sábado, janeiro 30, 2010

Greve dos enfermeiros

Este post constitui um artigo que publiquei parcialmente no Expresso de 30/01/2010, e deve ser entendido nesse mesmo contexto.
_____

Enquanto profissional de saúde que sou, nomeadamente fisioterapeuta, reconheço a importância da aquisição de uma formação de alto custo em saúde com vista ao conjunto das boas práticas terapêuticas por parte de enfermeiros ou técnicos de saúde. Há, no entanto, sem que a especificação da profissão o exija plenamente, uma certa pretensão dita “proselitista” por parte dos enfermeiros hospitalares. Na realidade, um pouco à semelhança com o que acontece na vizinha Espanha, país onde brevemente os enfermeiros terão o direito de prescrição de medicamentos sujeitos a receita médica, os enfermeiros portugueses têm uma certa aspiração a serem médicos. Só isso justifica a existência de uma licenciatura de quatro anos em Enfermagem, sem contar com a especialização e as potenciais pós-graduações. E também só isso justifica esta nova exigência dos enfermeiros de auferirem de ordenados ao nível de qualquer outra licenciatura. Reconheço que, enquanto profissional igualmente licenciado, também gostaria de receber um ordenado superior a mil euros mensais, mas também tenho de dar a “mão à palmatória”, admitindo que os novos ordenados que os enfermeiros pretendem receber irão, brevemente, tornar os custos em saúde extremamente proibitivos para o Estado. No mínimo, poderíamos esperar que os enfermeiros licenciados fossem mais produtivos que os enfermeiros não licenciados, mas, na realidade, os estudos e a experiência têm demonstrado que existe uma certa tendência para profissionais altamente graduados e/ou especializados trabalharem menos e exigirem mais. E para quem duvida deste facto veja-se o que está a acontecer nos diversos hospitais portugueses: tarefas que eram anteriormente desempenhadas por enfermeiros são agora desempenhadas por auxiliares de enfermagem ou de acção médica (algumas dessas tarefas podem ser consideradas como “sujas” ou “desagradáveis”). Os enfermeiros gostariam que tal não acontecesse, mas a verdade é que isso só se verifica precisamente porque os mesmos começaram a exigir remunerações crescentemente elevadas (para além do óbvio facto de não quererem continuar a realizar certas tarefas consideradas como estatutariamente “degradantes”).
Conclui-se, portanto, que as exigências por parte dos enfermeiros farão com que, a longo prazo, os mesmos se tornem crescentemente substituíveis por outros profissionais com menos formação; o que não abona nada a favor dos doentes. E também não abona a favor dos próprios enfermeiros, os quais, à semelhança dos “técnicos de diagnóstico e terapêutica”, já sofrem da realidade do desemprego.

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Para uma dinâmica do pós-modernismo: Thomas S. Kuhn

Tentar estabelecer uma ligação entre a lógica pós-moderna e a filosofia epistemológica de Kuhn (1922-1996) não é trabalho assaz complexo. Daí que acho risível que a teoria dos paradigmas deste último não seja mais vezes associada à temática da “moral pós-moderna”... Mas veremos que a ideia de Kuhn de que não há uma “verdade”, mas sim várias “verdades”, tantas quantas as realidades científicas que se propõem representar por “modelos” determinados, se aproxima da noção de “pós-modernismo” filosófico que aparece tantas vezes associado às ideias de Michel Foucault e de Jacques Derrida.
Recentemente traduzido para o português nacional, a obra “A estrutura das revoluções científicas” (Guerra & Paz; edição original de 1962) constitui o testamento ideológico de Thomas Kuhn, e este é de tal maneira determinante que não se entende por que é que o citado trabalho só agora foi vertido para a nossa língua.
Como resumir a teoria epistemológica de Kuhn? Começaria por dizer que, para o mesmo, a ideia da existência de uma e só uma Verdade representada por um modelo científico unitário e objectivo, não passa de mera ilusão. Na realidade a ciência é feita de modelos e estes são construídos, em grande parte, pela realidade interna, inextrincavelmente cultural, temporal e multidimensional, do próprio cientista ou grupo restrito de cientistas. Pois a noção de “paradigma” é precisamente a de um código interpretativo da realidade face a um conjunto de leis específicas, sendo que esse mesmo modelo é considerado como sinónimo da própria Verdade. Mas, como vão surgindo novos problemas, e como alguns desses problemas não podem ser resolvidos ou interpretados à luz do código paradigmático prévio e dominante, é inevitável que um novo paradigma acabe por surgir, após uma fase de “revolução científica”. Tudo para que um novo modelo de “ciência normal” volte a imprimir a interpretação da realidade segundo o protótipo novo, que passou a ser o dominante.
A teoria dos paradigmas releva o mundo da ciência como um conjunto de realidades que se vão sucedendo e substituindo, sendo que, por se interpretar a “última” realidade como a real e dominante, se dá a ideia de que essa sucessão não existe e de que uma só visão objectiva do mundo persiste (e sempre persistiu).
O paradigma tem, na sua inerência, não uma tonalidade unionista verdadeiramente objectiva e falsificável, mas sim um contexto, um mundo de significações, que assenta no tecido de crenças de um cientista ou de uma comunidade de cientistas. E, mesmo havendo paradigmas progressivos que sucedem a outros antigos que perderam a capacidade de resolver certos problemas (aparentemente novos), os antigos paradigmas tendem muitas vezes a persistir através da prática da negação da realidade dos novos problemas ou dos novos esquemas da realidade.
Só assim se entende que, por exemplo no mundo da saúde, tantos terapeutas se mantenham fiéis a práticas e modelos que não dão resultado no tratamento de patologias específicas, provavelmente tratáveis com mais eficácia segundo um modelo interpretativo mais ajustado. E só assim se entende, por exemplo, que um doente se mantenha anos a fio no divã de um psicanalista, persistindo este último em interpretar a realidade segundo um esquema (pós)freudiano, porque à luz desse esquema as coisas têm lógica (mas essencialmente para o próprio psicanalista), mesmo que um modelo cognitivo-comportamental surta mais resultados.
Ora, esta ideia que de não há uma ciência, mas sim várias ciências, ultrapassa a concepção simplista de que a realidade é plural e deve ser interpretada segundo uma prática quase “pessoana” (portanto heteronímica), acabando por abraçar o “pós-modernismo” filosófico, que vive das muldimensionalidades interpretativas e desconstrutivas (Derrida) das coisas. Eventualmente poderíamos chegar à interpretação da multimodalidade de modelos em saúde, como representativas de “relações de poder” (Foucault), mas isso seria complicar exageradamente as coisas...
Fiquemos pela ideia de que a existência de várias formas de interpretar a realidade leva a que, na prática, passem a existir tantas realidades quantas as interpretações existentes, pelo que o conceito de Verdade única e absoluta perde-se a favor de uma ciência vertida pela fenomenologia do acto único, livre e singular.
Por causa desta “singularidade”, a ciência feita de estudos qualitativos e descrições psicossociológicas acaba por ser legitimada, abrindo todo um capítulo gigante de subjectivismo de protótipos, para além da inalienável realidade da fraude científica. Daí que, mais uma vez, ciências como a psicologia, a sociologia e a antropologia não possam nunca merecer o mesmo respeito que as ciências exactas e observacionais. Enquanto fisioterapeuta que sou, temo ter de admitir que as ciências médicas estão a aproximar-se cada vez mais das primeiras, fazendo uso de métodos crescentemente questionáveis e pseudo-científicos.
---
Publicado no As Artes Entre As Letras, 10/02/2010

sábado, janeiro 02, 2010

Karl Popper: a evolução da ciência por “tentativa e erro”

Não há, no domínio espectral da filosofia da ciência e da teoria do conhecimento, nome maior do que o de Karl Popper (1902-1994). Este homem, com formação de físico, não é tanto um grande homem da ciência, mas um grande homem da metodologia científica que é actualmente utilizada.
Penso que, contudo, ainda se ensina nos liceus que a ciência se inicia com a observação. E que, a partir desta, são colocadas hipóteses, as quais, depois de testadas pela experimentação, são confirmadas ou infirmadas. É esta a visão de ciência da escola analítica, a qual Popper inclui no conjunto dos teóricos essencialistas. E é ainda esta forma de fazer ciência que é ensinada em muitas universidades, pois foi assim que supostamente evoluiu a ciência – estejamos a falar dos cálculos sobre a posição dos planetas de Ptolomeu, do uso da balança por Lavoisier ou da matematização do campo electromagnético de Maxwell.
Mas, na realidade, para Popper, toda a observação supostamente iniciadora do processo científico tem por base um certo apriorismo – algo que dirige o sentido e o objecto da observação, assim como o seu campo de acção – nomeadamente, um conjunto de propensões (gerador de problemas), que são, nada mais nada menos, que uma tendência para olhar para algo de uma forma fenomenologicamente heurística. Assim sendo, não foi a queda da maçã que levou Newton a pensar na lei da queda dos objectos. Foi antes tudo aquilo que é constitutivo da mente de Newton que fez com que este homem reparasse na queda dos objectos e questionasse os princípios subjacentes a esse processo pela primeiríssima vez (e antes de qualquer outro cientista).
Ora, se toda a ciência se inicia por um sistema de propensões, também não é verdade que a ciência evolua por um mero processo de acumulação de confirmações de hipóteses (ao contrário do que era propugnado pelos neo-positivistas e do que é defendido por muitos cientistas actuais). Na visão de Popper, o esforço do cientista deve ir antes para a tentativa de falsificação de conjecturas. E a teoria ou hipótese existente sairá fortalecida – e nunca categoricamente comprovada (a questão dos cines brancos versus cisnes pretos...) – se sobreviver ao maior número possível de tentativas de refutação. O critério de “falsificabilidade” é, portanto, o grande mediador de uma evolução da ciência feita por “tentativa e erro”, à semelhança do próprio processo natural evolutivo (num sentido necessariamente darwinista).
O processo subjacente foi muitas vezes descrito por Popper pela fórmula P1 » TT » DC » P2. Utilizando as palavras de Popper: “Suponhamos que começamos com um problema P1. Passamos, em seguida, à formulação de uma solução tentativa para o problema – uma solução conjectural ou hipotética, uma teoria tentativa, TT. Esta é, por sua vez, submetida à discussão crítica, DC, à luz das provas, caso estas se encontrem disponíveis. Surgem, como resultante, novos problemas.” É preciso acrescentar que P2 é comummente maior que P1, ou seja, o conjunto do processo leva a que resultem mais problemas no fim do que no início do ciclo. Importante é também dizer que, mais do que factos, o que resulta do modelo popperiano é uma nova teoria, necessariamente mais consistente que a teoria inicialmente proposta. Daí que, para Popper, apesar de existir supostamente uma Realidade única e inolvidável (“realismo” que partilha com os neo-positivistas), essa mesma Verdade não é nunca verdadeiramente alcançada... somente virtualmente alcançável. Daí que nunca se diga que “todos os cines são brancos”, pois pode sempre acontecer que um dia apareçam cisnes pretos (como, de facto, aconteceu).
A ciência é, portanto, segundo Popper, dedutiva (e não indutiva) e, subjacente ao seu “racionalismo crítico”, está a constante necessidade de colocar em dúvida certas certezas. De facto, como tantas vezes é exemplificado por Popper, as “certezas” de Newton vieram a ser fortemente contestadas por Einstein.
A existência de uma evolução da ciência por um processo de refutação constante de hipóteses leva a considerar o critério de “falsificabilidade” como algo que diferencia o científico do pseudo-científico. Por exemplo, certas “ciências”, como a psicanálise ou o marxismo, não são verdadeiras ciências segundo o critério do racionalismo crítico popperiano. Por outro lado, esse mesmo critério permitirá a Popper possuir um argumento que enalteça a ideia de que a ciência evolui racionalmente, a desmando das teorizações historicistas, que Popper tantas vezes adversou.
___
Publicado no "As Artes Entre As Letras", 07 de Abril de 2010