Se bem que uma certa
Espiritualidade esotérica – e em particular a Teosofia de Blavatsky – pretenda
fazer do aparente binómio «Corpo – Espírito» uma Mónada de substancialidade
espiritual em que tudo é Uno e em que o Uno é o Absoluto, a tentação de contrapor
a tal coerente monismo o protótipo de uma dualidade do tipo «Espírito vs. Matéria» não pode deixar de ser
sentida enquanto produto de uma natural devassa interna, que é aquela que,
urgindo o mecanismo de defesa de cariz psicanalítico, contenta a natural aversão
à Unidade e a atração à transubstanciação de fronteiras.
Jaz já, então, a
tentação demoníaca nesta tão grotesca tendência para a fragmentação de uma
Unidade, na qual toda a diversidade e todo o movimento conspiram nos termos de
um jogo de ilusões, teatro de máscaras que apela à multiplicidade de um
Demiurgo que se contenta com a quimera do livre-arbítrio decisor.
A tentação a apelar
à queda babélica no mundo do “Relativo”, perfeito na Matéria das diferentes
línguas e distintos paradigmas, e a assumir que a Origem divina está em Deus,
que o Governo está no Demiurgo e que estes encenam um “Arché” que, quando o é
já não o é, que quando se subsume na concretude é já o animismo
consubstanciado, a vida – porque movimento – tornada Terra, Água, Ar e Fogo, e
estes a esculpirem a divergência a partir do “Logos”, na estúpida certeza de
que a saudade do “Princípio” e a nostalgia das Origens rematará o ensejo de uma
luta, feita epopeia, ‘ethos’ convertido em tragédia heroica, que mais não visa
do que recuperar o momento do “Arché”, para que este deixe de o ser e para que,
após a morte de Deus, o “Eu” – que nunca deixou de o ser – passe a acusar o seu
próprio “Princípio” - “Logos” - “Divino”, na sempre eterna certeza de que
estamos destinados a ser Deuses por mais que não o desejemos.
É o próprio “Logos”
que, partindo de uma qualquer Ordem cósmica racional e hierarquicamente
superior, determina que o destino de Cristo, Buda ou Deus se inteirize em cada
um de nós, com o adiamento da via crística a preludiar a neurose do “eterno
retorno”, e a concretizar-se numa rota de pecados ou falhanços de um caminho
que mais não é do que o do desvelamento (ou tentativa de) do Princípio ou do
encontro com o verdadeiro ‘Arché’.
E é indubitavelmente
da busca do ‘Princípio’ de que se trata no corpus
das diferentes manifestações espirituais e nunca nada passou disso, da busca
das Origens que habitam o ‘Eu’, do encontro com o ‘Eu’ incondicionado, com o
‘Eu’ que só pode criar e amar se se descobrir na Estrutura virginal e
imaculada, não de uma virgindade selvagem e intocada, mas de uma virgindade
readquirida – portanto, uma desconstrução que requer a prévia construção – uma
indeterminabilidade que postula a revelação sapiente (e já não “sapiente”,
porque de uma “douta ignorância”) do molde arquetípico que nos conforma, não
descurando a relação dialética do modelo originário com o cumular das
experiências que transcrevem a vivência no mundo da substância.
É desta alquimia de
“autotransformação” que se subjaz a possibilidade real de uma Ética, da via
fraterna que só pode ser concebida como resultado da descoberta e securização
iniciática do ‘Eu’. Pois que não pode “o outro” existir e ser investido sem que
o ‘Eu’ se propicie e descubra a si-mesmo, nas suas múltiplas potencialidades
luciferinas, potenciadoras de um devir, que acabará por ser o de toda uma
“Civitas”. E é também daqui que surge a “fé em Deus”, com a lógica analogia com
a “fé” na capacidade de mudança, na Palavra capaz de “mover montanhas”, no
Verbo que se reifica de tanto ser crido e repetido, como se só uma imagem já
transpusesse todas as possibilidades de um ‘Eu’, que só pode ser Deus-Amor depois
de ter sido amado e reconhecido pelo Deus-Mater-Pater, pelo Outro e, sobretudo,
por Si-mesmo.
A via do ‘Arché’ é a
via do Demiurgo: alcançando os alicerces do manifesto, a tentação que se
consome visa a duplicidade de um desejo do Inominável e de um desejo de
Individualidade, como a criança que, na eterna saudade do ventre consolador,
vislumbra a possibilidade de um devir que mais não é do que a solidão de uma
aventura que, perpassando trevas, mas também recompensas e letargias, visa a
Unidade do ‘Eu’, que, não sendo porventura a Totalidade, é a derradeira
pacificação do Ego, que já não é Narciso porque consolidou o momento
originário, o instante em que a consciência teve origem e já não era
autoconsciência ou o era sem o ser porque era já o baldio de uma argamassa de
Logoi desconformes, porque de outros que já outros não são, porque já são o
‘Eu’, que nunca ‘Eu’ será, mas que, todavia, é Ego afogado em sonhos,
esperanças, desejos, ambições, necessidades, com tudo isto a ser o prelúdio da
ilusão que se derrete no devaneio da identidade, na falsa noção de que se é num
mundo em que nada É verdadeiramente, porque o Espírito tudo dilui, porque o
Espírito se escoa num movimento perpétuo criando poros e fragmentos onde a
densidade se permitia afirmar numa coisa irrealizável, porque o Espírito tudo é
e subsume, tudo transtorna num Nada que é precisamente a Realidade tornada
incognoscível pela pérfida incerteza, e esta a manar num fluxo permanente de
relatividades, que pareciam ser somente desalentos, ou falta de talentos, e
acabou por ser a Verdade colapsada no Vazio, de um caos que harmoniza as ordens
incertas, irreparavelmente prementes da premência da iminência de Universos,
coevos e derivados, que se parodiam de ser alguma coisa quando a Verdade não o é
e mais se afirma pela frustração de querer ser o que É, quando Nada Ser é a
derradeira fantasia.
No oceano da ilusão
do Éter que tudo atravessa, em que o grande é como o pequeno, e o superior como
o inferior, derretem-se as dimensões a uma Unidade que, sendo Absoluta, já não
relaciona ou se compara, o que é o mesmo que dizer que já não há sequer o
grande ou o pequeno, o superior ou o inferior, porque as escalas e os mapas
servem só para dirigir o que inevitavelmente acabará por ser um homem
desamparadamente aprisionado. Assim mesmo, o peregrino que se inicia e se
transcende não cederá jamais às diretrizes da Realidade tornada irreal, pois já
peregrino não seria se o mapeamento viesse antepor uma via que não seria
decerto a Via, uma só, porque só uma rareia na já rara perscrutação do
Horizonte que é de facto a Verdade revelada e esta o adiamento consentido da
Luz.
A via final evoca
temporalmente os níveis inferiores, os níveis infernais que são pouco mais que
o mais que são os demónios que nos dominam, os fantasmas que chegam a
transcender as nossas fronteiras exteriores para ansiar o controlo do
comportamento, do instintivo ao racional, do pulsional ao supergóico, do
individual ao coletivo. Estas trevas do ‘Eu’, este ‘Inferno’ da
Individualidade, o nível menos manifesto do patamar mais manifesto, este
submundo que preside ao que é tornado comum, este mito entrosado por um
Inconsciente Coletivo que teve o seu prelúdio na diáspora do ‘Eu’ que se
extrapola, a alegoria, o símbolo, os contos de fadas e os instrumentos de um
Imaginário lunar, os noturnos de uma Arte feita Harmonia, que milénios de
construção pictórica, musical e poética viriam enaltecer, este mundo que reúne
o helenismo, a epopeia greco-latina, os romances iniciáticos de Petrónio e
Apuleio, a poesia de Dante, Milton e Blake, as depravações de Sade ou de
Boccaccio, o espírito romântico de Novalis, Hölderlin, Goethe e Schiller, o
ambiente “noir” de Poe, Hoffmann e Gogol, o romance francês e o Surrealismo em
arte e poesia, e até mesmo o cinema, desde os musicais “inocentes” ao “radicalismo”
de Buñuel e Pasolini, todas estas obras entre muitas que fazem o hino ao
Inferno, ao caminho da floresta que o crescimento exige e denuncia, ao Deus
feminino, Pandora embriagante, a via que se anuncia em Prometeu, a condenação
da via Crística que exige mérito mas nunca desejo ou ambição, este caminho que
a Fortuna já anunciava e que o mesmo Destino obstaculiza, para gáudio de uma
incompreensão, que é aquela que reside no “Para quê tudo isto?”.
Onde estará o maior
mal? Na via do Inferno que tem de ser vivida necessariamente ou na via do
Inferno que se pretende eternizar, porque é o próprio “eterno retorno” que se
tornou uma tentação, porque a compreensão da ausência de sentido de todo o
Caminho comprometeu decisivamente toda a vontade genuína de crescer (quando, no
fundo, nem existe uma vontade autêntica de crescimento, pois a vontade e a
ambição matam a própria possibilidade de evolução)?...
Onde estará o maior
mal? Na via do ‘Eu’ feito demiurgo ou na via do ‘Eu’ feito ‘Deus’ e portanto já
Não ‘Eu’? O primeiro governa e pacifica mas não é livre. É homem com desejo e
consciência, apela ainda à matéria e à encarnação. O segundo é a liberdade
propiciadora, possui todas as potencialidades, todos os Logoi em si
transcorrem, mas não é ninguém em particular, não é consciência de si ou de
outrem, é só Consciência pura e total, que é uma Não Consciência, o Todo Nada
irredutível.
Ser ‘Deus’ ou
‘Demiurgo’, ou ser homem simplesmente, a tentação de estar “para além do Bem e
do Mal” augura a dialética da existência, quando o destino de nada ser lobriga
a hipótese de redenção face ao sofrimento eternamente adiado.
Quando o sofrimento
é a confluência do vazio e a confrontação da angústia com a cognoscibilidade de
um corpo depuradamente emasculado, porque infecundado da vitalidade de um Eros
que é já, desde o primeiro sopro, pérfida entropia… Um sofrimento que
perspetiva a sua resolução acima de todas as outras necessidades, uma
transposição que se fará recrutar pelo instrumento anestésico, que só será
alquimia profunda se a fisiologia da celeridade não tiver surtido um efeito razoavelmente
embriagador.
Quando a verdadeira
embriagação é somente aquela que denuncia a renúncia ao caminho, a anquilose da
carne transtornada em Ego compulsado em megalomania de um Narciso que mergulha
incessantemente nas águas da ilusão, feito já Sísifo a arrastar o seu próprio
mundo como uma pedra espelhada de um teatro que é do tamanho de um Atlas, titã
da efeméride de uma forma que não cede ao Espírito, que permanece pura
escatologia terrena no “eterno retorno” que mais não é do que neurose de uma
obsessivo-compulsividade em que a retroatividade positiva subjaz ao “regresso”
sem sentido, aquele que um mal compreendido Nietzsche viria conceber e
parodiar, para que, mais a mais, todos nós, “pós-Nietzsches”, viéssemos a
sucumbir à vergonha de encontrarmos o Nada na nossa Caverna sem que nada encontrássemos
de forma primeva, mesmo que o nosso a
priori pareça ter sido descoberta recheada de plenitude narcisicamente
masturbatória… (vã ilusão a de pensarmos que ainda há algo que não tenha sido
pensado ou sonhado) …
E já a nossa caverna
é toda a Caverna do Mundo, que é realidade de conceitos, prescrições,
fronteiras que não são Sabedoria, porque esta não é distância mas proximidade,
porque esta é conhecimento puro, como se isso fosse possível, pois a
consciência pura, razão da Testemunha, transpõe toda a Razão (quando esta é
feita de conceitos que são jangadas de um rio lodoso que vai do Eu ao Outro, do
Sujeito ao Objeto), que já Razão não era, porque só há a nossa razão, porque o
conhecimento é todo íntimo, como a observação é apenas um olhar para dentro,
porque neste vislumbre se encandeia a impossibilidade de olhar o que as coisas
são, se é que são alguma coisa, se é que nós mesmos somos alguma coisa, se é
que há alguma coisa, quando o ato desta escrita e do tolo que me lê nada são,
porque tudo é inútil, mas já a consciência da inutilidade é apenas consciência,
uma entre tantas que se perdem no conforto da droga mundana, que é a mesma
droga a que quero sucumbir, mas já o sentimento de culpa me limita o mergulho,
com este a ser ilusão, e esta a ser compulsão, com a linguagem a transcorrer e
a não conseguir pará-la, tudo se mistura e não há ordem, mas o Caos é a
incausalidade, não é o que queremos a liberdade,
Porquê o medo de nos
arrancarmos
À súbita ausência de
limites
Porquê o medo do
infinito
Quando tudo é sem
fim
Expansão e retroação
Evolução e involução
Nesta paródia dos
devas
Imponderáveis que
pretendem saciar o caminho
Sancionar a aparição
de um fim que é início, de um fim que é somente fim de um fim, início de um fim
do fim, fim de um início de um fim de um início de um fim de um início de um
fim de um início de um início de um início de um fim de um início, com tudo
isto a precisar de ser parado, por uma dor que esmaga pela ansiedade, pelo
bloqueio que impede o suicídio, e este a ser tão desejado, o maior direito do
homem, o direito a dispor do fim,
Para uma nova
angústia urgir,
Pois se não há fim
da Consciência,
Haverá o fim
merecido da angústia?
Pois se esta pode
cessar porque morre a mente na morte do corpo, pode, afinal de contas, expirar
a busca?
Não terei eu o
direito de não buscar,
De não transpor, de
não acolher a Totalidade,
Porque quero ser Eu
para a eternidade,
Mas sendo Eu e
estando na busca,
Já começo a ser o
Outro e o Infinito,
Que cessará a minha
consciência,
E com essa cessação,
findará a minha busca, mas nem cheguei ao consolo do Eu, porque quando o
encontrei já Eu não era, daí que nada tenha encontrado, para o ter feito era
preciso ser Eu, para ter de facto encontrado já não podia ser Eu, já não podia
desejar sequer, quando este ‘Eu’ que escreve tem desejos e vislumbres, mas se o
Todo é o não desejo, como desejar o não desejo, sendo o Eu a desejar nada ser,
condição da impossibilidade de ser Todo querendo sê-lo, e lá continua a
angústia da busca imbecil, filosofia da doença, fisiologia da filosofia da
doença que é fisiopatologia da filosofia,
Vou medicar esta
doença
Calar o fogo
ruminativo
Quando não ruminar é
condição de não crescer, e não crescer é condição de eternidade na carne, mas
ruminar é condição fisiológica, necessidade de um Ego cujo transtorno requer
superação e a superação reitera crescimento e o crescimento demanda transtorno,
O Ego a precisar de
si mesmo para não o Ser
Nada Ser em separado,
o Todo a requerer o Todo,
O Todo a ordenar a
superação da Parte,
E este superar a ter
o requerimento da Parte,
Como atingir a via
final do Não Ser desligando a determinação do Ser que deseja, e porque deseja
É, e porque É não pode SER? Somente pelo Livre-arbítrio poderíamos explicar o afetar
de uma Liberdade que nem sequer existia e até precisava de existir para o
Livre-arbítrio assomar.
E o sufoco de não
saber explicar a Liberdade, porque ser Livre é já não requerer Deuses, porque
aí somos nós os Deuses, mas o caminho é feito sob o repto dos Deuses, os que
não somos mas queremos ser, os que criaram o Arché que somos, o Arché que
limita a Liberdade,
O Arché que
condiciona o próprio mérito,
E, portanto,
condiciona a própria ambição, a própria possibilidade de evoluir (ou uma não
ambição e/ou o desejo de ser Eu, condição saturnina a trazer o prazer e este a
ser tentação só ultrapassável pela existência da dor).
Com o Mal a ser a
única garantia de crescimento, quando este é o mal próprio – o sofrimento – e
não o mal do Outro. Com o Mal a ser a única garantia de ser o Outro, porque o
desejo de o Inferno abandonar reside somente no desejo de não sofrer, e é por
isso que toda a Espiritualidade se resume a um Eu que pretende a salvação, uma
Bem-aventurança que o Eu não percebeu já não ser Vida, não ser Eu, não ser
Autoconsciência. É portanto o Mal que leva ao Espírito. E não o ‘bem’, pois se
este existisse perpetuamente nunca auguraríamos abandonar o Ego, porque a via
Crística que há em nós é pura determinação egóica, porque o Deus que estamos
destinados a ser só pode ser obtido quando queremos ser Eros (mas um Eros
afrodítico, terreno). Porque a Ética é ilusão e tudo é fuga do Eu que sofre, do
Eu que se dissolve, e escrevo isto neste desejo de que tamanha ruminação nunca
tivesse ocorrido, nesta perfeita certeza de que o diabólico é condição do
simbólico, de que o demoníaco é condição da Perpetuidade, muito mais do que
mera contraparte do Espírito, e por estas e por outras, as religiões se voltam
a aproximar, temos o desejado “religare”, com tudo a ser pó, tudo a ser
partículas, o Divino a igualar o Caos quântico, e o Caos quântico a ser feito
das múltiplas e caóticas ordens terrenas (falsos absolutos, ilusões de
permanência), e o Caos final a ser nutrido pelo combustível demoníaco, para
concluirmos, no fim, que tudo isto é o mesmo, e que o único diabolismo é o
conjunto das etiquetas, por que tudo é a mesmidade, tudo é Uno, tudo é:… .. .
(Publicado na revista literária «Sítio»)