sábado, setembro 29, 2007

A indústria do corpo e a sociedade de consumo

O corpo humano ocupa um lugar de destaque nas sociedades modernas. A tentativa de o dominar e transformar é, actualmente, maior do que alguma vez foi. Aliás, os homens necessitam de dominar o seu próprio corpo de modo a sentirem que todo o espaço por ele ocupado é igualmente objecto de domínio. Para além dos espaços físicos e do conjunto prolixo das diversas mundividências em que se move o ser humano, o controlo da “forma” do corpo, e das sensações emanadas pela sua concretude, protagoniza uma das grandes metas do homem moderno. Na realidade, o homem hodierno pretende transformar o seu corpo num objecto maquinal, capaz de responder às mais incessantes necessidades estéticas e de prazer. Dentro desta dimensão transformista e reformista do objecto corporal, o corpo torna-se verdadeiramente um “objecto de consumo”, sendo que se torna vulnerável às mais opressivas culturas industriais e de mercado.
Segundo Jean Baudrillard, a descoberta do corpo, “após uma era milenária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipresença na publicidade, na moda e na cultura das massas – o culto higiénico, dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegância, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com ele se conectam, o Mito do Prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objecto de salvação, substituindo literalmente a alma nesta função moral e ideológica. Significa isto que o corpo não é uma evidência, o corpo é um facto de cultura.”
O corpo é, portanto, palco de uma série de destemperos próprios da fenomenologia social, estando os respectivos fenómenos ou artefactos do “uso corpóreo” estritamente associados à indústria, ao mercado e à cultura de massas. Em particular, a linha de corpo enquanto “forma”, tem dominado todos os sectores da sociedade contemporânea, até um ponto em que, a meu ver, o corpo e as práticas narcisistas com ele associadas podem ser incluídas no grupo das “indústrias culturais” de Adorno.
Falando, então, da “indústria do corpo” enquanto forma, ou seja, da utilização do corpo como objecto narcísico (ao serviço pleno do “princípio do prazer”), podemos referir três grandes culturas industriais que têm tomado palco na nossa sociedade de uma forma assaz sub-reptícia: a indústria do “bem estar”, as medicinas não convencionais e o condicionamento físico.
A indústria do “bem-estar” tem ganho tantos adeptos que tem-se tornado fonte de lucro incomensurável para imensos “profissionais”. Esteticistas, massagistas e terapeutas proponentes de imensas “técnicas orientais” têm possibilitado a edificação de um conceito artificial de “saúde”, levando a que o termo perca o seu estatuto em prol de uma certa ideia de “prazer efémero”. E não são poucas as vezes que as pessoas, pobres para o Serviço Nacional de Saúde e as mais variadas terapêuticas do sistema, demonstram possuir meios para realizarem as suas massagens relaxantes e/ou de emagrecimento (para além das incontáveis depilações, saunas, limpezas de pele, tratamentos anti-celulíticos, spas e outros “feitiços da mente”), assim como as massagens Tui-na ou ayurvédica, ou para receberem os seus toques de Shiatsu e de reflexologia (estas ditas de “massagens terapêuticas”... mas “terapêuticas” em quê?... naquilo que advogam ou no padrão de relaxação e escapismo que concedem?...). Neste último ponto, a indústria do “bem-estar” colide com outra indústria (semelhável à primeira): a das medicinas ditas “não convencionais”.
As medicinas não convencionais são também, e sobretudo, a expressão de uma indústria cultural. Aparentemente são uma outra forma de “ciência”, uma alternativa recomendável ao tratamento de patologias refractárias aos tratamentos mais ortodoxos. Mas, na prática, consistem em terapias não radicalmente diferentes das mais convencionais, sendo que tendem a sobressair comercialmente única e exclusivamente devido ao poder da “imagem”; imagem essa que propõe um ícone místico a fenómenos parcialmente explanáveis pela ciência médica (obviamente, de forma menos “explosiva” e atractiva). Assim sendo, terapias progressivamente afamadas como a quiroprática, a termoterapia, a aeoroterapia, os banhos, a helioterapia, a cromoterapia, as massagens terapêuticas, a magnetoterapia, a terapia floral de Bach e a homeopatia possuem um poder social de fundo “estético” muito semelhável às alegóricas medicinas orientais (acupunctura, digitopunctura, auriculopunctura, reflexologia, iridologia, moxibustão, Qigong e Tai-chi, shiatsu, pulsos chineses, ioga e Ayurveda), podendo inclusive roçar a “seriedade” da medicina tradicional indígena (curandeirismo, xamanismo, macumbas, espiritismo, bruxaria) e de um certo “poder curativo da mente” (relaxamento, hipnotismo, toques curativos, sofrologia, magia e cartomancia).
Resta falar da indústria do “condicionamento físico”. Desde tempos imemoriais que o homem tenta medir os seus limites físicos, tentando aperceber-se das barreiras que constrangem o corpo humano. Essa tem sido a filosofia das Olimpíadas e de todas as competições desportivas realizadas. Mas, na realidade, o desporto de competição existe sobretudo para alimentar uma “certa ideia de cultura”, nomeadamente a cultura menos ortodoxa e mais simplista do gesto motor. Por mais que tentemos justificar epistemologicamente a natureza do esforço físico, não conseguimos dar uma razão aceitável a quem não aceita os perigos da actividade física ilimitada. E por mais desculpas que os adeptos da prática física arranjem para sustentar a prática de actividades de fitness, esta não consegue afirmar-se sem o apoio de uma grande máquina comercial e imagética. Na realidade, a maioria das actividades do dito fitness desrespeitam o corpo e as leis posturais pelas quais ele se rege, mas a assunção de um artefacto estético-narcisista tem levado a que tantas práticas sejam realizadas sem dó nem piedade. Portanto, step, cycling, body sculpt, powerfit, body pump, body push, body defense, totalfitness, new balance, X55, são tudo sinónimos do mesmo alarvismo com que tantos instrutores tentam “delinear” o corpo dos utentes. Claro que há também o Pilates, o Yoga, o Chi-Kung e o Tai-chi, entre outras modalidades ditas “holísticas”... Mas quando será que vamos perceber que até mesmos essas modalidades aparecem impiedosamente desenhadas sob o jugo de um marketing eticamente inaceitável? Quando vamos perceber que o verdadeiro holismo se centra numa coisa muito mais profunda – e decerto menos pop – do que uma modalidade de treino corporal?...
Temos, portanto, que o corpo humano parece estar a ser consumido pela cultura do “kitsch”. O corpo, essa matéria tão frágil e tão “humana”, parece estar a ser desvirtuado, simplificado, desmemoriado, pelo poder de uma indústria sem limites, pelo poder de uma imagem... imagem falsa de uma realidade tornada pseudo-realidade. Nesta pseudo-realidade, tornada real a tantos olhos, o corpo e a mente passam a ser urdidos de uma forma telúrica e carnal, mas não menos solipsista e farsista. Esta realidade constitui o palco de mitos e ilusões publicitárias, ícones de uma sociedade alienada, acrítica e doente. Como proceder para evitar isto? Como obrigar as pessoas a tomarem consciência da verdadeira realidade? E como havemos de proceder para proteger as pessoas da sua própria ignorância?...
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(versão original integral)
Publicada uma versão reduzida e ligeiramente alterada deste artigo no 'Expresso' de 06 de Outubro, sob o título "A indústria do corpo e a ideia de consumo".
Publicada uma versão aumentada deste artigo no "Semanário" de 12 de Setembro de 2008, sob o título "A indústria do corpo e a sociedade de consumo: as três 'indústrias culturais'".

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