domingo, outubro 17, 2010

A doutrina económica enquanto ciência pós-moderna

Em tempos fiz, no espaço deste jornal, a defesa do neo-liberalismo enquanto modelo de salvação da crise portuguesa e, em geral, do Modelo Social Europeu. Estaria enformado pela ideia de um profissional de saúde que trata o enfermo segundo as manifestações clínicas presentes: em linguagem económica, servir-se-ia o keynesianismo a países fortemente neo-liberais (é o caso de Obama nos EUA) e servir-se-ia o neo-liberalismo a países fortemente keynesianos (como os países da Europa do sul). Daí “receitar” o neo-liberalismo a Portugal e à dormente função pública portuguesa. Também fiz a defesa de que esse mesmo modelo de Hayek é que constituiria a verdadeira ciência no sentido em que é entendido por Popper e muitos dos que preenchem os quadros académicos da London School of Economics. Mas, à semelhança daquilo que tenho feito nos diversos textos deste jornal – o esboçar do pretenso conflito entre uma ciência “exacta” propriamente dita e uma ciência “pós-moderna” por muitos entendida por pseudociência – pretendo dar agora a outra face da moeda.
Pois se é certo que a ciência económica propriamente dita parece mais de acordo com as análises doutrinárias “clássicas” do liberalismo iniciadas pelos fisiocratas e essencialmente por Adam Smith, o pai do capitalismo, e seus “associados” (como David Ricardo e Thomas Malthus), e com o contemporâneo neo-liberalismo, também é certo que essa mesma “ciência propriamente dita” só o é enquanto “método” ou “produto”, esbarrando contra a parede da Ética no momento de falarmos dos “processos” ou do “caminho”. A verdade é que não podemos simplesmente ignorar a realidade histórica e não podemos ignorar que a história das doutrinas económicas inclui reacções proteccionistas e intervencionistas do Estado, incluindo a teoria socialista, que é, em última análise, a mais determinante teoria económica que alguma vez se constituiu.
Sabemos que, tal como defendido por muitos liberais, o socialismo não é científico, não obstante a beleza da sua conteudística humanista. Mas também sabemos que a Verdade verdadeira e real pode, eventualmente, estar naquilo que uma medição científica não quantifica: a estética do “caminho” e a beatitude dos processos humanos envolvidos na teoria do socialismo.
Enquanto fisioterapeuta que sou, defensor da teoria mézièrista das Cadeias musculares e da Reeducação Postural, que acarreta implicações que contrariam a ciência fisioterapêutica partilhada por mais de 99% dos profissionais da área, sempre pensei que é possível que estas “maiorias científicas” da imprensa que advogam a morte do Socialismo e da utopia colectivista estivessem errados, porque potencialmente enfermos da doença da “ciência clássica”. Estando bem patente em mim a contradição de quem já muito defendeu Popper e o falsificacionismo de demarcação entre ciência e pós-ciência, e não deixando nunca de admirar e de admitir a pragmática positiva e utilitária da obra do autor de “A pobreza do historicismo”, não posso deixar de pensar que a Verdade real pode eventualmente estar na ciência dita historicista, pós-moderna e relativista, que é, na Economia, representada, no seu máximo expoente, pela visão marxista.
Sabendo que o socialismo não é feito só de Marx e Engels (sendo que há outros nomes importantes na história do socialismo como Saint-Simon, Robert Owen, Charles Fourier, Louis Blanc ou Proudhon), sabendo também que a obra de Marx tem sido mal interpretada, e admitindo que existe uma via mais contemporânea de socialismo que se denomina de “socialismo de mercado”, “social-democracia” ou “terceira via” (Anthony Giddens), não podemos deixar de ter em conta o humanismo de uma teoria que esboça a importância do ser humano enquanto verdadeiro “alvo” do capital.
É certo que esse humanismo esboça uma ética exigente que, para ser construída, fez (e faz) uso de muitos sistemas totalitários. É também certo que o socialismo parece ser considerado, pelas tais “maiorias científicas”, como morto, pelo menos desde a queda da “cortina de ferro”. Mas também é certo que, mesmo admitindo a falência do Modelo Social Europeu e a necessidade da criação de um novo modelo de gestão dos Estados Sociais (que nunca deverão perder este cunho), o advento do socialismo de mercado continua a parecer o mais aceitável, se é que queremos respeitar as verdadeiras características falibilistas do ser humano.
É que, ao preconizar o “cada um por si” e a premiação do mérito e das capacidades individuais de cada um, o neo-liberalismo esquece um facto importante: as desigualdades de mérito e capacidades reproduzem as desigualdades sociais; e estas são função de um certo determinismo genealógico e histórico-social. Mesmo a Educação universal e gratuita não pode produzir a igualdade social, pois as crianças levam para as escolas as culturas familiares e intelectuais de que são basilarmente vítimas. A educação e o insucesso escolar é vítima das desigualdades sociais, e o contrário é menos verdade.
Ora, mesmo assumindo que o socialismo radical produziu resultados medíocres ou mesmo antitéticos, não posso deixar de assumir que o “socialismo científico”, mesmo que de “científico” tenha pouco (e de pós-moderno tenha eventualmente muito), possui uma mensagem determinante para a humanidade: é que os meios continuam a ser mais importantes que os fins.

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