sexta-feira, outubro 05, 2012

Esoterismo e Psicanálise: encontros e oposição

Eis que assiste tanto ao desiderato corrente das diferentes religiões como ao tecido ideomático que releva e transpõe as dissemelhantes escolas e tendências da Psicanálise esse objeto comum que se constitui no caminho quase perpétuo (se não verdadeiramente infinitesimal) e “alquímico” que direciona o homem na via da perfectibilidade espiritual, se bem que ambas as “vias” proponham, para o decurso da “iluminação” a alcançar, diferentes linguagens, assim como diferentes predisposições quase “prescritivistas”, que, não obstante os pontos ontologicamente semelháveis, ainda assim não deixam de, a determinado ponto, se reciprocamente negarem.
Pois que a Liberdade, entendida como o despimento das amarras psicossociais necessariamente – porque social e disciplinarmente – tecidas, enceta o caminho tanto de uma teoria psicanalítica convertida pragmaticamente em psicoterapia dinâmica como da maior parte das Estruturas espirituais que, por si mesmas, se convertem em exercícios religiosos mais ou menos desalienadores, mais ou menos dogmáticos. Uma Liberdade entendida como o caminho do homem feito simultaneamente para a frente e para trás, progressivo porque se trata de uma evolução, de um crescimento, mas regressivo porque busca teleologicamente a natureza imaculada e selvagem de um ser ainda humanamente intocado. Uma liberdade que pressupõe o acesso a Deus, feito progressivamente no sentido de o homem assumir-se a si mesmo como Deus (tomando, simbolicamente o lugar do pater, num processo que a psicanálise freudiana entende como “parricida” e que, em termos literários, Dostoiévski tão bem representou em «Os irmãos Karamázov»), feito regressivamente no sentido da desocultação do caminho babélico para o paraíso original. Uma liberdade que se faz caminhando para a frente no recuo persistente ao passado, numa via eterna ou quase eternamente perfeita na busca da perfeição que exigirá necessariamente o retorno, a reminiscência, a negociação com o conjunto intrépido e quase inesgotável de fantasmas que ladeiam o paraíso da casa-Mãe inconsciente e cognitivamente representado por um sempre complexificável Eu.
Não obstante a importância do “eterno retorno” e da “reactualização nostálgica das origens” (Mircéa Eliade) tanto no exercício psicodinâmico como na prática da religião pessoalmente exercitada ou coletivamente organizada, eis que, a um nível pragmático, tanto o destino como a Ética de ambas as vias se diferenciam quase radicalmente, ao ponto de, eventualmente, os dois “discursos” poderem obstar-se ou inimizar-se.
De facto, a psicanálise propende a libertação face à estrutura supermoral, supergóica, o que – bem entendido – permitirá centrar o homem no plano íntimo da sua individualidade, o que subjaz a uma liberdade com vista à felicidade, mais a do próprio do que a do Eu coletivo. Daqui sobra uma “Espiritualidade” essencialmente egoísta, feita para as necessidades imediatas e o tecido de uma vida específica. No máximo, o homem tornar-se-á um Deus livre e libertador, mas não social e Humanamente edificador. Para além do mais, o plano da mundanidade e do Eros farão perder muitas vezes o objeto do Conhecimento e do Espírito no mais peculiar sentido do termo.
Por outro lado, o plano da Espiritualidade, no sentido do verdadeiro Esoterismo – o que pode ou não incluir o exercício de uma religião particular ou institucionalmente organizada – pretende que a via da Libertação não fique pelo caminho no (re)acesso a Deus, que não se esgote no plano diretivo da felicidade individual e da prescrição hedonista, mas que permita esgotar-se somente quando a Iluminação genuinamente ontológica tenha tido lugar, com esta a requerer um processo intermédio de sofrimento que é condição necessária a um crescimento que se fará no ventre de uma plenitude coletiva. O horizonte é, portanto, mais alargado do que aquele que se obtém com a Psicanálise, pois se na Psicodinâmica o exercício emocional pode, pelo menos no processo e/ou caminho que tende para a Libertação, excluir-se de uma obrigação Ética, já na Espiritualidade esotérica a via terá sempre de ser Ética, pois que a “emocionalidade” do Eu terá de ser simultaneamente individual e coletiva, para além de compulsivamente conluiada com o plano da Razão, Razão pós-moderna de uma «racionalidade ética/estética» pós-científica [Claro que, tanto o plano do “sofrimento-crise”, como o plano da racionalidade e da felicidade coletiva são também reivindicações do exercício psicodinâmico, as quais, não sendo negáveis, ainda assim não assumem o plano teleológico de abrangência da espiritualidade esotérica].
Não nego, portanto, que o objeto final da Psicanálise permita também a Eticidade e a harmonização do tecido social (até porque a felicidade individual possibilita a construção de relações mais harmoniosas, em que os mecanismos de defesa parecem perder parte da sua “agressividade” e em que o “egoísmo sublimatório” perderá naturalmente força, com todas as consequências positivas que isso tem para a (des)construção de novos recalcamentos). Porém, o caminho para essa Libertação ética passa muitas vezes pela procura (assaz temporária) da consumação da individualidade ego-maníaca e até do exercício mundano da carnalidade espiritualmente desirmanada, “meios” que trairão o fim Ético que nos pretendemos como um todo social. Já o plano da Espiritualidade esotérica pretende o exercício compulsivo da Eticidade e a busca de um Sentido que dificilmente (ou só controvertidamente) poderá ser obtido com a traição da racionalidade ética (aqui a felicidade individual surge não como um meio mas como uma consequência natural de uma vida ética; o que significa que, na Psicanálise, parte-se do Eu para o Nós, enquanto que na Espiritualidade parte-se do Eu coletivo para o Eu individual). Seria este, inclusivamente, o plano da Religião organizada canónica, não fossem os preceitos rígidos da matriz de uma Ética exigente virem a ser processados num formato de transliteração “carnal” proibicionista que acabou, a um nível essencialmente Histórico, por transformar em dogma, crime e destruição aquilo que somente deveria pertencer ao plano da Liberdade e da Beleza (de resto o já conhecido papel da Religião como – ela-mesma – socialmente castradora – como a própria psicanálise freudiana tantas vezes terá referenciado, já na senda da filosofia de Feuerbach, Nietzsche ou Marx –, e portanto traidora da sua intenção basilar).
Obviamente, neste nosso mundo moderno dessacralizado e compulsivamente mundanizado, a exigência de um regresso ao Sagrado e ao Espírito urge como desígnio da Pós-modernidade e como necessidade fulcral de uma nova Racionalidade. O caminho exige o Esoterismo, e não tanto a Psicodinâmica que, até agora, se tem preocupado sobretudo com o plano da felicidade individual. O caminho exige, eventualmente, até o Sacrifício, a negação de certas formas de felicidade em prol de um Bem maior e de um Eu maior. Desafio óbvio no contexto de um tempo de valoração excessivamente psicologizante, em que o Eu individual é tratado como um pobre coitado, repleto de insuficiências e sedento de Direitos, e em que tudo e todos obstam ao sofrimento e procuram o caminho “moderno”, que é sempre o que custa menos e o que possibilita os resultados mais céleres. Desafio imenso neste nosso mundo em que o ser que troca o prazer pela estoicidade, o hedonismo pela disciplina, o bem-estar pelo sacrifício e o Direito do “Eu individual” pelo Direito do “Eu global” é visto como um extraterrestre desumano e alienado (louco, diferente, anormal, excêntrico, etc.), quando é precisamente o comportamento sacrificial e ético que subjaz à verdadeira Racionalidade, condição fundamental da Humanidade.
Um dia voltaremos a querer o percurso mais longo e mais difícil, pois que neste perduraremos por muito mais tempo! Um dia voltaremos ao tempo do Sagrado e ao tempo do Classicismo! E rezaremos para que o Homem possa, de facto, augurar uma verdadeira evolução, para que não volte – como que arrebatado por um ciclo temporal vicioso – a cair nos erros próprios daqueles tempos clássicos e sacralizados. É que, caindo nesses erros, o Homem já não estará de facto num verdadeiro tempo do Sagrado!
Em última análise, o que se pretende decisivamente é o encontro do Homem com o Universal e o Intemporal, o que acarreta a fusão do ser humano com o tecido valorativo da “Cidade de Deus” (que não deixa de ser, em última instância, uma criação do próprio Homem), e, sobretudo, a negação (e desapego) dos “valores” próprios do tempo específico em que vive, que são quase sempre apanágio de necessidades superficiais e mundanas que só fazem sentido face a um contexto forçosamente parcial e redutor.
Sejamos, então, definitivamente, o Homem sem Tempo, o Homem fora do tempo, o Homem feito “causa incausada”! (mesmo que tal ensejo reifique uma crónica oposição contra a moda, e uma tendência inescapável para o ascetismo e o isolamento de um ser eternamente “estrangeiro” – um “homem sem qualidades” no sentido de Musil –, uma desadaptação social muitas vezes encarada por uma certa psicanálise e por boa parte da Psiquiatria como precursora, senão manifesta de um comportamento psicopatológico, clinicamente diagnosticável como “perturbação” e até social e juridicamente afrontada como uma excentricidade ou até mesmo como um tipo de reacionarismo antissocial).
O contrato Espiritual passa obviamente pela via do Amor e esta pelo exercício sacrificial (diferente da visão erótica do Amor no sentido psicanalítico, em que a relação com os outros é vista em termos das necessidades do “Eu”, se bem que o ser “amado” pelos progenitores tenda a ser capaz de amar construtivamente o “outro”). Bases de edificação do homem do Espírito, que, dada a via das infindas tolerância e benignidade existentes num mundo onde tais qualidades são vistas como pouco “competitivas”, pode muitas vezes ser encarado como um “idiota” (no sentido dostoiévskiano do termo), e, dada a via preferencial de negação da carnalidade (onde, de facto, reside a fonte do Mal), pode muitas vezes ser visto como um ser casto e “castrado”, o qual, segundo certa intenção psicanalítica, carece de uma libertação face ao “fantasma materno” com o qual o “monge” sem líbido possui uma relação fantasmaticamente incestuosa traduzida presumivelmente numa “fixação edipiana”… libertação que poderia levar ao resultado oposto ao da Libertação no sentido “espiritual”, pois que a afirmação do Eu individual implica, de algum modo, a assunção da malignidade própria da instintividade egotista, necessariamente destruidora de um plano imediato de Eticidade abrangente (de facto, ao propor uma explicação para o sentimento de culpa que jaz na base do sacrifício – e à imagem do que a Psicologia e as neurociências têm feito… – a Psicanálise pretende, de algum modo, erradicar esse mesmo sentimento de culpa, por meio de um exorcismo que tem o mote tanto da mera justificação racional como da própria atividade no divã; a erradicação do sentimento de culpa pode facilitar o bem-estar psíquico individual, mas funcionará inevitavelmente como um meio de desconstrução das bases da Ética a “longo prazo”, assim como da “Obra”, a qual tende a resultar de um certo desiderato sublimatório de compensação narcísica). Que o mesmo será dizer que a libertação do inconsciente possui uma menor simbiose com o plano moral e portanto racional, enquanto que a libertação da “alma” (de carácter inclusivo essencialmente consciente) possui – semelhantemente ao revisto no plano da inevitabilidade da Liberdade responsável propalado pelos existencialistas (pois que, no plano da consciência, em que “a existência precede a essência”, a responsabilidade moral antecipa qualquer tipo de preocupação determinística a priori indireta capaz de agir como viático de desresponsabilização moral) – uma maior relação com a eticidade.
Ficam, portanto, nimiamente expostos pontos de contacto e pontos de oposição entre a teoria psicanalítica (predominantemente clássica) e o reino da ascensão espiritual, nos seus termos essencialmente “aplicados” e “terapêuticos”.

(a publicar na revista 'Biosofia')

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