segunda-feira, maio 25, 2009

De encontro ao conceito de Bobath

Penso que qualquer pessoa que esteja minimamente envolvida na questão da intervenção postural percebe que a temática neurológica e neuro-psicomotora é central. De facto, os princípios relativos à inibição tónica e ao evitamento do trabalho de força muscular relevam-nos, quase inevitavelmente, para a lógica do conceito de Bobath e do Neurodesenvolvimento. Afinal de contas foi o método Bobath que tanta importância deu à temática das compensações e do funcionamento corporal como um todo. Foi também o método Bobath que valorizou o funcionamento cinético por padrões, que pode ser, de certo modo, comparado ao funcionamento das cadeias musculares dinâmicas de Busquet. E, em última análise, o método da Reconstrução Postural, já aqui tantas vezes tratado, é uma espécie de método Bobath adaptado de Mézières. Toda a teoria subjacente ao funcionamento do corpo como um todo - tornando o princípio do isolamento um mito - e ao necessário trabalho de inibição do tónus anormal e das forças excessivas, levam-me a dizer que, de certo modo, a Reeducação Postural está mais próxima da intervenção fisioterapêutica em neurologia do que de qualquer outra abordagem. Até me atreveria a dizer que, num certo sentido, muitos terapeutas do neurodesenvolvimento estão mais preparados para a intervenção em deformidades posturais do que, por exemplo, muitos RPGistas.
Ora, se a intervenção corpórea tem tanto da temática neurológica - e até da psicomotricidade - diria que, atendendo ao facto de que o profissional do Fitness é cabalmente ignorante relativamente a estas temáticas, mais uma vez o fisioterapeuta se revela como o profissional mais capaz de tratar dos problemas ditos de "controlo postural". Até o próprio Pilates, a meu ver, vale mais pelos conceitos neurológicos de "estabilização central" e de equilibração do que propriamente pela visão mais "músculo-esquelética" da coisa.
Assim sendo, posso dizer que o trabalho de Reeducação Postural só faz sentido de ser realizado se adequadamente acompanhado de estímulos proprioceptivos, treino de equilíbrio, treino de coordenação e de placing corporal, entre outras coisas.
Tudo isto leva-me a dizer que o fisioterapeuta de Reeducação Postural tem de ser um fisioterapeuta do todo, sendo que a teoria das Cadeias Musculares não pertence, portanto, a uma área específica da fisioterapia, mas sim integra todas as áreas (as quais remanescem artificialmente divididas segundo fronteiras que não passam de facécias artificiais).
A compreensão do conceito relativo à Reeducação Postural implica a reflexão e a valoração de vários conteúdos teóricos, o que me leva a indignar com o facto de os aprendizes da área não valorizarem os pressupostos teoréticos. Vi, nos workshops que dei, uma impaciência imprópria relativamente ao Conceito, o que é erradíssimo; pois, se o fisioterapeuta teima em ser "técnico" sem Conceito e sem Teoria, então, não passa de mero trabalhador manual sem capacidade de raciocício e sem capacidade de criar qualquer tipo de heurística terapêutica. Um profissional não sabedor não saberá sequer como e onde tocar.
Outra coisa que é importante ter em conta é o facto de que toda esta intelectualização inerente aos métodos neurológicos e posturais é totalmente necessária, pois, se a mesma for desconsiderada, isso notar-se-á indubitavelmente na qualidade do terapeuta que manipula.
Por fim, é importante falar do espírito do terapeuta global. Foi-me pedido por gestores de formação que eu pegasse no meu conceito e o transformasse num produto. Ora, tal coisa é cem por cento impossível. E seria, decerto, cometer o mesmo erro que Souchard cometeu com o RPG. Pegou num método totalmente global e inventivo e criou um produto, com regras, sistemas, e toda uma visão estática. Diria até que 99% das formações dirigidas a fisioterapeutas "educam" o fisioterapeuta para fazer algo de determinada forma e não dão ao fisioterapeuta aquela capacidade que é a de ver globalmente o doente e conseguir adaptar-se à idiossincrasia - única e fenomenológica - do doente. Enquanto partidário da fenomenologia e do existencialismo - e, portanto, da liberdade do processo humano - posso dizer que um doente é, a cada momento que passa, um fenómeno único e irrepetível, o qual não pode ser reduzido a receitas, a fórmulas, e a modus operandis. Daí que a quase totalidade das formações existentes contribuam, na realidade, para embotar mais o espírito de um fisioterapeuta crescentemente "máquina". A verdadeira função da formação deveria ser o de criar a capacidade de lidar heuristicamente com cada situação nova que aparece. O bom fisioterapeuta define-se por essa capacidade de raciocício e de criatividade. E, em particular, o bom fisioterapeuta de Reeducação Postural é um escultor que age segundo o que vê e o que sente naquele precisíssimo momento. Produtos e Indústrias, para isso já basta o Fitness que prescreve exercícios como se fossem medicamentos. O verdadeiro terapeuta global, à semelhança do verdadeiro terapeuta de neurologia, age sem regras, tendo a consciência de que um doente é diferente de qualquer outro doente, e, ele próprio, é diferente a cada momento que passa. O método Mézières possuía essa genialidade heurística; daí que Françoise Mézières nunca quisesse que o seu método se massificasse. Já o RPG é pura indústria, com fórmulas criadas para que um produto fosse vendido de uma forma global e massificada. Portanto, de uma vez por todas, assumo que, entre os diversos métodos de Reeducação Postural, o método de Souchard é aquele que menos serve a verdadeira Globalidade postural do sujeito. E os outros métodos neo-mézièristas também seguem a mesma filosofia de industrialização.
Portanto, para mim, o método Mézières e a Reconstrução Postural, à semelhança do conceito Bobath (nas suas linhas mais tradicionais), são os únicos que servem verdadeiramente o modo humano de se ser. É pena ver que a grande generalidade dos terapeutas não possua a flexibilidade e o livre arbítrio necessários ao trabalho em Globalidade. Pois, entenda-se de vez que a Fisioterapia é sobretudo uma arte, não uma ciência. Entende-se melhor a Verdade da Fisioterapia através do modo ideográfico e singular, um doente como uma obra de arte, do que através de generalizações estatísticas feitas por uma ciência inevitavelmente falível.
Perante a crescente capitalização e massificação do mundo em que vivemos, parece que o que vale é um "nome", uma "marca". Para mim, o doente é um Todo e aquilo que lhe dou enquanto fisioterapeuta é o toque necessário à sua transformação, independentemente do nome que lhe dê.
E como dizia Sartre, "estamos condenados a escolher"...

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante, como sempre nos habituou. Uma excelente opinião sobre o tema abordado. Permita-me um reparo e uma pergunta:

Reparo:

Porque não simplifica os seus textos? Para além de serem excessivamente formais recorrem tanto a palavrões como "heurística terapêutica" que se tornam difíceis de ler! Lembre-se que os textos valem pelo conteúdo em si e não pela maneira como são escritos, a simplicidade é uma arte mais difícil e com mais crédito do que a filosofia que passa nos seus textos.

Pergunta:

Essa ideia interessante da "individualidade do paciente" e consequentemente da "individualidade da intervenção" não colide directamente com a maneira como a ciência médica tem avançado?
Tendencialmente a metodologia quantitativa tem prevalecido de maneira a emprestar credibilidade às intervenções. Senão como é que é que é possível investigar em fisioterapia? Ou mesmo passar informações e padrões de prática entre colegas?
Sendo tudo tão subjectivo como será possível desenvolver esta "arte" como "ciência" de maneira a ser credível, reproductível e fiável?
Afinal... a própria fisioterapia é uma ciência... ou uma arte?


Cumprimentos,

LM

Luís Coelho disse...

Caro LM,

Obrigado pelo seu comentário. É absolutamente pertinente aquilo que diz.
Começarei pela questão da necessidade de simplificar os meus textos. Acredito, e penso que tenho passado bastante essa ideia, que a Fisioterapia, assim como qualquer outra actividade baseada numa forte matriz teorética, deve ser intelectualizada. Os próprios fisioterapeutas têm de ser intelectualizados. Se isso não acontecer os fisioterapeutas estarão e permanecerão sempre em segundo plano. Aliás, refiro-me a isso no próprio texto em questão. Os fisioterapeutas são, para mim, mais do que meros interventores, pelo que há a necessidade de se aculturarem. Portanto, para todos os que se queixam da minha linguagem complexa, tenho a dizer, de uma vez por todas, que não pretendo simplificar a minha linguagem, não pretendo tornar tudo mais simples e vendável; não sou eu que tenho de me simplificar, são os outros que têm que se complexificar. E assim como eu vejo na Fisioterapia uma Arte, assim vejo a necessidade de a fruir de uma linguagem digna de um Aquilino ou de uma Agustina. Portanto, não acredito na acessibilização linguística e científica da Fisioterapia. Para mim, a comunicação deve ser pretendidamente complexa e inacessível e são os profissionais que devem trabalhar, lutar, labutar, para se munirem dos instrumentos intelectuais necessários. Só assim é possível evoluir. Não estou, portanto, a favor da simplificação e psicologização das técnicas de ensino actuais. Para mim, estamos a formar burros para actividades igualmente nescientes.
Quanto à questão da Ciência, devo dizer que, efectivamente, o método ideográfico e singular colide com o método quantitativo... e ainda bem que isso acontece. A ciência médica evolui de forma científica e quantitativa... e é por isso que temos os médicos a rotularem constantemente os seus doentes. Os fisioterapeutas podem e devem evoluir pelos meandros do método científico. E admito que não conseguirão afirmar-se sem esse método. Mas, ainda assim, continuo a afirmar que a Reeducação Postural em particular não é Ciência, e muito menos carece de "reproductibilidade", pois isso é precisamente o que não se quer: tratar os doentes por um método "reproductível". O que a fenomenologia, e mais tarde o pós-modernismo, nos diz é que, na realidade, há coisas que, pela sua singularidade, são únicas e irrepetíveis, e não podem ser reduzidas a leis. O trabalho em Mézières baseia-se em axiomas e postulados científicos, mas a prática propriamente dita tende a ser individualista. E todo o terapeuta, por mais científico que seja, tende a utilizar coisas como a intuição e a adaptabilidade face à idiossincrasia do doente. Portanto, o velho conflito entre Ciência exacta vs. Ciência relativa está presente na Fisioterapia de um modo que está longe de se reduzir a uma discussão terminada. No fim, advogo essencialmente a necessidade de se discutirem conceitos epistemológicos (mais uma vez a intelectualização), e de não aceitar a cientificidade da Fisioterapia como dado adquirido... que é aquilo que se faz nesses múltiplos cursos base e de mestrado.

Anónimo disse...

Caro Luis Coelho,

Compreendo o seu ponto de vista e até o subscrevo em certa medida, apenas tenho outras referências literárias mais simples como Miguel Torga pelo que prefiro um outro estilo de comunicação. Mas não será seguramente por isso que as suas análises perdem o brilhantismo a que nos habituou!

Sobre o segundo ponto, vou tentar ser mais objectivo:

A sua abordagem holística do doente parece, do ponto de vista teórico, uma abordagem mais humanista do utente, e como tal, mais capaz de responder à subjectividade da terapêutica, do terapeuta e do doente.
O colega usa uma série de técnicas de reeducação postural seguramente com enorme sucesso face à sua experiência e currículo. Como pretende provar, se é que o pretende, perante terceiros que as técnicas que utiliza são eficazes?

Dito de outro modo, como pode expressar para o mundo os outcomes da sua intervenção? E mais do que isso, como pode provar que esses outcomes são significativamente diferentes dos outcomes de outras abordagens, e até no limíte, que sejam mais eficazes do que não fazer nada?

É que:

1. se quiser fazer essas medições, terá de recorrer à repetição, à reproductibilidade e validade da sua intervenção.
2. se não quiser fazer essas medições, pode recorrer a um modo teórico de abordagem do problema, no entanto ele será sempre redutor do fenómeno subjectivo na medida em que tende a postular um paradigma sobre a própria intervenção em si.
3. se achar que a subjectividade é de tal ordem que as medições são impraticáveis, a credibilidade do método sairá sempre afectada visto que não é possível demonstrar perante terceiros a sua utilidade. No limite novamente, seria como compará-lo por exemplo com a religião em que a natureza metafísica da questão aliada à experiência subjectiva de quem a vive a torna sobretudo uma questão de fé e não de facto.


Não me interprete mal. Com estas palavras apenas pretendo questionar o método de pensamento e não a reeducação postural em si. De certa maneira estou mais de acordo com a sua perspectiva do que as minhas palavras aparentam, no entanto, a mim mesmo coloco estas questões e também as coloco a si para ver se me pode ajudar!

Cordialmente,
LM

Luís Coelho disse...

Ex.mo LM,

Obrigado pela forma construtiva como tem contribuído para esta discussão. De facto, se o que está em questão é o "provar a terceiros" a eficácia do nosso método, aí o processo científico mais ou menos tradicional terá de ser seguido. Mas é preciso atender a que o próprio processo científico é relativo a vários métodos e teorias epistemológicas. Há métodos, que pela sua natureza fenomenológica e subjectivista, terão de ser "trabalhados" mais pelo "estudo de caso" do que por estudos de grupo (nomotéticos). Vejamos o exemplo flagrante da Psicanálise. É um método de cariz pouco científico, mas ainda assim, apesar de ter ainda muito a provar, é um método respeitável, o qual não pode ser colocado na mesma linha da astrologia ou de uma religião (ao contrário do que advogam os pós-modernistas). Quando me refiro à minha forma de ver a Reeducação Postural ou o método Bobath, estou a referir-me sobretudo à Intervenção, a qual sei que responde mais efectivamente à natureza da verdadeira Fisioterapia holística.
O que estes métodos necessitam verdadeiramente é de estudos - necessariamente individualistas (pois, infelizmente os estudos de grupo pouco servem à natureza destes métodos) - de carácter longitudinal; pois os verdadeiros efeitos da Reeducação Postural são como a evolução da natureza: lentos e graduais. No entanto, se nos referirmos a variáveis (obviamente mais subjectivas) como a dor, não será, a meu ver, difícil constituir estudos nomotéticos que validem estes nossos métodos.
Mas, mais uma vez, relevaria a discussão para a temática da falência da Ciência. Será que é mesmo necessário justificar as coisas por um método que é muito mais falível do que aquilo que parece? Será que não devemos confiar mais noutras formas de conhecimento, baseado na sapiência experiencial e de peritos. Claro que, por exemplo, uma "literatura" será sempre mais subjectivista que uma ciência, mas é claro como água que uma Agustina é mais literatura do que uma Margarida Rebelo Pinto... pois, independentemente das vendas e outras inflacções, há uma certa objectividade... um certo bom-senso.
Mas, concluindo, as suas questões são pertinentes. E são-o de tal forma que acho - e tenho defendido - que as temáticas de pendor epistemológico devem fazer parte das nossas "conversas de pequeno-almoço". E, no domínio dessa mesma necessária epistemologia, atendendo a que as ciências sociais e humanas (nas quais se insere a Fisioterapia) estão a aceitar cada vez mais métodos de estudo humanistas e pouco científicos no sentido tradicional do termo, então toda esta discussão está longe de estar "terminada"... antes pelo contrário, este nosso tema ainda mal começou a ser discutido.
Infelizmente não consigo dar uma resposta mais aceitável do que esta que dou. Eu próprio tenho consciência que, na perspectiva de Karl Popper, a Reeducação Postural não seria considerada "falsificável"... (mas lembremos que Popper nunca se debateu com as Ciências da Saúde.)
Mas, ainda assim, por qualquer razão de pendor subjectivista, é o método em que eu acredito. Cabe a nós pensar se é mesmo necessário provar aos outros que o meu método vale enquanto "tal"... Não me desagrada que uma mera minoria de doentes e/ou de terapeutas siga os caminhos que escolhi trilhar. E o resto - os aspectos científicos - serão agarrados e aprofundados com tempo.

Abraços e até breve

Anónimo disse...

Caro Luis Coelho,

Em última análise creio inclusivamente que nos debatemos com a eterna questão de saber se a realidade pode ser interpretada através da ciência, ou se esta, pela sua natureza subjectiva nunca será divisível e enquadrada por leis e teorias!
De facto há qualquer coisa de muito errado no próprio método científico tradicional, na medida em que a sua tendência de subdividir o real em partes constituintes as torna cada vez mais distantes do objecto que lhes deu origem. Nesse contexto, modos de intervenção como a reeducação postural ou o método de bobath que assentam os seus pressupostos em modalidades holísticas que encaram a subjectividade não como um viés mas como um factor integrante parecem muito mais relacionadas com a realidade mas muito mais difíceis de provar perante terceiros.
Existe, no entanto, uma tirania dos outcomes na comunidade científica. O resolução estará inevitavelmente numa mudança social que mude os nossos próprios preconceitos. Quando formos capazes de equiparar um randomized controled trial com um estudo de caso ou opinião de perito, estaremos na mesma altura a olhar para estes métodos de intervenção com a certeza de proporcionarem modalidades de tratamento eficazes e integrativas.

Deste modo, vejo no seu desejo de ver as questões epistemológicas debatidas, essa tentativa de mudança de mentalidades. E saúdo-o pela coragem em debater certos tabus ou preconceitos que tomamos como certos sobre os paradigmas de análise da realidade.

Concordo consigo e gostei desta nossa discussão. Haja mais gente a discutir!

No entanto o desenho de estudo para investigar métodos como a reeducação postural ou bobath passará mais, quanto a mim, por métodos qualitativos do que por métodos quantitativos. Em primeiro lugar porque são métodos que têm mais em comum com as ciências humanas do que com as ciências exactas e em segundo lugar porque o contexto onde decorrem essas intervenções é porventura tão importante como a intervenção em si para o sucesso.

Um abraço,

LM