Quando se define o ser humano como “animal racional” parece que, numa certa perspectiva, se medra numa pungente contradição; pois, se a condição animal se define essencialmente pelo comportamento instintivo, afecto às emoções que não ambicionam a consciência, a condição especificamente humana remete, supostamente, para uma racionalidade que, em última análise, representa o nível mais evoluído de um agir que visa a auto-preservação. Esta sempre imperecível contradição «emoção versus razão» representa, não obstante o facto de as duas se entrelaçarem de um modo bastante mais complexo do que aquele que é muitas vezes atendido, a relação dialéctica mais importante do momento de caracterização da outra nossa familiar dialéctica, nomeadamente «capitalismo versus marxismo».
Tanto o capitalismo como o marxismo se pretendem racionais, mas o facto é que a dialéctica «emoção versus razão» nem sempre se consegue escalpelizar com objectividade aquando do exercício de caracterização da época moderna, era reconhecidamente liberal.
Por exemplo, a modernidade aparece marcadamente conotada com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, assim como com a demarcação de um pensamento categorizado, de índole quantitativa e materialista, o que, aparentemente nos leva a ver a modernidade como um resultado da actividade racional. Por outro lado, visto que as pessoas possuem uma relação espontânea e, portanto, irreflectida com os objectos da tecnologia, limitando-se a fazer uso alienado do «bem-estar» que os luxos do capitalismo propiciam, é indubitável que a emocionalidade parece ser a regra de funcionamento dominante do ser humano da era moderna.
O facto de possuir uma relação privilegiada com o suposto progresso científico e tecnológico, associado à assunção de que o liberalismo possui uma base teórica justificativa científica (no sentido das ciências «duras», «exactas» e «positivas»), leva a que o capitalismo se assuma como racional, incluindo a suposição, tantas vezes defendida, de que a democracia só é compatível com os sistemas liberais. No entanto, é impossível não reconhecer no comportamento competitivo e egotista do «cada um por si» dos «filhos da burguesia» todos os caracteres adstritos à animalidade básica e instintiva com vista à sobrevivência. De resto, a relação entre o capitalismo e as características da sobrevivência animal previstas pela teoria de Darwin terá sido compreendida pelo próprio Marx melhor do que qualquer outro. Poderíamos acrescentar a isto o apelo às emoções e «sensações» que o comércio e o marketing efectuam de forma não menos que doentia.
Na sua compreensão «sociológica» dos factores psicossociais que contribuem para as desigualdades sociais e económicas, não pode o Socialismo deixar de ser visto como um eterno contributo para a verdade racional das coisas, mesmo que o método marxiano propriamente dito, que pouco tem a ver com o método das ciências «exactas» (ao contrário do que o próprio Marx defendia), seja incluído no conjunto dos argumentos dos capitalistas esgrimidos em apologia dele como «método» irracional e acientífico (coisa que, de resto, deixa de fazer sentido face à visão da ciência pós-moderna, o que inclui a fragilidade das ciências «positivas»...).
Não se pretende, de qualquer modo, defender que a emocionalidade é necessariamente má, até porque esta não deixa de constituir a matriz básica de uma racionalidade consciente. Pretende-se, sim, fazer o apelo de uma emocionalidade evoluída, e portanto sentimental, a qual só pode fazer sentido numa sociedade onde residam certos padrões de solidariedade e onde a lógica «quantitativa» tenha, de uma vez por todas, sido entendida como inimiga do verdadeiro «progresso».
Assim sendo, pretende-se que o marxismo se faça acompanhar pela sempre eterna busca de equilíbrio entre uma emocionalidade que permite a cooperação entre pares (em desprimor dos instintos egotistas de sobrevivência) e a racionalidade que permite a aproximação de uma forma o mais puramente objectiva de Justiça.
'Avante!', dia 23/07/2011
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