Uma História especificamente racional do corpo e da medicina é tarefa impossível! Ou, no mínimo, improvável! Uma multiplicidade de visões e de mundividências é mais afecta à realidade. Uma realidade que é feita de um tecido de inumeráveis epistemis, num confluir sempre inconstante de fronteiras só aparentemente racionalizáveis. A História da medicina, aliás as histórias das medicinas só podem perfazer-se pelo encontro inexaurível com o sempre volúvel estatuto de uma (in)adequada cientificidade.
Na realidade, a História da medicina é um reflexo da História da própria ciência, atendendo a que as práticas tanto etiológicas quanto prognósticas e terapêuticas da profissão acarretam a mesma matriz básica que o tecido que constitui a própria trama científica: um objecto de estudo e um método reconhecido como científico.
À semelhança do método científico propriamente dito enquanto componente da história da ciência, o método que podemos designar de “médico-científico” sofre inúmeras mutações com o tempo, sendo que aquilo que é considerado como científico num tempo ou numa comunidade determinada, deixa de ser visto como tal num tempo subsequente ou numa comunidade com padrões de desenvolvimento metodológico e/ou tecnológico mais modernos.
Não admira que aquilo que já foi visto como prática científica e “séria” no passado seja comummente visto na actualidade como prática mística, ou mesmo mágica, própria do que muitas vezes vemos como pseudociência, “banha da cobra” ou charlatanice... Esta mesma charlatanice ganhava frequentemente ecos de manipulação psicológica (à semelhança do que acontece com muitas práticas místico-dogmáticas actuais), fazendo com que práticas como as sangrias e as trepanações fossem aceites acriticamente como “normais”, mesmo quando não pareciam resultar. Veja-se o exemplo literário singular e paradigmático inesquecível de “Le malade imaginaire” de Molière...
Como sabemos, tanto a história da ciência como a história da medicina só viriam a possuir o aspecto “epistémico-metodológico” dos tempos actuais a partir da vivência do positivismo (e consequente mecanicismo concretista e materialista) do século XIX (sabidamente, no respeitante ao exemplar paradigma cosmológico, uma História que inclui as obras de homens como Galileu ou Newton não foi suficiente para superar prematuramente uma certa escolástica aristotélico-cristã...). Mesmo no mundo contemporâneo, muitas práticas terapêuticas que podemos designar de “pré-científicas”, incluindo algumas socialmente mais aceites ou reconhecíveis como a osteopatia e a acupunctura (para não citar outras práticas corporais que José Gil refere no seu “Metamorfoses do corpo” como sendo uma forma de violentar o corpo), fazem eco das práticas físicas “dogmáticas” (algumas quase demiúrgicas...) do tempo pretérito, tendo pessoalmente defendido há uns anos atrás que alguns terapeutas “não convencionais” chegam a sofrer do que apelido de “Complexo de Jesus Cristo”... “complexo” que vai sendo justificado e legitimado com base numa suposta globalidade ‘bio-psico-social’ (ancorada num pretenso raciocínio clínico que perspectiva o ‘doente’ em desmérito da ‘doença’, relevando de elementos que descomprometem a perspectiva da “classificação da(s) doença(s)” e da categorização das terapêuticas, em favor de uma actuação terapêutica de índole fenomenológica e funcional, e portanto heurística, espontânea e criativa) que a ciência médica ortodoxa supostamente não possui...
Mas não nos iludamos! Mesmo na medicina canónica ou na fisioterapia convencional, existe um certo nível de acientificismo, agindo muitas vezes a tradição e até a autoridade enquanto fontes legitimadas de conhecimento... e de poder.
O estatuto epistemológico da medicina, da fisioterapia e de todas as práticas da “Salud” continuará, portanto, sempre a necessitar de uma necessária translocação de pragmáticas e metodologias pré-científicas em pragmáticas e metodologias adequadamente científicas... entendendo-se, claro, como ‘científicas’ aquelas que são racionalmente irmanáveis. Por outro lado, a sempre desejada visão holística do doente, necessária à afirmação de certas práticas de saúde em relação à mais “limitada” medicina ortodoxa, nem sempre se compatibiliza com a “medicina baseada na evidência”, por premiar as já referidas práticas que apelam ao “relativismo dogmático”. Estas são, numa certa perspectiva, a consequência lógica das práticas de carácter ideográfico, nas quais a preocupação pela ‘qualidade’ “desconstrói” a preocupação com a quantidade e a mensurabilidade.
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