Mesmo
concebendo que o Universal e a Estrutura denunciam o que do Homem há, em
primeira e imatura análise, de mais ontologicamente verosímil, não podemos
simplesmente ignorar essa fenomenologia das contingências, esse historicismo a
que nos obriga qualquer pretensão de redução fenoménica escalar, e que, de uma
forma quase intuitiva, parece revelar a nossa evolução enquanto processo dialético,
de natureza essencialmente cíclica e circular, de um todo triárquico que se divide
nas três idades que já identifiquei em «Corpo e pós-modernidade» (Esfera do
Caos Editores) enquanto idade do sagrado,
idade científico-positivista e idade pós-moderna.
Com
a pós-modernidade a resultar enquanto
síntese de um processo dialético que inclui necessariamente as duas idades
anteriores, ainda assim não podemos deixar de notar a semelhança que a idade pós-moderna tem com a idade do sagrado, com estas duas fases da
evolução a reportarem uma fenomenologia da continuidade e uma perspetiva
panteísta de Deus, e a deixarem a idade positiva
a morigerar nessa grande insignificância paternalista de uma realidade que
persiste em ser fragmentada por uma necessidade própria de uma modernidade
obsessivamente categorizadora e inadvertidamente falaciosa; temos, então, que a
idade tese e a idade síntese parecem residir mais na
Estrutura, enquanto que a idade científico-positiva,
na qual ainda atualmente globalmente nos encontramos, parece predispor ao
historicismo – necessariamente materialista, seja num sentido
epistemologicamente positivista e mecanicista (que importa mais ao
cientificismo base do capitalismo e também do neoliberalismo), seja num sentido
epistemologicamente dialético (que importa mais ao hegelianismo e, sobretudo,
ao método marxiano) –, com toda a semelhança que esta conceção tem com o
pensamento de Foucault, para o qual a origem da História se descobria no
advento do liberalismo, prelúdio da modernidade, página de mudança que tinha
até ali sido constituída por uma mera arqueologia de saber.
Sabemos
já que o conluio entre a cientificidade clássica e a economia capitalista, cuja
obsessão com a quantificação perpassa em pleno século XXI, desnaturaliza a
realidade, porque a perversão da transdimensionalidade dos objetos é atida como
visão epistémica preferencial (porque em subjacência ao princípio
pedagógico/organizativo da conservação da energia), e subverte a intenção de um
mundo Ético – em que a gestão dos Valores passaria para primeiro plano –
confinando-nos aparentemente a um inamovível híper-modernismo de pendor
tecnocrata e flagrantemente imoral… em resumo, um mundo sem esperança!...
Mas
sabemos também que na mente de certos homens cuja estoicidade permite vencer a
tentação da mundanidade prazenteira da hipermodernidade reside já esse mundo de
uma pós-modernidade (que diferencio
de hipermodernidade, que é para mim o
que para muitos outros significa erradamente a pós-modernidade), na qual a verdadeira e peculiar Liberdade poderá
ter origem. Não é esta obviamente a liberdade epistémica que o liberalismo
económico propugna, com base em teorias libertaristas pouco inocentes que
pretendem que somos flagrantemente responsáveis pelas nossas condições sociais
e económicas, é antes uma Liberdade de raiz fenoménica primordialmente “simbólica”,
que mesmo não deixando de poder ser ontologicamente verdadeira (com todas as
repercussões ideomáticas que tal tem para uma epistemologia das ciências de cunho
“sócio-hermenêutico”), é genuína sobretudo no sentido de uma intencionalidade
cuja propensão ético-moral não poderá jamais ser negligenciada.
Mesmo
podendo estar a confundir três conceitos não obrigatoriamente auto-implicativos
– holismo, consciência e livre-arbítrio
– ainda assim todos eles parecem ter responsabilidade decisiva nessa tão
desejada “utopia” (será?...) de uma harmonia pós-moderna. Esta “harmonização”
terá sido parcialmente compreendida pelos idealistas dialéticos – cujos
principais pioneiros são Kant, na realidade genuína, e Hegel, na realidade mais
completa e cabalmente aceite, – mas só verdadeiramente integrada mediante a
ajuda do “pós-marxismo”, existencialismo, pós-estruturalismo e também das
ciências cognitivas, cuja contribuição determinante para a construção da visão
de um Eu consciente e intencional não poderia jamais ser elidida. Assim sendo,
e não podendo já ninguém negar o papel de um Eu construtor ativo da realidade
“real” (mesmo assumindo que o “interno” também é real…), sob os vórtices de um
positivismo (“realisticamente ingénuo”) que se afirma fortemente pela via
económica, mas jaz já ideomaticamente moribundo, esta tão adversada
“pós-modernidade”, tão erradamente confundida com “relativismo moral”, não pode
já deixar de se imiscuir com a necessidade de uma nova/velha Espiritualidade.
É
certo que esta mesma Espiritualidade possui mais pendor fenoménico mentalista
do que propriamente corpóreo-instintivo, até porque, decisivamente, a origem do
mal não pode deixar de ser encontrada nos instintos e também na necessária
relação dialética que estes estabelecem com a consciência ética de um mal que é
visto enquanto tal (só esta consciência nos torna, supostamente, moralmente
responsabilizáveis e legalmente imputáveis… coisa sempre eternamente
discutível, se aceitarmos a ontologia de um “determinismo absoluto”,
implicativamente desresponsabilizador) – o que nos tenta ao renascimento de um
Platão que coloca no corpo a culpa de um agrilhoamento, aniquilamento da visão
das essências, só na morte material potencialmente resolúvel, de resto condição
vivificável pelo filósofo que exercita a renúncia aos prazeres carnais ou – para
citar Kierkegaard – “estados eróticos imediatos” –, mas, ainda assim, não deixa
de se poder conceber enquanto desiderato de um processo (também ele dialético)
de equilibração monadística entre o corpo e a mente, a corporeidade pulsional e
a consciência ética/racionalidade “gestáltica” (ou mais propriamente entre o
corpo sentimental/proxémico e a consciência que, de qualquer modo, precisa dele
para existir… monismo factual que as neurociências vieram, de algum modo, confirmar),
o Eros e o Tânatos, o id e o superego, de resto uma harmonização que,
como já se percebeu, a psicanálise/psicodinâmica viria a entender de modo
peculiar e “respeitosamente” profano.
Daí
que concebo que o crescimento da civilização no sentido de uma verdadeira
pós-modernidade acarreta um trabalho de “divã”, potencialmente obtenível pelo
exercício de uma religiosidade, a qual, mais do que manter o ser humano
anquilosado num processo de neurótico “eterno retorno” às origens cosmogónicas
(que se revêm nos rituais de reactualização das “origens”, revisitação
regressiva que se pretende exorcizadora da angústia de separação perante a
perda do “paraíso primordial”), deverá potenciar o desempenho de uma
verdadeiramente evolutiva re-harmonização do Eu – individual e/ou coletivo –
com o objetivo de, recuperando temporalmente o Absoluto, reencontrar o Homem
com o paraíso original, no qual a verdadeira Liberdade e eticidade poderão ter
lugar. Leia-se neste “reencontro do paraíso” não a reassunção do papel de Adão
que a religião judaico-cristã proponente de um Deus relativamente omnipotente e
babelicamente castigador propende (e que certas correntes gnósticas perceberam
como erróneo nesse refluir da instituição de uma Igreja conluiada com o Poder e
até a carnalidade) – até porque isto não significaria a Libertação –, mas antes
a assunção da fusão com um Deus que tudo é e em tudo existe (semelhante à
perspetiva funcionalista de Spinoza), que parece ser apanágio de religiões como
o Budismo (apesar de esta religião ser de um panteísmo não teocêntrico), o que,
em última análise, pressupõe que o Eu passa a ser o seu próprio Deus, e a Humanidade
passa a ser a consciência criadora, instituidora da sua própria evolução, algo congénere
com “o Superior a comandar o inferior”, citação de um Antero de Quental de
«Tendências gerais da filosofia da segunda metade do século XIX» quase
mediúnico, daquela mediunicidade rara que viria a ter o seu mais alto expoente
“pós-moderno” em Fernando Pessoa (é certo que esta “iluminação” também existe
em inúmeros homens do século XXI, mas também é certo que a nova aceitação da
pós-modernidade, que a Física quântica viria legitimar em termos de tecido de
uma “mor respeitável” cientificidade “neoclássica”, torna a nossa própria
“mediunicidade” menos meritória).
Temos,
assim, que, mais do que o encontro com o Sagrado, a assunção da pós-modernidade
passa pela pura individuação ética do Eu individual e coletivo, que precisa
mais do mito e do simbólico do que propriamente da instituição religiosa, sendo
que passa para a “ordem do dia” tanto o relativismo epistemológico (morre o
relativismo moral) quanto o absolutismo axiológico (morre o absolutismo
epistemológico), com estes, numa visão mais rebuscada, a significarem o desafio
da própria Física determinística, tanto em termos epistémicos quanto nos termos
reais que a “levitação” parece representar; levitação, não só enquanto
aproximação espiritual ao etéreo dos Deuses, mas enquanto acontecimento real
que alguns propõem ser conseguido por certos budistas que, de algum modo,
alcançaram a libertação ou iluminação absoluta (a qual, no mínimo, é preludiada
pela perda dessa tão ridícula dependência – tradicionalmente ocidental – dos
prazeres terrenos e dos bens telúricos).
Eis
que a História passa a ser excrescência do Universal, tal como os ciclos de
expansão e retração do Universo parecem ser de mote ad infinitum, com este Universo em que vivemos a ser talvez uma
partícula integrativa de um Universo maior, e com esse Universo maior a ser
partícula de outro Universo ainda maior, tudo isto ad infinitum, e com a base “micro-escalar” num caos quântico de
partículas eternamente pequenas, divisíveis/decomponíveis ad infinitum em partículas perpetuamente mais pequenas. O homem está,
tanto escalarmente quanto em termos de consciência livre e criadora de sentido,
no centro do mundo e do Universo, o que, de algum modo, pressupõe – no momento
futuro da individuação/libertação total e, portanto, no “fim da História” – a
“morte de Deus”, a fusão da Vida com a Morte e também, eventualmente, a morte
desse sentimento de solidão – o qual terá sempre alimentado a reactualização
nostálgico-neurótica das origens mediante a prática ainda fulgente de rituais
religiosos (só com o advento do liberalismo entretanto substituídos pela
prática dos rituais próprios da modernidade capitalista, no formato da assunção
de novas necessidades prazenteiras de consumo) – que deixa de existir, para
passar a abraçar um novo “antropo-Centro”, este sim justo porque digno de uma
consciência só feita de Valores e de transcendência.
Publicado, numa versão ligeiramente simplificada, na revista 'Biosofia', nº 41
Biosofia no Facebook: https://www.facebook.com/#!/biosofia.cluc?fref=ts
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Deus/homem,
Holismo/Reducionismo e Determinismo/Livre-arbítrio: improviso dialético
Se bem que alguns
dos termos presentes no título do presente texto não obstem comumente à natural
compreensão do filósofo, é comum tecer considerações – de cunhos diversos –
que, inevitavelmente, demonstram que nem sempre certos conceitos são ou foram
adequadamente compreendidos e distinguidos, tarefa, na verdade, hercúlea, se
nos aventurarmos pelo território da dialética existente entre o Divino e o
homem singular.
Sabemos, de um modo
até bastante científico (leia-se de um tipo de cientificidade materialista,
eventualmente positivista), que o mundo é essencialmente determinado por um
conjunto de Leis prévias, com estas a perpassarem por um forte mecanismo de
condicionamento do comportamento do homem, pelo menos na relação deste com o
meio, e até no conjunto das suas relações psicossociais, isto se aceitarmos que
estas são de carácter essencialmente demiúrgico, não obstante a franca
complexidade de um conjunto quase inesgotável (mas não infinito) de intersubjetividades
(estando já aqui presente o exemplo de um holismo
que não acarreta libertarismo, se
bem que a complexidade das variáveis relacionais em jogo possa induzir
enganosamente a ideia de que existe libertarismo onde somente encontramos um
tipo de indeterminismo virtual, que
resulta da mera dificuldade ou até impossibilidade – temporária – de
determinação, mas não da impossibilidade absoluta – pelo menos, ninguém, com
toda a certeza, o poderá afirmar – da mesma determinação). Por qualquer motivo
estranho, a identificação destas mesmas Leis conduziu muitas vezes ao ateísmo,
não se percebendo muito bem por que forma é que a identificação das Leis do
Universo e/ou do Homem poderá ser confundida com a existência ou inexistência
de Deus.
Sabemos, igualmente,
que as recentes descobertas da Física quântica são – ou tendem a ser – um
desiderato interpretativo favorável à ideia de que existe o Livre-arbítrio, não obstante a
possibilidade de o “Princípio da incerteza” ter sido mal compreendido, por mais
uma vez se ter confundido Indeterminismo
virtual com Indeterminismo de facto.
Este mesmo ‘Livre-arbítrio’, que dificilmente poderá ser aceite como dominante
no explicativo da ação humana (até porque pode simplesmente resultar de um erro
de interpretação), é tido muitas vezes como “base científica” de um modelo
epistemológico que podemos denominar de Pós-moderno, modelo que, no passado,
já terei considerado como base da aceitação de um “regresso ao Espírito”
(Biosofia n.º 41), no sentido em que o Pós-modernismo acarreta a assunção
do ser-humano como um construtor ativo da (sua) Realidade.
Ora, é conveniente
explicitar que esta perspetiva pode ser, de algum modo, reducionista, no sentido
em que é proposto que o homem é o grande construtor da entidade divina, sendo
que para esta edificação espiritual concorreria a relação dialética que o
ser-humano Doxa (corpo) estabelece com o ser-humano Epistéme (mente) (segundo
a “hierarquia do conhecimento” de Platão). Acrescentar-se-ia, até, que o nível
ontologicamente mais elevado do “ser-humano Epistéme”, a Noésis (correspondente à
razão intuitiva e contemplativa) é, segundo os dados neurobiológicos recentes,
na verdade, igualmente dependente do corpo, no sentido em que a “Inteligência
filosófica” (como muitas vezes prefiro apelidar) parece depender de uma relação
neuropsicológica que se estabelece entre os níveis mais elevados da cognição e
o resultado do sentir (adveniente dos
dados obtidos por meio do corpo e captados nas áreas sómato-sensoriais do
cérebro). Daí que, no livro «Corpo e pós-modernidade» (2012) tenha utilizado o
conceito de racionalidade estética para me referir ao “Nous” platónico.
Voltando à questão do reducionismo, este estaria presente (e
até poderia ser compatível com o Livre-arbítrio), se, de facto,
concebermos que a realidade Espiritual resulta da mera atividade pensante do
homem, ampliada para um tipo de consciência coletiva e sociocultural de cunho
apelidadamente “religioso”. Sublinhar-se-ia, aqui, que a semelhança entre os
conteúdos da Espiritualidade e a fenomenologia do comportamento do Homem
poderia ser explicada pelo processo de projeção
no Espiritual (coletivo e religioso) do funcionamento neuropsicológico
individual.
Contrariamente a
essa visão reducionista (segundo a
qual o Inferior explica o Superior), a visão Esotérica é dona de um
maior holismo, pois que concebe que a atividade (noiética) do homem o
aproxima do Divino, mas não o iguala a Deus, se não que o aproxima ou fusiona(rá)
ao indizível. Assim, a visão
‘Esotérica’ propõe uma solução que força a humildade do homem, pois que o
relaciona necessariamente com o Ser/Não Ser que o transcende e o
explica. A visão ‘Esotérica’ não é sequer necessariamente libertarista, se bem
que o Divino possa ser concebido como pura Liberdade (sobretudo
liberdade relativamente ao separatismo dos níveis de maior materialidade e
relatividade), pelo que a realidade “quântica” não é um pré-requisito
obrigatório à aceitação do ‘Esoterismo’, antes é qualquer coisa que ajuda à
aceitação do paradigma científico-epistemológico (pós-moderno e de natureza
hermenêutica) que permitirá aceitar o tal – anteriormente apregoado – “regresso
à Nova/Velha Espiritualidade”. Assim sendo, no Esoterismo, poderemos aceitar
que existe Holismo/Uno associado a Determinismo,
se bem que no nível mais monadístico
já podemos conceber a existência de uma Liberdade, mas de um tipo diferente do
Livre-arbítrio (a Liberdade resulta do Uno, mas o homem – individual ou
coletivo – não possui uma liberdade de ação ou decisão, pelo menos segundo o
ponto de vista “exotérico” a que estamos mais habituados; a tal Liberdade
existe – sim – em Deus, porque somente este seria o Absoluto Ser e Não Ser, o que nos leva a pensar que, o número de Universos
possíveis, ou seja, o número possível de potencialidades e, portanto, de
Demiurgos, poderá ser, de facto, infinito).
Aponte-se que tanto
a perspetiva ‘reducionista’ (mais próxima de um tipo de racionalidade
científica a que o Ocidente nos habituou recentemente), quanto a perspetiva
‘holista’ são compatíveis com o comportamento moral, mas somente a visão
‘Esotérica’ permite a descentração antropocêntrica e ego-maníaca requeridas
para a vivência Ética mais plena. Por outro lado, a vertente fortemente
determinista que o nível da vivência Humana implica (por parte do Divino)
obriga-nos – ou deveria obrigar-nos – à vivência mais compreensiva e harmónica,
enfim… no Amor e na tolerância, pois que a consciência de uma Determinação
“superior” e de uma responsabilidade prévia (Karma) desculpabiliza (?) as
falhas de determinada encarnação… coisa que mais obriga à Compaixão do que à
estulta desresponsabilização moral.
(Texto adicional de revisão ao primeiro apresentado, no prelo para publicação na revista 'Biosofia')