«O que está em cima é como o que está em baixo, e o
que está em baixo é como o que está em cima»
(Corpus Hermeticum)
Associamos frequentemente a
palavra "Espírito" ao que em nós há de mais etéreo, à essência
suprema sentida como coisa elevada, quando, na verdade, nem o
"Espírito" é sinónimo de "Alma", nem o que ao
"Eu" diz respeito tem a ver necessariamente com a matéria espiritual.
Na maioria das Espiritualidades antigas, o "Espírito" acaba por
adoptar um cunho de transcendência, que, a determinada altura, leva o
"Espiritual" a ter mais a ver com a Totalidade e o Infinito que tudo
e todos inclui do que propriamente com a matéria da carne que nos cerca, possui
e domina. Por outro lado, essas mesmas Espiritualidades aceitam igualmente que
o Espírito da Totalidade existe em cada um de nós, um pouco como se o nosso
'Eu' mais subtil - o Superior que há em nós - fosse a extensão ou o espelho do
Divino, o que não deixa de, para já, vir confundir um pouco as hostes.
É inegável que grande parte da
espiritualidade antiga, nomeadamente o Sanathana Dharma (conhecido popularmente
como Hinduísmo), tinha como mote fundamental a "extinção do
sofrimento", o que, a determinada altura, poderia passar pela superação do
Corpo, do 'Eu' pessoal, carnal e até psíquico, de modo a que o 'EU' superior,
já não pessoal mas colectivo, já não carnal mas espiritual e impalpável,
pudesse ter lugar. Claro que o trajecto obvia um caminho que passa pelo 'Eu'
carnal, emocional e psíquico; caminho "que se faz caminhando", com a
espontaneidade própria do trajecto evolutivo, com as necessárias dores do
crescimento, a via do peregrino que se chega a arrojar pelo atrito do trilho
pedregoso, uma verdadeira epopeia pessoal inclusa de avanços e recuos (pequenos
céus e pequenos infernos), a tragédia da vida que conhece quedas subterrâneas e
aviltamentos de luz; mas tudo isto, toda esta evolução, visava a superação
deste Corpo que parece arrastar-se eternamente, para que um novo estado
(iniciático) de Luz espiritual pudesse ser alcançado. Nessa Luz, o 'EU'
superior que parece ter vencido a necessidade de novos caminhos (aliás, novos
regressos reencarnativos), poderá finalmente libertar-se da dor, do sofrer.
Daí que, ao contrário do que
muitas pessoas julgam, e conhecem através de certas formas de espiritualidade
e/ou religiosidade popular (ou seja, exotérica, relativa ao exterior), o
"Espírito", no verdadeiro ("esotérico", interior) sentido
do termo, tem mais a ver com uma Totalidade já não pessoal mas colectiva, com
algo que já não é 'Eu' no sentido da consciência pessoal ou das sensações
psíquicas, do que propriamente com a matéria de que trata grande parte da
Psicologia individual (pois a mente ainda se mantém ao nível do Corpo); passei
uma boa parte do tempo do meu recentemente publicado «O Corpo e o Nada»
(Apeiron Edições) a explicá-lo, se bem que, para tal, posso ter utilizado
processos mais ou menos indirectos. A própria meditação passa por ser, de certo
modo, um processo de morte da auto-consciência. O que, obviamente, mais começa
a parecer a fuga do corpo (um pouco o contrário do que pretende grande parte da
psicanálise) e o alcance do 'Nada'.
Por outro lado, existe igualmente
a necessidade de se conceber uma representação "individual" do
Espírito (porque, afinal de contas, "o homem foi feito à imagem de
Deus"), segundo o ponto de vista de que cada um de nós possuiria um nível
superior, um "EU" eterno que se mantém "entre vidas",
aquele que precisa de ser reificado com a actividade evolutiva do
"Eu" inferior (este, sim, a diferenciar-se nas múltiplas
reencarnações), o que quase nos leva, de algum modo, a atentarmos numa
arriscada analogia entre o desiderato da Psicologia e o desiderato da
Espiritualidade. Não será que tanto a Psicologia moderna quanto a antiga
Espiritualidade têm simplesmente em comum a preocupação com o crescimento do
homem, que, às tantas, à força de descobrir a sua substância primária, se
securiza e engrandece, podendo vir a tocar construtivamente o Outro, um pouco
como o espírito individual a ser Espírito no sentido da Totalidade e do
Infinito?... Teríamos, aqui, até a possibilidade de tanto a Psicanálise como a
Espiritualidade poderem constituir dois formatos histórico-conceptuais com um
objecto comum, se bem que, no livro que já citei, já terei defendido que o
desígnio ético da Psicanálise parece não ter a grandeza da Espiritualidade
esotérica...
E este objecto passa em grande
parte pela redescoberta do momento gerador, do Início da matéria, da vida, da
consciência, que é disto que fala o "Arché" dos gregos,
correspondente ao "Princípio" bíblico, o mesmo que necessitou de uma
ordem divina, o Verbo de Deus (o Logos dos gregos), que pode ser a dor da mãe
que dá à luz ou a voz do Pai criador e consolador, de uma consolação que
relembra a religião dogmática ou a espiritualidade "terapêutica". E é
esta redescoberta ou reactualização das Origens que leva à criação da certeza
de que somos Pessoa, que somos Ser, agora tornado livre, tornado Deus, futuro
Deus-Pai criador. E é disto tudo que tratam todas as Espiritualidades, que, ao
contrário do que muitos pensam, têm muito em comum e em interdependência: a
filosofia da Índia, incluindo o próprio Budismo e o Jainismo, o Tao dos
chineses, as religiões de mistérios, o Hermetismo e a Gnose, o mitraísmo da
Pérsia, a mitologia grega, o Pitagorismo, o Platonismo, e o Esoterismo que nos
é mais próximo, no formato da alquimia, da verdadeira astrologia, do
rosa-crucianismo, da maçonaria, da teosofia moderna, e também o que há de mais
profundo nas religiões do Livro (Judaísmo - incluindo a Cabala -, Cristianismo
- incluindo o gnosticismo e os textos apócrifos -, Islamismo - incluindo o
sufismo), e tantos outros formatos, jangadas que visam, pela via da filosofia Racional
(que, obviamente, transpõe muito o domínio da fé e até o domínio do que
geralmente entendemos por Razão...), o alcance da Verdade (o momento em que o
'Eu' e o 'Outro' se tornam um só), que não é alcance nenhum porque o Absoluto
nunca deixou de estar em nós, e só não o víamos porque éramos homens
corporeamente aprisionados nas nossas cavernas de carne, nos nossos presentes
de materialismo tecnocrático.
Parece difícil aquilo que escrevo
mas tudo será sentido como simples depois de realizado o necessário
desvelamento; porque a Verdade (velada) está em nós, e, alcançando-a,
transpomos o nosso Ego, e é por isso que o Espírito é visto como
Transcendência, como coisa que transpõe o 'Eu' para passar a ser o Infinito. O
que não significa que tudo isto não passe de um 'Eu' iludido e alterado no seu
estado de consciência... o que, em última análise, lá nos leva a submergir
novamente no 'Eu' que somos, no 'Eu' que queremos ser, no 'Eu' que já é o
Outro, no 'Eu' mesmo como o Infinito.
Se tudo isto pode
"doer" por dentro, se quem me lê já sente essa dor, então já terá
sido iniciado mais um caminho pedregoso do peregrino, mais um passo no sentido
da desocultação do Oculto, e quem me lê é já, de certo modo, um
"iniciado", num caminho que convido a fazerem comigo, se bem que só
posso ajudar na "revelação" ("revelar" significa, na verdade,
"mostrar que está velado") mas nunca no "desvelar" (a
verdadeira Sabedoria tem de ser vivenciada pelo próprio, não pode ser mediada
por algo ou alguém, incluindo bem intencionados, mentores, terapeutas ou
Igrejas... malgrado a heresia presente...). Se pretendem uma paz imediata,
então talvez não a consigam de tanto a desejarem; acabo com as palavras
bíblicas, associadas a Jesus: «Não vim para trazer a paz, mas sim a espada».
(Texto escrito num contexto introdutório)