sábado, março 14, 2009

Objectividade relacional terapêutica

Recentemente, algures no final do ano passado, criei uma relação terapêutica com uma doente de 92 anos, em regime de domicílio. Fisicamente a doente tende a apresentar algumas complicações respiratórias esporádicas, atroses nas extremidades dos membros e nos joelhos. Mas, a par da minha tendência cada vez mais inevitável para me entregar ao carácter relacional e "romântico" da Fisioterapia, não é de ciência casuística que pretendo falar, mas sim sobre algo que diz respeito à minha doente e à questão da objectividade da relação terapêutica.
Enquanto intelectual que sempre fui e me considero, sou inalienavelmente interessado pelas Letras e as Artes, e possuo uma admiração intrínseca por quem dedica ou dedicou a vida ao despertar, sempre constante, dos grandes Sistemas da intelectualidade humana e do conhecimento. Aliás, o conhecimento e a intelecção são tão importantes para mim que até considero que a educação - e o seu indissolúvel "eduquês" - está, ao cair em métodos de ensino de carácter fundamentalmente psicologista (e algo infantil), a expropriar-se da matéria mais nua e bela da própria conteudística do Saber.
Tenho, portanto, uma grande admiração pelo Saber e por todos quantos extrapolam o mesmo em si e nos outros. Claro que a cisão muitas vezes realizada entre razão e coração não deixa de ser totalmente virtual, ao serviço de uma mera conventualidade. Pois, na realidade, razão e coração estão unidos no mesmo "corpus" sintético, o qual enquadra a existência de uma Realidade única em que Corpo e Mente pertencem ao mesmo teatro emocional, o qual consubstancia, num nível superior (e estritamente humano), o "sentimento de si" (Damásio).
Voltando à questão da minha doente... Ela tem realmente 92 anos mas é provavelmente mais lúcida e sabedora do que a maioria dos idosos de sessenta ou setenta anos do nosso país. Não há, na realidade, qualquer traço de demência ou depressividade naquela senhora. E, no aprofundamento da nossa relação terapêutica, fui ouvindo muitas histórias acerca da sua vida - desde a flagrância de um pai culto e metódico até à aceitação de uma mãe algo sistemática, passando pelo convívio com os filhos de Américo Tomás, pela aproximação a Salazar, e pelo diálogo estabelecido com Salvador Dali e vários escritores e músicos portugueses - sempre muito atento à unidade algo feérica da sua vida tão cheia. A minha doente foi, para dizer o essencial, leitora, estudante de cinco cursos superiores, aluna da Sorbonne, estudiosa de literatura e música, cantora de ópera, pianista, professora de música, crítica musical e directora do Conservatório Nacional. Para além disso sabe seis ou sete línguas com uma fluência algo invejável. Não é portanto uma pessoa qualquer. E não resisto a dizer, não necessariamente pela sua grandeza intelectual (e muito menos por quaisquer condições de ordem financeira), mas mais pela sua grandeza moral e emocional, que esta minha doente possui quase um "estatuto" superior à maioria dos doentes com que lido no dia a dia. Pois, não obstante a sua grande intelectualidade, esta senhora não é menos íntegra do que é culta e vivida. Quase nunca a vi deprimida. Está sempre muito optimista. Possui uma visão justa da vida. Certo dia terá até entregue grande parte dos seus livros - muitos deles preciosidades - a uma biblioteca, sem sequer deixar escrito - e imortalizado - o nome de quem os oferecia. Entrega roupa aos pobres e contribui para a protecção dos animais. Enquanto professora nunca levantou a voz a um aluno. Tratou-os sempre de igual maneira, independentemente do estatuto moral e/ou pecuniário dos mesmos. Teve sempre uma criada que tolerou ao longo da vida. Agora, demente (a criada), quando todos tentavam convencê-la a colocar a criada num lar, ela recusou-se e manteve a criada em sua casa. E, apesar da idade avançada da minha doente, ela não deixa de viver e ter uma atitude crítica sobre o presente, para além de ter consciência de que muita coisa lhe falta fazer.
Decerto muitos pensarão que me terei deixado seduzir pela doente. Talvez tenha acontecido, dada a sua inalienável riqueza interior. Mas, bem certo das minhas intuições, nunca questionei a veracidade das suas histórias, assim como posso dizer que a sua intelectualidade é assaz genuína e algo capaz de provocar uma certa sensaboria.
Perante tal quadro de cultura, e não desolvidando a sua riqueza heurística, fui tratando a minha doente ao longo de meses, tendo-se tornado a minha doente mais amada e fiel. Portanto, admito que passei a "amá-la" de um modo muito superior a muitos outros doentes.
Se, pelo facto de nunca ter casado e tido filhos, podemos questionar a natureza libidinal desta senhora, eu não duvido da sua feminilidade, e, mesmo que se pudesse duvidar, tal não interessa à grandeza da sua obra. Os seus filhos são todos os seus alunos e amigos, que a visitam diariamente e a surpreendem na sua lealdade. Da minha parte, também não duvido da minha integridade de jovem masculino, sendo que a minha admiração é puramente conceptual - e, também, algo emocional - não estando a fazer desta senhora uma bebé de quem cuido ou uma mãe que cuide de mim. Contudo, podemos sempre questionar até que ponto é que a minha objectividade relacional se tem mantido, principalmente nos termos das últimas ocorrências...
Sempre senti a injustiça de que esta grande senhora tenha sido maltratada pela história e tenha sido esquecida pelo país (mas deste género de injustiças é o mundo matricialmente constituído), daí mais uma razão para a minha grande admiração por ela, e, por todas estas razões, não deixei de me tornar seu protector. Recentemente, a minha doente começou a sentir-se maltratada por uma das empregadas que tomavam conta dela. Ela sentia-se injustiçada por tanto ter dado a essa pessoa, e a empregada, devido a problemas do foro pessoal, entrou num processo depressivo que a levava a gritar com a minha doente. A minha doente abriu-se comigo e eu não vacilei em tomar posição e em protegâ-la. Pois, mesmo que não possuísse a admiração que possuo por ela, não deixa de ser uma velhota de 92 anos, com todas as condições necessárias à consciência e, portanto, ao livre arbítrio, a ser maltratada na sua própria casa.
Perante tal situação, ao invés de me manter meramente alerta, resolvi dar um pontapé às considerações de ordem ética e outras de ordem analítica (a questão da transferência e da contra-transferência), envolvendo-me mais no "processo". Aproximei-me da doente, da maneira mais singela possível. Tornei-me seu aluno de francês (língua que já há muito queria rever). E pretendo deixar de receber o seu dinheiro, pelo que as minhas sessões de Fisioterapia serão pagas por ela com o ensino da língua francesa. E resolvi manter a máxima atenção à situação, até que ela estivesse resolvida (a empregada acabou por ser despedida).
Agora, a minha doente é simultaneamente minha professora. "Somos colegas", como ela própria diz. E não duvido que todas aquelas tretices da "objectividade relacional terapêutica" não passam de meras considerações de ordem teorética. Na prática, há doentes de que gosto mais e doentes de que gosto menos, e, por mais que tente tratá-los todos da mesma maneira, há uns com os quais não tenho problemas em estabelecer uma amizade ou outro género de relação mais ou menos simbiótica. Na realidade, acredito que é preciso gostar minimamente dos nossos doentes para nos preocuparmos com eles. Se não nos envolvermos minimamente nas suas vidas - sem, claro, qualquer risco de sermos paternalistas - não vamos conseguir passar a mensagem. Portanto, não obstante a necessária manutenção da Liberdade do doente, por vezes, temos de criar subjectividade e interferir (e deixar-nos ser interferidos) na sua vida.
Admiro aqueles profissionais de saúde que têm algo verdadeiro a dizer sobre a vida e a dignidade do doente. Admiro o profissional que admira o seu doente. Admiro o profissional que põe as questões de ordem subjectiva à frente das questões de ordem técnica. Nos livros de Simone de Beauvoir, "A cerimónia do adeus" e "A morte suave" (Edições Cotovia), esta filósofa relata experiências médicas em que denota a existência dominante de profissionais de saúde que se preocupam unicamente com os aspectos técnicos da vida do doente. A qualidade dessa vida e o respeito pela história de vida do doente não interessam muito à maioria dos profissionais. Mas eu convenço-me cada vez mais que é preciso criar uma certa "compreensão" pelo doente, e pela entidade única e singular que ele constitui. No fundo é disso que trata a Fenomenologia do Espírito.

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