Eis
que assiste tanto ao desiderato corrente das diferentes religiões como ao
tecido ideomático que releva e transpõe as dissemelhantes escolas e tendências
da Psicanálise esse objeto comum que se constitui no caminho quase perpétuo (se
não verdadeiramente infinitesimal) e “alquímico” que direciona o homem na via
da perfectibilidade espiritual, se bem que ambas as “vias” proponham, para o
decurso da “iluminação” a alcançar, diferentes linguagens, assim como
diferentes predisposições quase “prescritivistas”, que, não obstante os pontos
ontologicamente semelháveis, ainda assim não deixam de, a determinado ponto, se
reciprocamente negarem.
Pois
que a Liberdade, entendida como o despimento das amarras psicossociais
necessariamente – porque social e disciplinarmente – tecidas, enceta o caminho
tanto de uma teoria psicanalítica convertida pragmaticamente em psicoterapia
dinâmica como da maior parte das Estruturas espirituais que, por si mesmas, se
convertem em exercícios religiosos mais ou menos desalienadores, mais ou menos
dogmáticos. Uma Liberdade entendida como o caminho do homem feito
simultaneamente para a frente e para trás, progressivo porque se trata de uma
evolução, de um crescimento, mas regressivo porque busca teleologicamente a
natureza imaculada e selvagem de um ser ainda humanamente intocado. Uma
liberdade que pressupõe o acesso a Deus, feito progressivamente no sentido de o
homem assumir-se a si mesmo como Deus (tomando, simbolicamente o lugar do pater, num processo que a psicanálise
freudiana entende como “parricida” e que, em termos literários, Dostoiévski tão
bem representou em «Os irmãos Karamázov»), feito regressivamente no sentido da
desocultação do caminho babélico para o paraíso original. Uma liberdade que se
faz caminhando para a frente no recuo persistente ao passado, numa via eterna
ou quase eternamente perfeita na busca da perfeição que exigirá necessariamente
o retorno, a reminiscência, a negociação com o conjunto intrépido e quase
inesgotável de fantasmas que ladeiam o paraíso da casa-Mãe inconsciente e
cognitivamente representado por um sempre complexificável Eu.
Não
obstante a importância do “eterno retorno” e da “reactualização nostálgica das
origens” (Mircéa Eliade) tanto no exercício psicodinâmico como na prática da
religião pessoalmente exercitada ou coletivamente organizada, eis que, a um
nível pragmático, tanto o destino como a Ética de ambas as vias se diferenciam
quase radicalmente, ao ponto de, eventualmente, os dois “discursos” poderem
obstar-se ou inimizar-se.
De
facto, a psicanálise propende a libertação face à estrutura supermoral,
supergóica, o que – bem entendido – permitirá centrar o homem no plano íntimo
da sua individualidade, o que subjaz a uma liberdade com vista à felicidade,
mais a do próprio do que a do Eu coletivo.
Daqui sobra uma “Espiritualidade” essencialmente egoísta, feita para as
necessidades imediatas e o tecido de uma vida específica. No máximo, o homem
tornar-se-á um Deus livre e libertador, mas não social e Humanamente
edificador. Para além do mais, o plano da mundanidade e do Eros farão perder
muitas vezes o objeto do Conhecimento e do Espírito no mais peculiar sentido do
termo.
Por
outro lado, o plano da Espiritualidade, no sentido do verdadeiro Esoterismo – o
que pode ou não incluir o exercício de uma religião particular ou
institucionalmente organizada – pretende que a via da Libertação não fique pelo
caminho no (re)acesso a Deus, que não se esgote no plano diretivo da felicidade
individual e da prescrição hedonista, mas que permita esgotar-se somente quando
a Iluminação genuinamente ontológica tenha tido lugar, com esta a requerer um
processo intermédio de sofrimento que é condição necessária a um crescimento
que se fará no ventre de uma plenitude coletiva. O horizonte é, portanto, mais
alargado do que aquele que se obtém com a Psicanálise, pois se na Psicodinâmica
o exercício emocional pode, pelo menos no processo e/ou caminho que tende para
a Libertação, excluir-se de uma obrigação Ética, já na Espiritualidade
esotérica a via terá sempre de ser Ética, pois que a “emocionalidade” do Eu
terá de ser simultaneamente individual e coletiva, para além de compulsivamente
conluiada com o plano da Razão, Razão pós-moderna de uma «racionalidade ética/estética»
pós-científica [Claro que, tanto o plano do “sofrimento-crise”, como o plano da
racionalidade e da felicidade coletiva são também reivindicações do exercício
psicodinâmico, as quais, não sendo negáveis, ainda assim não assumem o plano
teleológico de abrangência da espiritualidade esotérica].
Não
nego, portanto, que o objeto final da Psicanálise permita também a Eticidade e
a harmonização do tecido social (até porque a felicidade individual possibilita
a construção de relações mais harmoniosas, em que os mecanismos de defesa
parecem perder parte da sua “agressividade” e em que o “egoísmo sublimatório”
perderá naturalmente força, com todas as consequências positivas que isso tem
para a (des)construção de novos recalcamentos). Porém, o caminho para essa
Libertação ética passa muitas vezes pela procura (assaz temporária) da
consumação da individualidade ego-maníaca e até do exercício mundano da
carnalidade espiritualmente desirmanada, “meios” que trairão o fim Ético que
nos pretendemos como um todo social. Já o plano da Espiritualidade esotérica
pretende o exercício compulsivo da Eticidade e a busca de um Sentido que dificilmente
(ou só controvertidamente) poderá ser obtido com a traição da racionalidade
ética (aqui a felicidade individual surge não como um meio mas como uma
consequência natural de uma vida ética; o que significa que, na Psicanálise,
parte-se do Eu para o Nós, enquanto que na Espiritualidade parte-se do Eu
coletivo para o Eu individual). Seria este, inclusivamente, o plano da Religião
organizada canónica, não fossem os preceitos rígidos da matriz de uma Ética
exigente virem a ser processados num formato de transliteração “carnal”
proibicionista que acabou, a um nível essencialmente Histórico, por transformar
em dogma, crime e destruição aquilo que somente deveria pertencer ao plano da
Liberdade e da Beleza (de resto o já conhecido papel da Religião como –
ela-mesma – socialmente castradora – como a própria psicanálise freudiana
tantas vezes terá referenciado, já na senda da filosofia de Feuerbach,
Nietzsche ou Marx –, e portanto traidora da sua intenção basilar).
Obviamente,
neste nosso mundo moderno dessacralizado e compulsivamente mundanizado, a
exigência de um regresso ao Sagrado e ao Espírito urge como desígnio da
Pós-modernidade e como necessidade fulcral de uma nova Racionalidade. O caminho
exige o Esoterismo, e não tanto a Psicodinâmica que, até agora, se tem
preocupado sobretudo com o plano da felicidade individual. O caminho exige,
eventualmente, até o Sacrifício, a negação de certas formas de felicidade em
prol de um Bem maior e de um Eu maior. Desafio óbvio no contexto de um tempo de
valoração excessivamente psicologizante, em que o Eu individual é tratado como
um pobre coitado, repleto de insuficiências e sedento de Direitos, e em que
tudo e todos obstam ao sofrimento e procuram o caminho “moderno”, que é sempre
o que custa menos e o que possibilita os resultados mais céleres. Desafio
imenso neste nosso mundo em que o ser que troca o prazer pela estoicidade, o
hedonismo pela disciplina, o bem-estar pelo sacrifício e o Direito do “Eu
individual” pelo Direito do “Eu global” é visto como um extraterrestre desumano
e alienado (louco, diferente, anormal, excêntrico, etc.), quando é precisamente
o comportamento sacrificial e ético que subjaz à verdadeira Racionalidade,
condição fundamental da Humanidade.
Um
dia voltaremos a querer o percurso mais longo e mais difícil, pois que neste
perduraremos por muito mais tempo! Um dia voltaremos ao tempo do Sagrado e ao
tempo do Classicismo! E rezaremos para que o Homem possa, de facto, augurar uma
verdadeira evolução, para que não volte – como que arrebatado por um ciclo
temporal vicioso – a cair nos erros próprios daqueles tempos clássicos e
sacralizados. É que, caindo nesses erros, o Homem já não estará de facto num
verdadeiro tempo do Sagrado!
Em
última análise, o que se pretende decisivamente é o encontro do Homem com o
Universal e o Intemporal, o que acarreta a fusão do ser humano com o tecido
valorativo da “Cidade de Deus” (que não deixa de ser, em última instância, uma
criação do próprio Homem), e, sobretudo, a negação (e desapego) dos “valores”
próprios do tempo específico em que vive, que são quase sempre apanágio de
necessidades superficiais e mundanas que só fazem sentido face a um contexto
forçosamente parcial e redutor.
Sejamos,
então, definitivamente, o Homem sem Tempo, o Homem fora do tempo, o Homem feito
“causa incausada”! (mesmo que tal ensejo reifique uma crónica oposição contra a
moda, e uma tendência inescapável para o ascetismo e o isolamento de um ser
eternamente “estrangeiro” – um “homem sem qualidades” no sentido de Musil –,
uma desadaptação social muitas vezes encarada por uma certa psicanálise e por
boa parte da Psiquiatria como precursora, senão manifesta de um comportamento
psicopatológico, clinicamente diagnosticável como “perturbação” e até social e
juridicamente afrontada como uma excentricidade ou até mesmo como um tipo de
reacionarismo antissocial).
O
contrato Espiritual passa obviamente pela via do Amor e esta pelo exercício
sacrificial (diferente da visão erótica do Amor no sentido psicanalítico, em
que a relação com os outros é vista em termos das necessidades do “Eu”, se bem
que o ser “amado” pelos progenitores tenda a ser capaz de amar construtivamente
o “outro”). Bases de edificação do homem do Espírito, que, dada a via das
infindas tolerância e benignidade existentes num mundo onde tais qualidades são
vistas como pouco “competitivas”, pode muitas vezes ser encarado como um
“idiota” (no sentido dostoiévskiano do termo), e, dada a via preferencial de
negação da carnalidade (onde, de facto, reside a fonte do Mal), pode muitas
vezes ser visto como um ser casto e “castrado”, o qual, segundo certa intenção
psicanalítica, carece de uma libertação face ao “fantasma materno” com o qual o
“monge” sem líbido possui uma relação fantasmaticamente incestuosa traduzida
presumivelmente numa “fixação edipiana”… libertação que poderia levar ao
resultado oposto ao da Libertação no sentido “espiritual”, pois que a afirmação
do Eu individual implica, de algum modo, a assunção da malignidade própria da
instintividade egotista, necessariamente destruidora de um plano imediato de
Eticidade abrangente (de facto, ao propor uma explicação para o sentimento de
culpa que jaz na base do sacrifício – e à imagem do que a Psicologia e as
neurociências têm feito… – a Psicanálise pretende, de algum modo, erradicar
esse mesmo sentimento de culpa, por meio de um exorcismo que tem o mote tanto
da mera justificação racional como da própria atividade no divã; a erradicação
do sentimento de culpa pode facilitar o bem-estar psíquico individual, mas
funcionará inevitavelmente como um meio de desconstrução das bases da Ética a
“longo prazo”, assim como da “Obra”, a qual tende a resultar de um certo
desiderato sublimatório de compensação narcísica). Que o mesmo será dizer que a
libertação do inconsciente possui uma menor simbiose com o plano moral e
portanto racional, enquanto que a libertação da “alma” (de carácter inclusivo
essencialmente consciente) possui – semelhantemente ao revisto no plano da
inevitabilidade da Liberdade responsável propalado pelos existencialistas (pois
que, no plano da consciência, em que “a existência precede a essência”, a
responsabilidade moral antecipa qualquer tipo de preocupação determinística a priori indireta capaz de agir como
viático de desresponsabilização moral) – uma maior relação com a eticidade.
Ficam,
portanto, nimiamente expostos pontos de contacto e pontos de oposição entre a
teoria psicanalítica (predominantemente clássica) e o reino da ascensão
espiritual, nos seus termos essencialmente “aplicados” e “terapêuticos”.
(a publicar na revista 'Biosofia')
(a publicar na revista 'Biosofia')
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