A tentativa de edificar um paralelismo entre a filosofia do conhecimento – entendida aqui como “epistemologia” – e a teoria do “livre-arbítrio” releva de um conjunto de questões extremamente pertinentes para o mundo da filosofia em geral e o “submundo” da filosofia da ciência em particular. A forma como vemos o mundo e o concebemos em termos ontológicos depende efectivamente da maior ou menor precisão fenomenológica na forma como inteiramos o acto de produção científica. E, ao contrário do que poderia ser pensado, o “argumento dominador” (relativo ao determinismo vs. libertismo) jaz impertinentemente nos meandros da temática epistemológica.
Tendo sempre Karl Popper como fronteira inolvidável – própria de uma ciência dedutiva construída por propensões com vista à evolução por “falsificabilidade” – entre uma ciência observacional e uma ciência ideográfica, devemos ter em conta que existe uma barreira enorme entre a ciência própria dos neo-positivistas e a ciência “menos ciência” dos pós-modernistas.
A ciência indutiva e observacional é vista pelos cientistas – principalmente aqueles que presidem à estruturação das ciências ditas “exactas” – como sinónimo de uma Verdade única constituída por Leis, sendo que estas, por terem um certo poder preditivo, tornam o mundo pré-determinado. Bertrand Russell diz, em entrevista publicada na obra “A minha concepção do mundo” (1970) o seguinte: “Estava convencido de que todos os movimentos da matéria, a partir da nebulosa primitiva e por aí adiante estavam condicionados, e que a linguagem falada era também atingida pelo mesmo determinismo. Por isso convenci-me de que as leis da dinâmica tinham assegurado, na época da nebulosa primitiva, as palavras exactas que o Sr. A haveria de pronunciar em determinada ocasião; o Sr. A, portanto, não teria qualquer livre-arbítrio quanto às palavras que havia de pronunciar.”
É irónico que as mesmas leis da dinâmica, que a um nível macroscópico são leis de peso determinístico, tornam-se, a um nível “quântico” “leis de probabilidades”. Que é o mesmo que dizer que acontece aquilo que tem sido apelidado de “Ordem sobre o Caos”. Ou seja, leis com algum peso de determinismo e futurismo baseiam-se em movimentos tão ínfimos e tão infinitesimais (falamos de movimentos de partículas sub-atómicas) que a incapacidade de previsão de todos os movimentos leva a transformar Leis propriamente ditas em teorias de probabilidades. E quanto mais nos afundamos no nível microscópico desses movimentos, mais os mesmos se tornam indeterminados – tanto que a mera tentativa de os determinar vicia o sistema – e, aumentando o grau de indeterminismo, torna-se possível categorizar ontologicamente o Livre-arbítrio. Esta teorização – subjacente ao por muitos chamado de “efeito borboleta” – é a base do pós-modernismo, o qual, munido de instrumentos historicistas e contextuais (para utilizar a terminologia crítica de Popper em “A pobreza do historicismo” – 1957 – e em “O mito do contexto” – 1996) advoga a impossibilidade de determinação, a impossibilidade de existência de leis, e a evolução da própria ciência – ao sabor da história/cultura vigentes – por “paradigmas e revoluções” (Thomas Kuhn). Temos aqui a base daquilo que Popper denomina de “racionalismo dogmático”, que é o pré-requisito do relativismo, associados ambos – em “A sociedade aberta e os seus inimigos” (1962) – sobretudo às teorizações “políticas” de Platão e Marx.
Devo dizer que sempre achei que o erro crasso dos pós-modernistas residia no facto de acharem que existe uma igualdade entre a impossibilidade “actual” de previsão dos movimentos infinitesimais das partículas e a impossibilidade real da mesma previsão. A meu ver, o cientista poderá não ter grandes possibilidades de previsão dos movimentos dos “quanta” no momento actual, mas isso não significa que os mesmos não sejam virtualmente determináveis, num momento futuro, em que sejamos donos de instrumentos tecnológicos suficientemente sensíveis. E a possibilidade de previsão virtual dos milhões de movimentos e dinâmicas que formam o “efeito borboleta” inquinam a existência de um verdadeiro relativismo, fazendo com que, a médio ou longo prazo, as diversas ciências humanas e sociais tenham de abdicar face aos métodos das ciências exactas. Sou, portanto, dos poucos que acreditam que a consciência aprimorada que todos temos de ser livres não passa de uma mera ilusão.
No entanto, não é despiciendo o contexto discussional do pós-modernismo, principalmente aquele que é formulado em “A estrutura das revoluções científicas” (1962) de Kuhn, o qual coloca a tónica no cientista enquanto “homem”, vítima de um tempo e de um espaço contextualmente determinados.
Publicado no "As Artes Entre As Letras", 04/11/09
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