As relações conceptuais estabelecidas entre o marxismo (e o pós-marxismo) e a teoria psicanalítica, cuja compreensão é especialmente relevante para o entendimento - sempre necessário à concepção sociológica da teoria marxista - das «necessidades» do mundo moderno, têm sido concebidas por diferentes autores de maneiras muito díspares e nem sempre compatibilizáveis. A complexidade da questão reside na dificuldade em estabelecer uma relação não ambígua entre o imperativo da razão Socialista e a tentativa assaz frustrada de conceber uma racionalidade ao nível da corporeidade. Iremos, de seguida, tentar dar luz a um conjunto de contradições, envolvente de dissemelhantes conceitos de racionalidade e das diferentes formas «marxistas» de lhe dar resposta.
Ora, se concebermos a racionalidade como molde de afastamento da raiz instintiva do homem (e necessária aproximação ao comportamento eticamente reflectido) e a irracionalidade como a aproximação à mesma actividade instintiva, podemos desde já deparar-nos com um aparente paradoxo relativo à natureza do Capitalismo (1) versus Socialismo (2): (1) os capitalistas asseguram que o liberalismo é racional, no sentido em que a economia de molde quantitativo que é propugnada faz eco de um suporte metodológico substantivado por uma ciência positivista, fortemente determinista, capaz de atestar a construção do «bem-estar» social com base na industrialização e numa ciência tecnicamente aplicada. Por outro lado, qualquer análise grosseira poderá levar-nos facilmente a estabelecer, tal como consta na teoria marxiana, uma relação entre este mundo concorrencial do «cada um por si» e as necessidades instintivas de luta com vista à «sobrevivência do mais apto». Assim sendo, o racionalismo liberal só pode ser visto pelo marxismo como uma forma travestida de comportamento «animal» que nos afasta da verdadeira essência de ser-se especificamente «humano». (2) o marxismo concebe a edificação de uma sociedade regida por padrões valorativos básicos, advogando o incremento de certas condições básicas de humanização, tornadas mais valorizáveis que os aspectos estritamente quantitativos do desenvolvimento económico. Fazendo apelo aos Valores, aproxima-se da racionalidade. Mas, também por fazer uso das considerações determinísticas de uma ciência relativamente segura de si própria (necessária à justificação metodológica da teoria marxista, presente sobretudo na teoria original de Marx, e à «determinação social» em que o Socialismo ancora), faz segundo uso da racionalidade. Por outro lado, o seu distanciamento à ciência quantitativa do liberalismo, defensado em especial pela tradição britânica originária do neoliberalismo (vide as obras de Popper e de Hayek), é interpretado pelos capitalistas como um fundamento do irracionalismo da teoria marxista, raiz de uma Ideologia com conteúdos dogmáticos [não há, de facto, por parte dos capitalistas, a compreensão de que os aspectos qualitativos, realmente menos mensuráveis - porque muito mais complexos e, portanto, apelativos de uma maior reflexividade - da construção de um Estado superam racional e eticamente os princípios estritamente numéricos do desenvolvimento. Esta compreensão manter-se-á sempre difícil, em especial por parte das «massas», pois implica a descolagem de um conjunto de códigos (capitalistas e enaltecedores da ciência quantitativa) no seio dos quais fomos «educados» e permanecemos agrilhoados].
Deste modo, as diferentes formas como desiguais teorias políticas tratam o conceito de racionalidade complexificam deveras os termos de toda esta discussão, o que enreda a tentativa de associar teoreticamente «marxismo» e «psicanálise».
Assim sendo, advogando de certo modo o reencontro do homem com a sua essência instintiva, a psicanálise pode, segundo certa perspectiva, contrapor ao marxismo, pelo facto de ser precisamente este género de irracionalismo que preside ao processo basilar da competitividade liberal. Por outro lado, ao tentar lutar contra o efeito da «castração» dos códigos burgueses, assim como da industrialização massiva com efeito alienante, a psicanálise pode também fazer apelo aos valores do Socialismo.
A obra de Herbert Marcuse é, neste contexto, especialmente relevante. Este filósofo pós-marxista advoga que a consumação de um conjunto massivo de novas necessidades industriais, inscritas num «colectivo mental» fortemente alienado, leva ao afastamento dos indivíduos da sua real natureza íntima. É certo que o «bem-estar» do capitalismo se move no território do prazer, mas esse é um «prazer» artificioso, porque obtido fora das condições de aproximação do homem à natureza mais primordial da sua condição.
No referente ao meu próprio conceito de «corpo pós-moderno», Marcuse também terá tido em conta o aparente paradoxo existente no respeitante às novas indústrias do wellness, centrado no facto de estas parecerem, à primeira vista, possibilitar uma aproximação «terapêutica» ao inconsciente basilar do ser humano, a qual acaba por se revelar uma mera quimera, reificada pelos contextos mercantilistas de «realidade virtual» que são aplicados, auxiliadores do «escape à realidade», alienação que camufla a origem dos problemas e que serve plenamente o capitalismo no «anestesiamento» da dureza da realidade do trabalho e das condições do massacre da vida moderna.
Os aparentes paradoxos são bem visíveis e possibilitam uma crítica às diferentes visões. Na realidade, eles podem advir do facto de podermos estar a falar de diferentes tipos de racionalidade/emocionalidade, possibilitando a existência de curto-circuitos semânticos que seriam mais facilmente evitados com uma melhorada clarificação dos conceitos; esta talvez pudesse ajudar a evitar a existência de atitudes tão díspares na relação conceptual entre o marxismo e a psicanálise, pois, se é certo que alguns marxistas vêem na psicanálise a essência da sua teoria, também é certo que, em circunstâncias históricas específicas, o Socialismo chegou a adversar o freudianismo.