sábado, julho 24, 2010

Mariano Gago e o realismo ingénuo

O artigo do Expresso de 17 de Junho de 2010 intitulado “Muitas vagas, pouco emprego” termina com a referência ao ministro Mariano Gago, relativa à necessidade – segundo o próprio – de termos dois milhões de licenciados em Portugal e relativo ao facto de que “quem completa uma formação superior tem mais facilidade em encontrar trabalho, fica menos tempo no desemprego e ganha bem mais do que quem tem habilitações inferiores”. Ora, tendo em conta a realidade com que todos os dias me deparo, questiono tanto a coerência quanto a lucidez mental de Mariano Gago.
Realmente é certo que os outros países europeus possuem 20% de licenciados, enquanto que nós nos mantemos pela metade dessa quota. Mas, também esses mesmos países possuem a capacidade para fomentar a criação de necessidades de mercado ao nível do número de licenciados. Ora, visto que o nosso país tem uma qualidade débil na criação de projectos e de novos postos de trabalho, e visto que o empreendedorismo é totalmente parco neste nosso país onde todos se encostam, perguntaria como é possível afirmar aquilo que Gago afirma. É que pouco interessa estar a formar licenciados ao nível dos outros países europeus, se as necessidades de mercado não acompanharem também a evolução económica desses mesmos outros países da Europa.
Tendo em conta que a evolução do mercado em Portugal se faz com uma lentidão sem paralelo, também a criação de vagas no ensino superior – assim como a criação de novos cursos – se deveria fazer com a mesma lentidão. Mas, na realidade, as vagas e os cursos criados, principalmente os do ensino privado, obedecem a uma lógica de corporativismo, sendo que os interesses existentes – em grande parte económicos – fazem com que os cursos estejam criados mais para os professores e as instituições do que para os alunos.
Falta rigor! Falta transparência! Falta imparcialidade na avaliação dos novos cursos! Falta, sobretudo, o realismo relativo aos milhares de licenciados no desemprego (lá vão fazendo os seus mestrados e doutoramentos, muitas vezes alimentando-se financeiramente à custa de bolsas atrás de bolsas) e relativo à recusa de emprego por “excesso de habilitações”. E falta termos um ministro que veja o país “real” que temos, e que não permaneça incompetentemente a falar de um “over the rainbow” que só o Governo consegue ver.

Publicado em "A carta da semana", no 'Expresso' de 24/07/2010

sexta-feira, julho 16, 2010

O mundo do wellness: indústria da alienação

Mais uma vez, o novo artigo que se apresenta também não possui grandes novidades para os seguidores do blog. Publico-o, por constituir um artigo publicado a 16/07/2010 no Jornal 'i'.
__________

Na inclusão das denominadas “indústrias do corpo”, o wellness adquiriu um lugar um tanto ou quanto privilegiado no seio do tecido social ocidental, levando a que um certo conceito de “saúde” ganhe contornos de verdadeira abrangência, infelizmente incluindo essa “indústria do bem-estar”, assaz “indústria cultural” (segundo a teoria dos filósofos da escola de Frankfurt), que se revela enquanto placebo psicológico e ilusório dos tempos modernos.
Esteticistas, massagistas e terapeutas proponentes de imensas “técnicas orientais” têm possibilitado a edificação de um conceito artificial de “saúde”, levando a que o termo perca o seu estatuto em prol de uma certa ideia de “prazer efémero”. E não são poucas as vezes que as pessoas, pobres para o Serviço Nacional de Saúde e as mais variadas terapêuticas do Sistema, demonstram possuir meios para realizarem as suas massagens relaxantes e/ou de emagrecimento (para além das incontáveis depilações, saunas, limpezas de pele, tratamentos anti-celulíticos, spas e outros “feitiços da mente”), assim como as massagens Tui-na ou ayurvédica, ou para receberem os seus toques de Shiatsu e de reflexologia (estas ditas de “massagens terapêuticas”...).
Uma citação de José Gil, da sua obra “Metamorfoses do corpo” resume a essência do epifenómeno “indústria do wellness”: «Assiste-se actualmente, depois do esforço psicanalítico, a uma verdadeira invasão do culto do corpo. Pretende-se fazer falar o corpo, descobre-se a propósito de tudo e de nada “um discurso do corpo”, pretende-se que ele se liberte ou se exprima. Como se o objectivo fosse, neste momento, descobrir uma língua do corpo à qual se subordinaria qualquer terapia ou outra forma de linguagem: artística, literária, teatral ou simplesmente comunitária. Muito estranhamente, na mesma altura em que esta voga testemunha uma sensibilização crescente pelos problemas do corpo tendente a afirmar a sua importância nos mais diversos domínios, retomam-se velhas ideias, velhos esquemas (...): este tornou-se o significante despótico que resolverá tudo, desde o declínio da cultura ocidental até aos menores conflitos intra-individuais. (...) Que corpo é este, em volta do qual se agitam estas terapias? Uma análise superficial revelaria neste campo uma maneira de fazer violência aos corpos – tomando, às vezes, as formas mais nuas de cinismo mercantil.»
O corpo, que deveria ser respeitado enquanto “ente”, segundo o mais complexificado sistema de pensamento fenomenológico-existencialista, vê-se crescentemente desvirtuado; ora é comummente substituído pela quimera da televisão ou da Internet, ora é enganadoramente “vivido”, numa crescente busca da abstracção do mundo concreto que não quer ser verdadeiramente vivido ou experienciado. Resta o adiamento da vivência perceptivo-motora, um dia tornada real por esse esforço diário que alguns profissionais de saúde e “motricidade” arvoram contra o fenómeno da descorporização.

sexta-feira, julho 09, 2010

O mundo do fitness: a grande ilusão

Nota: Este artigo não apresenta grandes novidades para quem segue o blog há algum tempo, mas, visto que foi publicado no Jornal 'i' de 09/07/2010, aqui o apresento, até porque inclui certos melhoramentos conteudísticos.
___________________________________

É bem sabido, por entre os périplos de um certo “zelo epistemológico”, que nem sempre o que é evidente é real, ou que a verdade é sinónimo de uma certa pretensão (utilitarista) das maiorias. A “questão do fitness”, como lhe poderia chamar, é o exemplo rematado de um fenómeno daqueles em que poucos vêem que o rei vai nu. Pois, se é certo que, a curto prazo, as práticas de fitness são compatíveis com um certo conceito de saúde, a realidade a longo termo demonstra que nem sempre esta “nova medicina” se consubstancia com a verdadeira saúde global.
É certo que, num ponto de vista funcional, estudos com metodologias “transversais” têm demonstrado os benefícios da prática desportiva a curto prazo. Mas também é certo que o conceito de saúde é bastante mais global que aquilo que é preconizado pela maioria dos educadores físicos. Aliás, mesmo a Fisioterapia clássica parece estar toda ela vocacionada para esse curto prazo, adequada e cientificamente “evidenciado”... Mas, como a realidade científica pura e dura acaba por ter mais a ver com a Física dos postulados do que com esses referidos estudos “médicos”, importante será dizer que não deixa a ciência “exacta” de estar mais próxima da verdade de um corpo que, pelas suas leis posturais de controlo anti-gravítico e pelas hegemonias neuromusculares com estas relacionadas, progride no verdadeiro conceito de saúde holística pelo trabalho das actividades físicas de baixo impacto (a eficácia, por exemplo, do Pilates e do Tai-chi assim o comprovam) e, essencialmente, pelo alongamento global segundo os preceitos da teoria das Cadeias musculares.
Eis que a teoria de Françoise Mézières, uma fisioterapeuta francesa que em 1947 viria a conceber uma “révolution en gymnastique orthopédique”, possui implicações únicas na forma de compreender a patologia neuro-músculo-esquelética (sendo que a patologia “especificamente” postural existe, na prática, em todos nós que somos “saudáveis”...), assim como na forma como podemos conceber a prática física, seja no sentido médico, fisioterapêutico ou desportivo.
E, a acreditar nessa “revolução”, as actividades físicas desses ginásios que cultivam a “indústria do corpo” apresentam-se, deveras, como um verdadeiro atentado àquilo que é a real saúde “neuro-mio-fascial”. Em particular, esses ginásios que fazem uso de poderosas e maquiavélicas indústrias de marketing contribuem para reduzir o conceito de saúde músculo-esquelética à mera performance, quando seria mais correcto conceber essa mesma “saúde” enquanto “morfologia” ou “postura”, segundo os preceitos de um longo prazo “psico-neuro-morfo-dinâmico”, tal como concebido pelos fisioterapeutas de reeducação postural.
Não deixemos, todavia, de praticar desporto!... Mas tenhamos em conta que as actividades como as centradas no relaxamento tónico e flexibilidade miofascial, posturalmente “não viciadas”, não só são mais benéficas para a saúde, como são uma forma de imputar essa propensão quimérica de uma certa “indústria cultural” (Theodor Adorno).

terça-feira, julho 06, 2010

O corpo e o pós-modernismo: Michel Foucault

Os profissionais de saúde, nos raros momentos em que discutem os modelos de saúde e doença, e dos paradigmas de intervenção médica versus bio-psico-social (por que se regem), nem se apercebem de que estão, na realidade, a perpassar pelo seio mais íntimo de uma certa tradição filosófica denominada pós-modernismo; nomeadamente, falamos da tradição desse controverso filósofo que foi Michel Foucault (1926-1984).
Pois é certo que, ao longo de anos, o modelo de intervenção médica foi denunciando um conjunto de práticas, ora pré-científicas, ora científicas, que abjuravam o domínio do doente relativamente à sua própria máquina carnal e biomecânica... E foi Foucault quem contribuiu para o estudo dessa redução do “concreto” ao “histórico” e ao “social”...
Continuando, ainda actualmente, na mesma sociedade onde se discute o valor da autonomia, assaz reencontrada com um modelo de saúde veiculado pela presunção da liberdade mais basilar do ser humano e conformado às novas exigências de uma bioética emergente e de um suposto modelo holístico inclusivo de uma coerência profissional transdisciplinar, se verificam diariamente situações em que a decisão do doente é forçosamente “igualada” à decisão do médico ou outro profissional de saúde.
Inicialmente, em várias das suas obras, como “A história da loucura na idade clássica” (1961) ou “A história da sexualidade” (1976 e 1984), Foucault traça, enquanto verdadeiro historicista, um retrato das diferentes formas como o corpo, na sua dimensão sexual, e na sua dimensão patológica, era visto e concebido, assim como manuseado e tratado. A visão de Foucault, enquanto verdadeira visão historicista, concebe a história do corpo e da patologia enquanto conjunto de artefactos, modelados não por um quadro específico de valores relativamente estanques e invariantes, mas por um quadro de valores e práticas assaz cambiantes dos diferentes contextos temporais e socioculturais.
Mas, como já vimos, as diferentes “epistemis” não se resumem a um “modelo” histórico-social, sendo que, independentemente do tempo a que aludimos, as relações profissional de saúde – doente podem, de facto, ser perspectivadas numa ontologia diferente desse suposto “racionalista” raciocínio médico. Não é – e não o vemos todos os dias – real que a medicina que é diariamente praticada depende enormemente duma mera questão de relações (de poder) que se estabelecem entre o médico e o doente? Quantas vezes o diagnóstico médico não depende unicamente da perspectiva e necessidades de um profissional que trata o doente como um objecto de pertença, ignorando que o doente-utente-cidadão é um fim em si?...
Relativamente à “interpretação da patologia” e das já citadas “relações de poder”, Foucault começou por analisar sobretudo a forma como foi interpretado o fenómeno da doença mental e, bastante mais tarde, acabou a falar do “poder psiquiátrico”, e da forma como, em certo tempo, a institucionalização e a patologização serviam as pretensões de um certo poder.
Enquanto fisioterapeuta que sou, reconheço a relevância que o estudo de Foucault tem para a compreensão de qualquer profissão de saúde, tanto no domínio sociológico, como no domínio clínico. Quantos desses enfermeiros e fisioterapeutas licenciados – ou mesmo médicos catedráticos – saberão discutir a filosofia de Foucault?...