sábado, agosto 17, 2013

Nietzsche e a psicologia do Super-Homem


"O homem é uma coisa que tem de ser superada"

"Anuncio-vos o Super-Homem, aquele que há-de dominar a Terra"

Nietzsche («Assim falava Zaratustra»)


Se considerarmos que a Espiritualidade conforma um terreno que se estende desde o desiderato da "Psicologia do auto-conhecimento" - e que inclui obviamente o papel da religião (e, claro, do mito) como retorno saudosista (à semelhança do que propende a Psicanálise), como "reactualização nostálgica das origens" (Mircea Eliade) - à moral martirizada da "renúncia" (que se reifica com o 'Nada' da Voz meditativa do Silêncio e concretiza derradeiramente com a morte pacificadora), podemos considerar que é sobretudo a primeira perspectiva mais "psicológica/psicanalítica" que interessa mais à noção do Super-Homem tal como apresentada por Nietzsche em «Assim falava Zaratustra»; este mesmo Super-Homem é, assim, o resultado derradeiro de todo um crescimento, um pouco como o produto finalizado de um processo de Gnose pessoal, a meta de um caminho epopeico, que é no fundo a tragédia da vida psicológica e intelectual.
Sabendo nós que a via Ética genuína implica a renúncia e que o verdadeiro amor reitera o abandono do Ego (o desapego que um certo Budismo refere), é igualmente vero que nenhuma via de auto-exclusão poderá fazer com que, de facto, um efectivo crescimento transpessoal e civilizacional possa ocorrer. E esta perspectiva não pode deixar de recolher o consentimento próprio da modernidade, que é, de algum modo, o contexto temporal por excelência da valorização das relações inter-pessoais e mundanas, acrescentando-lhe por detrás o cenário de uma valoração científica materialista que há muito contribuiu para dessacralizar o tecido social e igualmente de uma valoração política liberal que veio contribuir para reificar uma dupla perspectiva de vida Individualista vs. Igualitarista.
E é precisamente a imersão neste contexto liberal empossado pela moda "darwinista" e reaccionado pela revolução Socialista que veio dar a Nietzsche uma força motriz elevada na geração da sua perspectiva do Super-Homem, que viria a ser um dos pré-requisitos históricos capitais da criação das teorias de Freud e de uma parte significante da Psicodinâmica.
Influenciado pela revolução científica do séc. XIX, e bem consciente da há muito anunciada "Morte de Deus", Nietzsche viria a contribuir para uma avalanche "secular" verdadeiramente dessacralizadora, tendo contribuído, como nenhum outro, para demolir as noções "românticas" do Espiritualismo e de todas as Metafísicas, e também para mostrar que todo o Idealismo tinha por trás a razão própria de cada um, a necessidade doentia de cada Ego, a projecção psicológica de uma ilusão, enfim... contribuiu para denunciar a aspiração Espiritual como meramente "humana, demasiado humana".
A pretensão da renúncia seria assim vista como doença do crescimento, medo da evolução, necessidade de totalização de um Eu que tem a fobia da aventura de ser; e, tal como defendido em «A Genealogia da Moral», a moral cristã seria somente o resultado da destituição de um tipo de moral mais antiga, que é a "moral dos fortes", a "moral aristocrática".
Para Nietzsche, o homem é sobretudo uma condição intermédia entre o animal e o Super-Homem, e o ser humano está destinado a crescer e a "tornar-se". O que vem em abono da perspectiva da evolução pessoal, do crescimento do nosso Eu, o qual irá implicar o "retorno", o recuo às memórias, e até o "marca passo", para que, no fim, após um caminho realizado enquanto "Odisseia", todos os condicionamentos tenham sido vencidos e a Liberdade (ou, pelo menos, a sensação da liberdade) tenha sido obtida.
Esta meta seria a do Super-Homem, ou seja o homem que foi capaz de se transcender - se bem que não tenho a certeza se este caminho possui um "fim" - obtendo-se um Ser capaz de criar os seus próprios Valores, que podemos interpretar como o homem maduro que se torna criador, de obra ou dos seus filhos.
Ora, se bem que existe uma tentação de associar ao Super-Homem aquilo que seria o resultado de um longo trabalho de divã psicanalítico (que pode ser interpretado como o caminho próprio de transmutação que todos estamos destinados a perpetrar no devir das nossas vidas), não posso deixar de acrescentar que esta é uma interpretação, que apesar de se manter válida e aceitável, não condiz, ainda assim, com a perspectiva que Nietzsche apresenta a partir de «Para além de Bem e Mal», em que o Super-Homem é apresentado enquanto Elite aristocrática destinada por várias gerações à grandeza, e portanto não alcançável pelo "comum" (malgrado as filosofias liberais e igualitaristas pouco aceites pelo filósofo); por outro lado, se bem que concebo que a via do crescimento e da formação do Super-Homem acaba por permitir a eticidade, este tipo de moral não corresponde, de facto, ao tipo de "moral darwinista" com a propensão competitiva da Vida que Nietzsche tanto parece estimar.
Os aspectos das obras de Nietzsche posteriores a «Assim falava Zaratustra» não implicam que não possamos dar livre interpretação a essa fantástica obra que propende que o homem está destinado a ser ultrapassado, de modo a criar o «Super-Homem», que, a meu ver pessoal, existe em potência em cada um de todos nós, e que, sendo alcançado (ou "desvelado"), permitirá a harmonia, no sentido em que a fixação da estrutura fálica ou o pilar fundamental do Eu levará automaticamente à capacidade do Eu de se virar para fora de si (é um facto, que a tolerância e a dedicação aos outros não podem ser obtidos sem que primeiro o Eu se encontre a si mesmo).
Penso que, na actual fase de "défice narcísico" da Humanidade, em que o egoísmo assumiu proporções desmedidas e o individualismo se tornou um valor dominante, é precisamente o alcance do Super-Homem (e só depois de uma "Super-Humanidade") que reitera a prioridade. Não do Super-Homem aristocrático e individualista, porque esse já o temos e em excesso! Mas do Super-Homem cheio de amor, primeiro do auto-amor do Super-Homem individual, e só depois do Amor Universal do Super-Homem colectivo.
Como já disse, a via implica o caminho próprio, até porque a verdadeira Sabedoria tem de ser "não mediada". Não se pode esperar que sejam os outros a fazer este caminho por nós; isso seria arriscar a substituição do Crescimento pelo Conforto, que, apelando à analogia com a Espiritualidade, é como substituir a espiritualidade esotérica pela religião exotérica (que, como sabemos, corresponde ao que de facto aconteceu com a Humanidade, principalmente desde as trevas cristãs).
Ora, percebemos, então, que a Espiritualidade inclui este "caminho" do "Auto-conhecimento", e que não é só o que Nietzsche nela quis identificar: a renúncia. O caminho ascético e a renúncia à mundaneidade são, apesar de tudo, caminhos nobres de Eticidade, mas parece-me que, não obstante a possibilidade de serem somente uma construção velada dos espiritualistas racionais (ou mera projecção psicológica do Idealismo), ancoram numa via final de silenciamento ou pacificação que a Humanidade não se encontra actualmente preparada para substantivar.
Assim, o crescimento, o silenciamento e o encontro do «Nada»/Absoluto - fases do "processo Espiritual" - poderiam corresponder precisamente às fases da vida do homem/Humanidade, em que o crescer da criança e do adulto (fase actual em que se encontra o Colectivo) seriam terminados pela pacificação da maturidade (e em que a entrada no silêncio sem a adequada integração do corpo egóico poderia implicar uma danosa "fuga para a frente", que os psicanalistas, de algum modo, denunciam nos que se "anulam a si mesmos", e em que, por outro lado, a vivência ad eternum do corpo egoísta destinaria o Homem ao temido "eterno retorno").
Empreendamos, consequentemente, o desejado caminho para o Super-Homem, que, ainda assim, estamos destinados a ser, nesta nossa impossibilidade de não sermos Amor.

 
in «A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade» (Edições Mahatma)

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