“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se esvai na fumaça da representação”
(Guy Debord, “A sociedade de espectáculo”)
(Guy Debord, “A sociedade de espectáculo”)
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Poderíamos referenciar um conjunto extremamente avultado de “capítulos” ou “temáticas” de ordem social, cultural e/ou política para traçar o perfil de uma linha temporal que se estende desde o Maio de 68 até ao limiar iniciático de um novo milénio. Em todos esses “capítulos socioculturais” estaria, decerto, bem presente a visão de um poderoso abismo entre as “virtudes” idiossincráticas dos factos vividos nos anos 60 e as mesmas referentes à sociedade hodierna. Mas, tendo em conta a minha formação de fisioterapeuta, e os meus estudos particulares – de ordem filosófica, antropológica e sociológica – referentes ao lugar que o “corpo” ocupa no Éden social, proponho-me realizar uma pequena súmula do que foi a evolução histórica desfigurada e incoerente da “realidade corpórea” desde esse mítico ano de 1968 até à actualidade.
Sabidamente, os anos 60 do século XX já passado, constituem um tempo mítico de uma poderosa revolução juvenil; revolução de uma juventude simultaneamente consciente de um certo conjunto de liberdades quiméricas e viventes na latência de uma poderosa castração social. A história dos anos 60 é a história do “corpo”... corpo tapado, corpo sofrido, corpo desvirtuado... tornado corpo liberto e desmistificado; pois é bem verdade que, até àqueles anos, o corpo vivia na ausência da liberdade estética e sexual, o corpo vivia no auge do preconceito da cor, sendo que o corpo musculoso e diferenciado e, sobretudo, o corpo vivo, sensualizado e desnudado era fortemente repelido. Com a crescente opressão de sistemas autoritários nas Américas e na Europa, e com a ajuda de uma poderosa geração de ideais universitários provenientes sobretudo dos EUA, a revolução da cultura juvenil (e de toda uma outra mais adulta) tornou-se inevitável. Na América do Norte, os jovens iniciaram uma campanha a favor da “libertação sexual”, enquanto que, na França universitária, a gota de água para o mítico Maio de 68 seria a proibição do contacto físico entre sexos opostos promovido pela obstrução da visita dos rapazes ao dormitório feminino de determinado “campus” universitário.
Nos anos que se seguiram ao Maio de 68, foi globalizada a utilização da pílula e massificada a utilização do corpo enquanto máquina identitária (e, aqui, refiro-me tanto à identidade “individual” quanto à “colectiva”); assim, o corpo passou a ser lugar de vivências desembaraçadas, passou a poder andar pelas ruas de forma vivamente desnudada, passou a poder ser mostrado e utilizado sem limites e sem barreiras de qualquer espécie. Claro que a liberdade foi tanta que a libertinagem teve lugar. E assim, o corpo passou também a ser o lugar privilegiado da utilização abusiva de drogas, da propagação de doenças actualmente apelidadas de “sexualmente transmissíveis”, da contaminação da sociedade com a vivência juvenil de lugares e culturas subversivas e algo degradantes. Entretanto, o corpo passou também a ser um objecto fundamental da vivência em sociedade em praticamente todos os sectores que a perfazem; a moda, a publicidade, as modelos, os concursos de beleza, os desportistas, os actores, todos estes passaram a ter de cuidar do corpo... de uma forma algo maquinal e um tanto teoreticamente desfigurada.
Portanto, se no Maio de 68, um certo número de pensadores, que podemos apelidar de “neo-marxistas” (refiro-me, sobretudo, aos filósofos da escola de Frankfurt) viriam a contribuir para fornecer uma visão renovada da vivência “alienada” em sociedade, a partir dos anos 70, e principalmente nos anos 90 e tempos actuais, o corpo viria a ser palco de um novo processo de alienação, de desfiguração conceptual. Expliquemos melhor a ideia. Se até aos anos 60 o corpo era palco de um processo de castração, sendo que não era assumida a sua plena “utilização livre”, a libertação sexual e estética do mesmo, ocorrida com a revolução dos 60s, viria, por um lado, a tornar as pessoas mais conscientes de um processo de alienação perpetrada por uma autoridade “anti-sexual”, mas por outro, viria a fazer mergulhar os jovens num novo processo de alienação social. E esta nova alienação viria a ser claramente aproveitada pela indústria da moda e todas as outras onde o corpo é utilizado enquanto intrépido objecto narcísico.
O novo milénio é palco de um processo de desvirtuação do corpo enquanto “objecto personalístico”. Já não existe o corpo livre e com saúde. Só existe o corpo enquanto objecto de latência superficial e estética. Pergunto-me: o que diria o Guy Debord da “Sociedade de espectáculo” face às novas indústrias do “corpo máquina” e da estética?... O que diria Jean-Paul Sartre face à nova existência tão vazia de conteúdos e tão cheia do vazio da “forma” e do simulacro da exterioridade?...
Defendo que, a respeito do corpo enquanto “objecto maquinal-estético”, há três grandes modalidades do que outros apelidaram de “indústrias culturais” (Horkheimer e Adorno): (a) as medicinas não convencionais, as quais, sob o pretexto de uma série de míticas e antigas “epistemis”, vendem uma metodologia de tratamento que, a meu ver, não acrescenta nada àquilo que pode ser cientificamente contextualizado (aliás, a confusão de meios de tratamento, uns aceitáveis e outros menos aceitáveis, existe só para confundir aquilo que poderia facilmente ser conciliado numa teoria unificadora e parcimoniosa do funcionamento do corpo, ao jeito de uma “navalha de Ockham”); (b) o fitness, ou seja, o conjunto avultado, mordaz e isomórfico de “actividades físicas”, realizadas sob a capa de uma pretensa “saúde”, que transformam, sob a égide de um poderoso marketing arrogante e enganador, o “corpo-saúde e personalístico” num “corpo máquina”, um corpo alienado (tão alienado quanto a mente – individual e colectiva – que o controla), um corpo grosseiramente traído; e (c) a indústria do bem-estar, a qual se confunde com as duas anteriores e está relacionada com todos aqueles “spas”, massagens relaxantes e outras banalidades que promovem o escapismo, numa sociedade doente, cujos corpos (e, mais uma vez, as mentes que os controlam) precisam de ser ouvidos e não calados.
Ora, é pena que, chegados a um novo milénio, não tenhamos posse de uma nova “geração jovem” capaz de tomar as rédeas à autoridade, aquela entidade capitalista que transformou, há muito, o nosso corpo numa mercadoria. Precisamos de um novo materialismo dialéctico, uma nova revolução cultural. E quanto aos “antigos revolucionários”, os que fizeram o Maio de 68, esses estão extintos, se não em “vida”, estão na essência.
Sabidamente, os anos 60 do século XX já passado, constituem um tempo mítico de uma poderosa revolução juvenil; revolução de uma juventude simultaneamente consciente de um certo conjunto de liberdades quiméricas e viventes na latência de uma poderosa castração social. A história dos anos 60 é a história do “corpo”... corpo tapado, corpo sofrido, corpo desvirtuado... tornado corpo liberto e desmistificado; pois é bem verdade que, até àqueles anos, o corpo vivia na ausência da liberdade estética e sexual, o corpo vivia no auge do preconceito da cor, sendo que o corpo musculoso e diferenciado e, sobretudo, o corpo vivo, sensualizado e desnudado era fortemente repelido. Com a crescente opressão de sistemas autoritários nas Américas e na Europa, e com a ajuda de uma poderosa geração de ideais universitários provenientes sobretudo dos EUA, a revolução da cultura juvenil (e de toda uma outra mais adulta) tornou-se inevitável. Na América do Norte, os jovens iniciaram uma campanha a favor da “libertação sexual”, enquanto que, na França universitária, a gota de água para o mítico Maio de 68 seria a proibição do contacto físico entre sexos opostos promovido pela obstrução da visita dos rapazes ao dormitório feminino de determinado “campus” universitário.
Nos anos que se seguiram ao Maio de 68, foi globalizada a utilização da pílula e massificada a utilização do corpo enquanto máquina identitária (e, aqui, refiro-me tanto à identidade “individual” quanto à “colectiva”); assim, o corpo passou a ser lugar de vivências desembaraçadas, passou a poder andar pelas ruas de forma vivamente desnudada, passou a poder ser mostrado e utilizado sem limites e sem barreiras de qualquer espécie. Claro que a liberdade foi tanta que a libertinagem teve lugar. E assim, o corpo passou também a ser o lugar privilegiado da utilização abusiva de drogas, da propagação de doenças actualmente apelidadas de “sexualmente transmissíveis”, da contaminação da sociedade com a vivência juvenil de lugares e culturas subversivas e algo degradantes. Entretanto, o corpo passou também a ser um objecto fundamental da vivência em sociedade em praticamente todos os sectores que a perfazem; a moda, a publicidade, as modelos, os concursos de beleza, os desportistas, os actores, todos estes passaram a ter de cuidar do corpo... de uma forma algo maquinal e um tanto teoreticamente desfigurada.
Portanto, se no Maio de 68, um certo número de pensadores, que podemos apelidar de “neo-marxistas” (refiro-me, sobretudo, aos filósofos da escola de Frankfurt) viriam a contribuir para fornecer uma visão renovada da vivência “alienada” em sociedade, a partir dos anos 70, e principalmente nos anos 90 e tempos actuais, o corpo viria a ser palco de um novo processo de alienação, de desfiguração conceptual. Expliquemos melhor a ideia. Se até aos anos 60 o corpo era palco de um processo de castração, sendo que não era assumida a sua plena “utilização livre”, a libertação sexual e estética do mesmo, ocorrida com a revolução dos 60s, viria, por um lado, a tornar as pessoas mais conscientes de um processo de alienação perpetrada por uma autoridade “anti-sexual”, mas por outro, viria a fazer mergulhar os jovens num novo processo de alienação social. E esta nova alienação viria a ser claramente aproveitada pela indústria da moda e todas as outras onde o corpo é utilizado enquanto intrépido objecto narcísico.
O novo milénio é palco de um processo de desvirtuação do corpo enquanto “objecto personalístico”. Já não existe o corpo livre e com saúde. Só existe o corpo enquanto objecto de latência superficial e estética. Pergunto-me: o que diria o Guy Debord da “Sociedade de espectáculo” face às novas indústrias do “corpo máquina” e da estética?... O que diria Jean-Paul Sartre face à nova existência tão vazia de conteúdos e tão cheia do vazio da “forma” e do simulacro da exterioridade?...
Defendo que, a respeito do corpo enquanto “objecto maquinal-estético”, há três grandes modalidades do que outros apelidaram de “indústrias culturais” (Horkheimer e Adorno): (a) as medicinas não convencionais, as quais, sob o pretexto de uma série de míticas e antigas “epistemis”, vendem uma metodologia de tratamento que, a meu ver, não acrescenta nada àquilo que pode ser cientificamente contextualizado (aliás, a confusão de meios de tratamento, uns aceitáveis e outros menos aceitáveis, existe só para confundir aquilo que poderia facilmente ser conciliado numa teoria unificadora e parcimoniosa do funcionamento do corpo, ao jeito de uma “navalha de Ockham”); (b) o fitness, ou seja, o conjunto avultado, mordaz e isomórfico de “actividades físicas”, realizadas sob a capa de uma pretensa “saúde”, que transformam, sob a égide de um poderoso marketing arrogante e enganador, o “corpo-saúde e personalístico” num “corpo máquina”, um corpo alienado (tão alienado quanto a mente – individual e colectiva – que o controla), um corpo grosseiramente traído; e (c) a indústria do bem-estar, a qual se confunde com as duas anteriores e está relacionada com todos aqueles “spas”, massagens relaxantes e outras banalidades que promovem o escapismo, numa sociedade doente, cujos corpos (e, mais uma vez, as mentes que os controlam) precisam de ser ouvidos e não calados.
Ora, é pena que, chegados a um novo milénio, não tenhamos posse de uma nova “geração jovem” capaz de tomar as rédeas à autoridade, aquela entidade capitalista que transformou, há muito, o nosso corpo numa mercadoria. Precisamos de um novo materialismo dialéctico, uma nova revolução cultural. E quanto aos “antigos revolucionários”, os que fizeram o Maio de 68, esses estão extintos, se não em “vida”, estão na essência.
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