se aprende; estabelece-se espontaneamente quando o corpo está bem “afinado”, completamente descontraído.”
A obra de Berge evolui para a explicação das leis da estática. Um pouco ao jeito do que temos afirmado, a autora deduz – e bem – que a região posterior do corpo está feita para a força, enquanto a região anterior do corpo está feita para a flexibilidade. Infelizmente, a autora cai no erro de Balland, segundo o qual esta tendência deve ser mantida através da prática gímnica. Ou seja, Balland defende os exercícios de força para a parte posterior e os exercícios de flexibilidade para a zona anterior do corpo, negligenciando que é essa a tendência hegemónica do corpo e que é precisamente o contrário que deve ser realizado.
O livro entra, depois, nas actividades lúdidas, como a dança e o treino de equilíbrio, as quais estão correctas num certo ponto de vista, mas nunca no ponto de vista segundo o qual estas actividades permitem "fortalecer" a extensão e o endireitamento. O pré-requisito continua a ser o alongamento posterior; o trabalho lúdico-motor apenas potencia a relação harmoniosa com o todo e com a entidade postural entendida no sentido psicossomático.

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