O primeiro livro do conhecido neurocirurgião João Lobo Antunes não constituído por um agregado de ensaios consiste nessa recente obra que tem permitido encher algumas manchetes de jornais e revistas, assim como tops de livrarias: “Egas Moniz: Uma Biografia” (Gradiva). Acerca desta muito pode ser dito, mas bastante mais poderá ser explorado segundo o ponto de vista dos possíveis conteúdos epistemológicos, se quisermos de algum modo aprofundar os temas que a obra concilia.
Deixemos bem claro... Enquanto ensaísta, João Lobo Antunes é um escritor ímpar. Quem já leu os seus livros de ensaios “avulsos” sabe que, por vezes, o autor consegue algo que poucos alcançam e com que muitos matricialmente discordam: a conciliação de uma escrita de rigor (quase) científico com os elementos que a tornam mais bela que a melhor literatura. De resto, ninguém melhor que João Lobo Antunes para dar relevo à famosa frase de Álvaro de Campos: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo” (frase que, aliás, marca a Carta que o mesmo autor escreve para “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires, livro que também explora a alma e a literatura de uma condição neuropatológica). Também a tentação de romancear conteúdos que se querem rigorosos, científicos e desapaixonados existe em “Egas Moniz: Uma Biografia”, mas de forma alguma está presente nesta “Biografia” a mesma estética rítmica e serpenteante que marca alguns dos melhores ensaios de Lobo Antunes. A “Biografia” aparece com maior sobriedade e menor aprumo estetizante, vertida aliás numa linguagem singela, extraordinariamente simples e directiva – como, de resto, deve ser, evidentemente, a de uma biografia, que se pretende objectiva (apesar de a biografia ser um género “literário” especialmente tocado por um certo teor “construtivista” do historiador) –, mas não menos aliciante e ambiciosa, e de leitura consequentemente voraz e contagiante. De resto, a “Biografia” é nada menos do que uma obra que roça o perfeccionismo, de conteúdos cirurgicamente dissecados e alojados, numa ordem que expressa uma visão perspicaz e não cem por cento desinteressada.
A “Biografia” marca, de forma paralela e não cronologicamente linear, importantes elementos referentes a diferentes papéis preconizados por Egas Moniz. São de especial realce os aspectos referentes a Egas enquanto “político” e a Egas enquanto “clínico”. A mim interessou-me especialmente toda a pormenorização daquilo que podemos irmanar como a “história da medicina” da primeira metade do século XX. Desde os detalhes acerca da excepcional exigência do curso da Universidade de Coimbra (capaz de fazer envergonhar o mais exigente dos cursos actuais) até ao vislumbrar de uma curiosa matriz de médicos que actualmente conhecemos como nomes de hospitais ou de ruas, a descrição das interligações entre os clínicos aparece durante a quase totalidade da obra, principalmente quando se entrevêem todos os aspectos “sociais” que se movem enquanto tecido sustentador das duas grandes “descobertas” de Egas: a angiografia cerebral e a leucotomia pré-frontal.
Pois, na realidade, muito mais do que duas grandes descobertas (Lobo Antunes prefere o termo “invenções”) obtidas a partir de uma actividade científica necessariamente “ingénua” e “objectiva”, aquelas duas criações do corpus científico de Egas levantam uma série de questões, tanto éticas quanto epistemológicas, que tornam a tarefa “historiográfica” de Lobo Antunes necessariamente injusta. O que quero dizer é que, à semelhança do que já tenho defendido/discutido nestas páginas (relativo à importância da diferenciação entre ciência enquanto realidade racional “descoberta” pelo Homem versus ciência enquanto criação do cientista, pessoa necessariamente provida de expectativas e preconceitos), e um pouco de acordo com o modelo epistemológico kuhniano (que diz que a “Verdade” só faz sentido no interior de um ‘paradigma’ determinado), a tarefa de ‘descoberta’ científica nunca é plenamente racional, sendo, de certo modo, redutível a toda uma sociologia histórica, coisa que figura de forma clara nesta “Biografia” (de resto, é óbvio que a própria ciência histórica, à semelhança das diversas “ciências sociais e humanas”, se sente mais confortável no domínio da “lógica relativista dos paradigmas”). Pois acaso Egas teria tido todo o sucesso que teve na divulgação das suas “invenções” se não possuísse uma relação favorecida com os políticos e a Imprensa? Teria Egas conseguido a aceitação dos seus métodos se não existisse a relação privilegiada deste com a Comunidade médico-científica europeia? Teria Egas conseguido o prémio Nobel se não tivesse havido, por parte das diferentes Comunidades científicas (e políticas), portuguesa e europeia, a defesa obstinada de uma “campanha”, de um “lóbi” referente aos seus feitos?...
Não deixa claro todo este esforço desmistificador e desconstrucional de se exaurir numa excrescência que não tira o mérito a um homem que, ainda assim, contribuiu para o crescimento daquilo que, mais tarde, viria a ser mais conhecido por “neuropsicologia cognitiva” (potencialmente definível como a ciência da “materialização da alma”). E nem mesmo o facto de sabermos que Egas era arrivista e sempre desejou a glória pessoal provoca o desmérito de um homem que tanto contribuiu, à semelhança da “fina-flor” médica portuguesa daquela época, para marcar o lugar do nosso país na cena investigacional além-portas. E nem mesmo a tentação de alguns de abjurar o criador de uma técnica de exame que viria a causar a morte por cancro a tantas pessoas (angiografia cerebral) poderá desvirtuar a importância de um dos criadores de uma investigação que, nas suas inovações recentes, poderá ajudar a dar respostas às questões epistémicas mais preliminares. E, terminando, nem mesmo a tentativa recente para “tirar o Nobel” ao pai da psicocirurgia, por ter aberto as portas a uma prática que hoje consideramos cruel e abusiva (e, acrescento que, ao contrário do que tantos críticos têm afirmado, não existe - a meu ver - necessariamente um esforço de reabilitação histórico-moral do biografado por parte de Lobo Antunes; antes existe um esforço de compreensão realista de que os padrões de Ética da época da “lobotomia cerebral” são necessariamente diferentes dos que vigoram no paradigma epocal actual), faz com que deixemos de ver o nosso tão olvidado Egas como uma das mais ínclitas e significativas personalidades da nossa história.
Publicado no Jornal 'As Artes Entre As Letras', 16/03/2011
Publicado no Jornal 'As Artes Entre As Letras', 16/03/2011