sexta-feira, novembro 23, 2007

Rolfing e Ida Rolf: Integrando as estruturas humanas

Que fique já esclarecido que não pratico ou conheço quem pratique o Rolfing. Nem fui sequer alguma vez “rolfado”. Nem sei se haverá (verdadeiros) rolfistas em Portugal. Mas daí a abdicar de falar do conceito, simplesmente fantástico, do Rolfing, teoria e método de Ida Rolf, vai um grande passo. Falarei, neste texto, da minha experiência de descoberta teorética de uma técnica fantástica, inicialmente denominada de “Integração Estrutural”, mais tarde chamada de Rolfing, em homenagem à sua mentora Ida Rolf.
A leitura da obra “Rolfing. A Integração das Estruturas Humanas” só poderá constituir um ardil do bom profissional que se preocupa com Postura e Globalidade. Não é, na realidade, uma obra obrigatória da formação de um qualquer terapeuta, mas devemos depreender que a sua leitura é fundamental para todo o terapeuta que deseja possuir um certo grau de cultura relativamente à sua arte de intervenção (coisa que não abunda no mundo de muitos fisioterapeutas e outros profissionais holísticos...).
Se adicionarmos à leitura da obra anterior o quase obrigatório complemento “biográfico” de Rosemary Feitis (“Ida Rolf fala sobre Rolfing e realidade física”), podemos ficar com uma ideia já bem denodada daquilo que caracteriza o método e a sua criadora.
Ida Rolf nasceu em 1896, em Nova Iorque, e cresceu no Bronx. Frequentou o Barnard College, formando-se em 1916, no meio da Primeira Grande Guerra. Foi contratada pelo Instituto Rockefeller, tendo mais tarde recebido o título de “doutor” em bioquímica pela Universidade de Columbia. No final dos anos 20, negócios de família, incluindo a administração do inventário do seu pai, forçaram-na a deixar o cargo no Instituto Rockefeller.
Ida Rolf começou a trabalhar com pessoas de forma quase acidental, utilizando conhecimentos de Ioga, osteopatia e homeopatia, os quais foi adquirindo de forma algo “natural” para a sua personalidade de investigadora. Sempre a interessou o princípio da osteopatia segundo o qual “a estrutura determina a função”.
Prosseguirei citando a própria Feitis: “De maneira semelhante, o Rolfing tem por objectivo melhorar as funções modificando a estrutura; mas difere da osteopatia em dois importantes aspectos. Nós “rolfistas” entendemos que os ossos são mantidos no lugar por tecidos moles: músculos, ligamentos, tendões, etc. Se um músculo ficar cronicamente encurtado, puxará o osso a ele ligado para fora do seu ponto natural de equilíbrio. A reposição do osso não é suficiente; o músculo isoladamente e o tecido circundante devem ser alongados para que a modificação seja permanente. Além disso, quando uma parte do corpo está a passar por problemas, o corpo como um todo fica fora do equilíbrio.”
É importante referir que as posturas do Yoga (ásanas) influenciaram decisivamente o método de Rolf. Em termos físicos, o principal objectivo das ásanas de Ioga é aumentar o espaço entre as superfícies de contacto ósseo. Ou seja, o pressuposto do Ioga é que o corpo precisa de se alongar (pena que o mesmo método não faça a distinção entre as diferentes cadeias musculares a alongar...). Durante os anos em que praticou Ioga, Ida Rolf estava a fundamentar a base de todo o seu futuro trabalho; o corpo precisa de se alongar e equilibrar; um corpo equilibrado fará surgir um ser humano melhor.
No entanto, aos poucos, Ida Rolf foi percebendo que as posturas não conseguiam atingir o objectivo de alongar e separar as articulações, que num grande número de casos ocorria uma verdadeira contracção das superfícies articulares. Havia necessidade de alguma outra coisa.
Com a ajuda de vários colaboradores, que foi conhecendo ao longo da sua vida, Ida Rolf criou um método de “libertação mio-fascial”, com base em técnicas de manipulação de tecidos moles. De modo a que o método lhe sobrevivesse, Ida Rolf começou a ensiná-lo a grupos de osteopatas e quiropatas. Contudo, estes últimos entendiam o método enquanto técnica de osteopatia ou quiroprática, o que desagradava a Rolf, pelo facto de esta ver o seu método como uma abordagem da totalidade do ser humano, um método global e independente de todos os outros.
Acrescento, citando mais uma vez Feitis: “Ida Rolf não estava interessada em curar sintomas; o seu objectivo era bem maior. Ela queria nada menos do que criar seres humanos novos e melhores. Os males curar-se-iam por si mesmos; os sintomas desapareceriam à medida que os organismos se tornassem equilibrados. A cura de sintomas desencadeia uma caçada interminável pelo corpo todo. Se, por exemplo, um homem se queixa de um incómodo no ombro, é possível consertar o mesmo com manipulação directa do tecido conjuntivo frouxo dessa região. Dentro de uma semana, o homem estará de volta, queixando-se de um problema no pescoço. Se eliminar o problema do pescoço, ele retornará com uma queixa no braço e, depois desta, no alto das costas, e assim por diante.”
Para Ida Rolf, o equilíbrio corporal dependeria da boa disposição das estruturas corpóreas relativamente umas às outras, e sempre atendendo à relação das peças corporais (ossos e tecidos miofasciais) com a gravidade. Na época em que Rolf estava a compilar as suas ideias, ela começou a esboçar um tipo de tratamento que pudesse ser utilizado para todos os corpos. O seu trabalho seria dirigido para a criação de equilíbrios, começando pela superfície do corpo e atingindo-o gradualmente em maior profundidade. Foi nessa época que ela estabeleceu a sequência de dez horas (ou dez sessões) do Rolfing; desde então, permaneceu basicamente a mesma.
Nesta altura, os diversos alunos de Rolf tentavam sistematicamente roubar o seu trabalho e os seus clientes, para além de efectuarem os seus próprios ensinamentos. Actualmente, o Rolfing constitui marca registada, sendo que o seu ensinamento é da exclusiva responsabilidade do Rolf Institute.
É pena que Ida Rolf nunca tenha contactado com os métodos francófonos de Reeducação Postural, pois tantos estes quanto o Rolfing se norteiam pelos mesmos princípios básicos. Mas é indubitável que, apesar de Ida Rolf não ter efectuado a descoberta de Mézières, assim como não conseguiu perspectivar o corpo numa lógica de cadeias musculares, terá atingido o pleno princípio teorético de que a estrutura determina a função. Para além disso, é preciso dizer que Ida Rolf foi mais longe em matéria de teoria anatomofisiológica; contudo, não possuía uma visão tão holística do corpo quanto aquilo que ela mesma advogava.
Ida Rolf criou um método fantástico. Estabeleceu princípios fantásticos. Demonstrou a importância do papel do tecido fascial. Mas cometeu um erro muito particular: o seu método constitui “chapa rasa” para diferentes doentes. As suas dez sessões de Integração Estrutural compõem uma espécie de “medicamento” interventivo, igual para diferentes doentes, donos de diferentes corpos. O seu método de tratamento pode ir muito mais longe. E possui indubitavelmente todas as possibilidades de uma verdadeira evolução conteudística.

(Consultar: http://www.rolf.org/ ou http://www.rolfing.org/)

quinta-feira, novembro 08, 2007

De Mézières a Nisand: A Reconstrução Postural

Começo por dizer que, enquanto fisioterapeuta mézièrista que sou, sinto que tenho o direito de falar dos diversos métodos de Reeducação Postural, principalmente aqueles que advieram do método original da fisioterapeuta Françoise Mézières. Mas devo dizer que não sou formado neste grande método de que vou falar, a Reconstrução Postural, nem conheço qualquer português que tenha formação no mesmo; o que é uma lamentável pena... pois este é um método brilhante, uma técnica que conseguiu chegar ao âmago daquilo que se pode considerar como um verdadeiro método reeducativo.
O método da Reconstrução Postural foi criado em 1992, a partir do método Mézières. O primeiro constitui não só uma fonte de renovação metodológica relativamente ao método original (Mézières), mas também o resultado de um trabalho exploratório e casuístico especialmente significativo, o que pode ser explicado pelo facto de a Reconstrução Postural ter sido desenvolvida num contexto académico (nomeadamente, no contexto da formação base e pós-graduada da Universidade Louis Pasteur – Estrasburgo, França).
Como já terá sido referido anteriormente neste espaço, o método Mézières compõe uma “revolução” na forma de ver as deformidades posturais, sendo que as vê enquanto resultado de excessos musculares, os quais estão ligados ao papel da musculatura postural, de natureza tónica, excessivamente forte, e proeminente sobretudo na região posterior do corpo.
Se o método Mézières aparece historicamente relacionado com uma descoberta referente ao ano de 1947 e à grande obra “Révolution en Gymnastique Orthopédique” (1949), o método da Reconstrução Postural deriva deste primeiro, muito mais tarde nos anos 90, sem nunca se ter interposto a ele, antes acrescentando, revalorizando e homenageando, e realizando os necessários acrescentos atentatórios de uma evolução.
A Reconstrução Postural difere do método Mézières em diversos aspectos, nomeadamente (Callens, 2004; Jesel, 1999; Nisand, 1997, 2004):
(a) Enquanto Mézières se referia à existência de três cadeias musculares posturais (a grande cadeia posterior, a cadeia ântero-interna – diafragma e psoas – e a cadeia braquial), Nisand acrescenta e descreve pormenorizadamente uma nova cadeia muscular – a cadeia anterior do pescoço.
(b) Nisand propõe uma nova interpretação da lógica das compensações corporais (reacções anormais de defesa à dor e ao alongamento excessivo), salientando a importância de um conjunto de respostas neurológicas aquando do movimento (respostas evocadas) e o contributo dos centros neurológicos centrais para o surgimento das deformidades. Assim sendo, o tratamento passa não só pelo alongamento global das cadeias musculares (Mézières), mas também pelo trabalho de consciencialização corporal com base na estimulação neuro-sensorial (ou seja, na modificação do padrão de excitabilidade muscular das cadeias posturais), de modo a que os alongamentos possuam em efeito de neuroplasticidade adaptativa eficaz e não só em efeito de modificabilidade temporária do tónus.
(c) O método da Reconstrução Postural propõe uma outra forma de interpretar o aparecimento de dor. A dor não tem origem na própria deformidade, mas sim na incapacidade que a estrutura hipertónica (rígida) tem de se deformar.
A partir destas diferenças, o método de tratamento por Mézières por meio do estiramento em “contracção isométrica excêntrica” (contracção estática anti-gravidade) transforma-se num meio de tratamento por “solicitação activa induzida”, ou seja, da postura trabalhada passivamente passa-se para um trabalho de carácter mais activo, mediante a facilitação de padrões de postura por meio de “pontos-chave” (à semelhança do papel dos mesmos “pontos-chave” de controlo do método Bobath de tratamento das disfunções neurológicas), partes do corpo que são sujeitas a movimentos de grande amplitude com o objectivo de induzir ou solicitar determinado padrão postural. As posturas em Reconstrução Postural são obtidas, portanto, a partir de pontos periféricos precisos, e são mantidas não por tempos necessariamente muito prolongados (Mézières), mas até ao ponto em que se verifique a normalização tónica. O agravamento da dismorfia é, ao contrário do que ocorre com o método Mézières, uma condição obrigatória para se obter a postura normal, é um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural correcto.
Diferenças metodológicas levam a diferentes técnicas, sendo que muitas das manobras mézièristas foram modificadas ou suprimidas: o mézièrista tende a evitar as compensações, enquanto que o “reconstrutor” tende a lidar com todas as posturas que possam ser efectivas no sentido de se obter uma inibição do padrão; o mézièrista identifica a dismorfia como algo “anormal”, enquanto que o reconstrutor identifica a dismorfia como um ponto de passagem para a obtenção de um padrão postural vantajoso; o mézièrista tende a encontrar uma postura correctiva e a mantê-la o máximo de tempo possível, enquanto que o reconstrutor tende a manter a “postura” só até que exista exaustão e extinção da resposta evocada (normalização tónica); as autoposturas são impensáveis na Reconstrução Postural, pois o próprio sujeito não consegue educar as suas próprias reacções tónicas correctivas; os proponentes da Reconstrução Postural não falam de “correcção morfológica” como os mézièristas, mas sim de “restauração morfológica”, a qual tem por base não o alongamento mio-fascial correctivo mas sim o alongamento com vista à normalização de padrões de activação tónica das cadeias musculares.
Resta dizer que a Reconstrução Postural constitui o mais científico de todos os métodos de Reeducação Postural. É incontável o número de artigos e o número de publicações de outro género construídos com base em estudos de Nisand e colegas. Infelizmente, os Senhores da Reconstrução Postural não têm publicado em inglês; somente em francês e em revistas francesas, o que complica o conhecimento mais universal do método. Aquele que constitui o paradigma científico de Mézières, ou seja, a Reconstrução Postural, é também o mais desconhecido dos métodos reeducativos. Talvez o seu desconhecimento derive da humildade dos investigadores. Talvez derive da humildade do método. Mas, se depender de mim, este método receberá toda a fama e reconhecimento que o mesmo merece.