sexta-feira, setembro 02, 2011

Capitalismo e medicina: o corpo fragmentado (Ensaio)

Apresentação/Resumo/Introdução

A teoria filosófica de Michel Foucault referente às «epistemis», modelos epistemológicos de concepção/gestão do objecto do conhecimento de acordo com diferentes tempos históricos, permite localizar o início da prática da medicina «clínica», ancorada num pensamento baseado em «classificações» que subdivide racionalmente o corpo em vários componentes estruturais/funcionais, no mesmo tempo que marca a plena afirmação tanto do capitalismo como do modelo de ciência «positivista». As relações entre eles não são inocentes e os mais que aparentes paralelismos mantêm-se correntemente, ao mesmo tempo que uma certa atitude «pós-moderna», que os prolonga e simultaneamente lhes resiste, possibilita afirmar a importância de uma visão global do corpo, que é, na perspectiva de várias práticas de saúde, um «continuum» bio-psico-social por excelência.
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No território dessa tão prolixa matéria que trata da «filosofia da corporeidade», é possível conceber múltiplos discursos sobre a forma como o corpo tem sido histórica e racionalmente substanciado, correntes de pensamento que se tornam subitamente mais ricas no alvorecer da «modernidade», época que, num contexto de ainda mal nascido liberalismo subjugador, conforma o surgimento de um novo modelo «epistemológico» do «espírito do tempo» (conhecido como «episteme», segundo a nónima de Michel Foucault1) que irá modificar radicalmente a forma como o «corpo» passará a ser conceptualizado. Encararemos, no contexto desta mudança, alguns dos aspectos que definem a forma como a medicina (e outras profissões e/ou práticas de saúde) concebe o «físico», assim como o seu princípio definidor/caracterizador, na realidade funestamente rendido à máquina capitalista.
Para a nossa discussão é assaz pertinente ter em conta a concepção dos tempos segundo a perspectiva dos já referidos «modelos epistemológicos» de Foucault - utilizando como referência base a obra «As palavras e as coisas»1 (e outra, especialmente propositada porque mais específica para o nosso tema, «O nascimento da clínica»2) - definindo cada um deles a forma de uma época determinada conceber e manipular racionalmente o objecto do conhecimento (concepção que, sendo geral e disciplinarmente algo «indiferenciada», é, todavia, extrínseca à prática «profissional» do exercício filosófico propriamente dito, sendo que este se apresentava historicamente «avançado relativamente à sua época», e contemplava já, especificamente neste tempo, e particularmente desde a dialéctica hegeliana3, uma certa propensão de contrastação da modernidade que poderíamos caracterizar de «precursora do paradigma “pós-moderno”»).
Assim sendo, releva referir que a principal mudança ocorrida no início dos tempos modernos (referente ao final do séc. XVIII e início do séc. XIX, segundo a categorização foucaultiana; época que, sabidamente e em termos genéricos, marca a eclosão de uma nova etapa político-económica) na forma como pode ser concebido o próprio «saber» consta, segundo Foucault, na transformação de uma perspectivação do mundo feita de «continuidades» numa outra que, paralelamente à pretensão de uma nova cientificidade positivista, tudo dilui, secciona e categoriza, levando a uma inevitável «desnaturalização» do objecto do conhecer. O corpo e a medicina que dele se ocupa não são excepção ao confluir desta nova «episteme» e, assim, uma medicina «global» que vê o corpo como uma totalidade funcional/sistémica - e também psico-física - (que não deixa, contudo, de ter subsistido historicamente enquanto prática artesanal, mística e «proto-científica», e, consequentemente, inclusiva de traços de dogmatismo mitificador) transforma-se numa medicina «científica», que, com o objectivo (em parte pedagógico) de dilucidar e «reduzir» intelectualmente o seu objecto de estudo, divide e fragmenta «nosologicamente» (para arrogar a utilização do termo mais recente de Heidegger) o corpo em sistemas progressivamente mais especializados e relacionalmente desligados.
O paralelismo existente entre esta «fragmentação» racional e as necessidades de uma nova ciência e de uma emergente economia rigidamente quantitativas não é difícil de estabelecer, ainda mais porque subsiste até ao tempo corrente esta tão grande «conspiração» - posta em relevo por Herbert Marcuse4 e, recentemente, por Habermas5 - que grassa entre a «medicina científica» e o capitalismo.
Esta pode ser exemplificada de inúmeras maneiras, sendo que um dos seus caracteres mais arquetípicos reside na simples forma como é gerido o Serviço Nacional de Saúde, incluindo a relação entre uma medicina que cura e reabilita os cidadãos e as necessidades de um Sistema que está francamente dependente da produtividade de trabalhadores saudáveis.
Por outro lado, o próprio modelo «biomédico» de saúde, que concebe o corpo como uma máquina que deve ser mecanicamente reparada nas suas funções relativamente independentes entre si, coaduna-se facilmente com as necessidades de uma medicina de âmbito essencialmente curativo (portanto, sem grandes preocupações com a prevenção e reabilitação bio-psico-social), que propende o lucro (principalmente no seio dos subsistemas privados) e que se pretende rápida e funcional no atendimento do doente, sem grandes preocupações de âmbito «espiritual».
Esta mesma medicina «estrutural» e «científica» pende uma visão da patologia como conjunto de rótulos/classificações aplicados enquanto generalizações de «casos» semelhantes (que é, em última análise, o signo de uma lógica de cientificidade «nomotética», apanágio das ciências de carácter estatístico-probabilístico), cujos corpos, desprovidos de subjectividade e unicidade, são também eles desideratos de classificações anátomo-funcionais. A este corpo doente são aplicadas prescrições curativas, desempenhando estas um trato do corpo rigidamente quantitativo (o que é tão parco de sentido quanto mais «holística» é a intervenção implicada).
A adaptação da entidade corpórea ao modelo capitalista, feita sempre em subjacência à episteme da «modernidade», esvazia, de facto, o corpo da sua componente fenomenológica e existencial, levando a que um «corpus» que é pura continuidade na sua essência, assim como na sua relação com o meio e a cultura, seja desvirtuado e convertido num «corpo-máquina» (La Mettrie6), que fica artificialmente transformado em componentes que só uma mente poderosamente transformada por uma cultura que se enforma de uma escolaridade adaptada às necessidades do Sistema permite conceber nessa sua «natureza» tão desligada da verdadeira naturalidade.
Esta transformação não pode deixar de produzir certos «destroços humanos», seres que recalcitram nos sintomas e no sofrimento que é todo ele psicogénico, «almas» que chegarão muitas vezes a procurar o alívio das suas «condições» nas medicinas paralelas, que, conhecidas como «alternativas», se auto-apelidam de «não convencionais», práticas de saúde que, mesmo possuindo teoricamente uma certa «visão holística» do corpo e do homem, não deixam mesmo assim de, comummente, se perverterem numa lógica de «marketing» - apoiada fortemente numa construção mística e dogmática que faz uso precisamente do já referido «holismo» - que reduz estas práticas à mesma condição de «conluiadas com o capitalismo».
Por outro lado, é comum outras profissões de saúde inclusas no Sistema, tal como a Fisioterapia ou a Enfermagem, tenderem, apesar de tudo, a conceber uma relação mais «holística» com o corpo, sendo que, quando autonomizadas relativamente à medicina propriamente dita (acontecimento que tem, na honesta realidade, mais de ideal do que de real), essas profissões poderão exercer teoricamente uma intervenção que visa o corpo na sua totalidade; esta implica efectivamente uma perspectiva qualitativa do corpo em desprimor de uma visão mais quantitativa e categorizada, a qual, como já vimos, tem sido usada privilegiadamente pela medicina no sentido de reforçar as características do Sistema vigente, ao qual se encontra adaptada, as últimas incluindo a assunção de um estatuto que se alimenta de hierarquias e de relações de poder.
As referidas relações de poder (aliás, temática também - e não é uma mera coincidência - ricamente foucaultiana) fundamentam-se, tradicionalmente, num jogo de subjugação dos profissionais de saúde não médicos («subjugação» que deve ser entendida aqui num contexto essencialmente «psicossociológico»), assumindo, muitas vezes, a medicina um papel dogmático e fortemente mitificador, com base na Autoridade. Para além disso, e em última análise, a relação de poder dominante é sobretudo aquela que se estabelece com o próprio doente, e que, não obstante os recentes esforços «relacionais» dos novos médicos que praticam uma medicina crescentemente «humana» (porque crescentemente psicologisticamente esclarecida), se converte numa relação de posse do seu corpo, o que transfigura o paciente numa entidade passiva e pouco auto-consciente, senão alienada, porque esvaziada da sua «autonomia ética» e correspondente «livre-arbítrio», o que é uma ameaça à própria «condição humana» de um ser que não pode deixar de ser visto como entidade indivisa e infinitamente heurística.

A «medicina» no formato Fitness/Wellness

A redução do substrato corporal a uma máquina cujo funcionamento resulta de um mero somatório de peças e funções é afecto não só à medicina científica propriamente dita quanto a outras manifestações de uma modernidade em que o «bem-estar» passa a afirmar-se como necessidade «imprescindível»: o «Fitness» e o «Wellness» (por mim já tratados na revista «Vértice» Janeiro-Fevereiro 20097 e na obra «O anti-fitness (...)»8, no contexto das suas relações com as «indústrias culturais»).
Também fortemente apoiados numa «evidência científica», a qual é legitimada pelas várias centenas de estudos de âmbito quase estritamente funcional, investigações de cunho metodológico «social» e com carácter dominantemente estatístico, as práticas em análise não deixam de recalcitrar no mesmo erro de fragmentação de um corpo cuja visão «clínica» deveria ser sempre «bio-psico-social» e menos «biomecânica».
Não obstante tal erro, as práticas com vista ao «bem-estar» têm sido objecto de procura e utilização exponencial, o que só reflecte a necessidade de os indivíduos procurarem sanar o seu sofrimento com uma aparente «regressão psico-corporal». O carácter ilusório destas práticas foi compreendido desde muito cedo particularmente pelos filósofos «pós-marxistas» da escola de Frankfurt, dentro dos quais mais uma vez Marcuse4 assume um papel de destaque. A ilusão tem por base uma quimera nem sempre compreendida. Quimera que se incorpora em práticas anti-sintomáticas que vão contribuindo não só para ajudar a tolerar as condições de vida de um mundo crescentemente agressivo que se rende à lógica do materialismo obsessivo, mas também para facilitar o processo de anestesia, redução da consciência de que nesta «grande ilusão da vida moderna» as necessidades comerciais, incluindo as do próprio corpo, são internalizadas de tal maneira no esquema cognitivo dos cidadãos que passam a ser apreendidas como «próprias», «normais» e «indispensáveis».
É certo que as práticas do «bem-estar» físico - principalmente as que valorizam o relaxamento, a consciência e a expressão corporais - poderão permitir um hipotético encontro «terapêutico» com a emocionalidade pulsional de um «inconsciente» que é, diária e primitivamente, sujeito à contenção «supergoica» implicada pelas convenções da vida moderna, principalmente nas sociedades que Nietzsche apelidaria de «apolíneas» (passe-se a necessária crença «psicanalítica» implicada por esta asserção), mas também é certo que o referido encontro pode ser fonte de alienação, pois a mesma «emocionalidade pulsional», a meu ver essencialmente instintiva, tende a afastar o homem do jugo de uma racionalidade que não pode deixar de ser vista como pré-requisito da transformação (benéfica) de uma sociedade segundo o modelo marxista. Talvez por essas necessidades estarem poderosamente impregnadas na nossa esquemática emocional e serem afectas às carências físicas mais basilares tal complexifique sobremaneira a tomada de consciência da realidade (o que é já por si tarefa da racionalidade)... mas essa mesma tomada de consciência sempre preludiou a entrada num Éden social que implica, de facto, romper com esse outro Éden, que é o físico/corpóreo, feito de «tentações», senão ostentações, que remetem para a fuga à racionalidade «Socialista».
Relembremos que, não obstante o facto de se considerar como «científico» e «racional», o próprio capitalismo liberal não pode deixar de ser visto nosológica e honestamente como um prolongamento de uma emocionalidade de cunho instintivo, pois estão implícitas nele as mesmas relações, de cunho evolutivo (no sentido obviamente darwinista), com vista ao domínio e à sobrevivência que se encontram entre os animais ditos «não racionais».

Pragmática

A concepção de um corpo «holístico» e «fenoménico» implica, portanto, a necessária extenuação da ditadura da ciência «utilitária» (afecta ao capitalismo e à tecnologia instrumentalizadora que o primeiro requer) e da lógica das «etiquetas» e «classificações», para abraçar uma visão de um corpo que, aparte a grande complexidade da aparente superficial antítese «emocionalidade versus racionalidade» (que tanto a semiótica como as neurociências viriam a compreender numa intrincada forma de monismo unificador), é «emocional» - no sentido «superior» de «expressivo», «sentimental» e «auto-consciente» - pela sua espontaneidade fenomenológica e vivencialidade no «continuum» de dimensões indefinidas, porque desprovidas de fronteiras ou «absolutos», e que simultaneamente «não pode ser emocional» por não querermos ceder à visão determinística e prescritivista de um corpo-máquina que se resume à mera fisiologia.
É certo que a adopção de uma visão «holística» do corpo não é aplicável em certas especialidades médicas, muitas das quais, por natureza mais «analíticas», não prescindem da especificidade e da «etiquetação» para que exista organização e gestão racional da informação inclusa. Mas também é certo que outras áreas da Medicina/Saúde, em particular a Psicopatologia/Saúde mental e a Fisiatria/Fisioterapia, perdem muito com a manutenção de «diagnósticos» e raciocínios parcelares. Não faz sentido, por exemplo, prescrever métodos de fisioterapia, porque só aparentemente é que há «métodos» diferentes (na realidade, existe uma grande semelhança e continuidade semiológica entre os diferentes métodos e técnicas...), e só aparentemente é que as condições clínicas são separáveis e diferenciáveis (por exemplo, um terapeuta de reeducação postural dificilmente consegue conceber uma condição de uma área do corpo sem que todas as outras áreas e o equilíbrio sistémico que as «equilibra» dinamicamente estejam igualmente presentes).8 O corpo é, na verdade, um só, e jamais deveria ser tratado em termos meramente localizacionais e/ou sintomáticos. Esse trato do corpo apenas beneficia o Sistema, assim como os grupos económico-financeiros que o incluem (e que dele se nutrem).
Também é certo que aparentemente não existe grande sustentabilidade «económica» nesta perspectiva «utopista» de um corpo tratado globalmente, até porque o tempo gasto com os doentes no tratamento das suas áreas afectadas é reduzido e o «lucro» obtido com as técnicas prescritas é também ele diminuto. Porém, é bastante provável que, se a «filosofia global» predominasse e o doente não fosse seccionado, a viabilidade económica se conseguisse à custa da prevenção de «novos» problemas/condições, conseguida como consequência lógica de uma abordagem «global» que, com a vantagem de se dirigir às causas/raízes das condições, não escamoteia ou substitui sintomas, evita a migração de condições e manifestações clínicas, assim como obsta à procrastinação da resolução de problemáticas associadas, incluindo os estados «mentais» e a «semiologia social».
Assim sendo, uma abordagem mais cara no curto prazo seria, muito provavelmente, mais barata no cômputo final. Infelizmente, todos sabemos que este «longo prazo» não se traduz em resultados numéricos céleres e, assim sendo, dificilmente se conquistariam, no plano da «vendabilidade», tanto os eleitores quanto os barões do capital. Mas como este texto, à semelhança da lógica marxista, se importa mais com a Verdade do que com a ilusão e a efeméride, aqui se volta a sublinhar a importância da lógica de uma sociedade em que não vigore a ditadura numérica ou a lei do economato, que é o mesmo que dizer que o «conteúdo» é superior à «forma», que a «qualidade» é preferível à «quantidade», que o «caminho» é mais importante que a «meta», que os «meios» importam mais que os «fins», que o «relativo» é mais rico que o «absoluto» e que mais vale «Ser» do que «Ter».

Referências

1. Michel Foucault, As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas (tradução portuguesa por Edições 70), edição original de 1966.

2. Michel Foucault, O nascimento da clínica (tradução brasileira por Forense Universitária), edição original de 1963.

3. Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade (tradução portuguesa por Texto), edição original de 1985.

4. Herbert Marcuse, Eros e civilização (tradução brasileira por Livraria Cultura), edição original de 1955.

5. Jürgen Habermas, Técnica e ciência como ideologia (tradução portuguesa por Edições 70), textos originais de anos 60.

6. La Mettrie, O homem máquina (tradução portuguesa por Editorial Estampa), edição original de 1748.

7. Luís Coelho, A cultura do corpo e a sociedade de consumo: emergência global das «indústrias culturais», Vértice Janeiro-Fevereiro 2009.

8. Luís Coelho, O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao conceito de reeducação postural, Editora Contra-Margem, 2008.

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