Não
é preciso ser um especialista na filosofia de Michel Foucault para saber, ou,
no mínimo, desconfiar que a História do corpo, talvez mais do que as outras modalidades
da Historicidade, se faz constituir mais por uma fenomenologia do irracional e
até do dogma, do que propriamente por uma suposta objetividade científica e/ou
clínica. Essa irracionalidade aparece travestida, sobretudo, de uma
problemática de poder, com este a exercer-se sobre o corpo e aparelho
decisional do doente, mas bastante mais no formato de uma querela
interdisciplinar que, tradicionalmente, opõe médicos a enfermeiros e/ou outros
profissionais de saúde não médicos. Atualmente, a presente “altercação” atinge
um limite nunca vivido, com um desenlace que parece já adivinhar-se e que, mais
do que expressão de uma escolha refletida e racional, é, na verdade, o
resultado do próprio paradigma económico emergente.
É
bem certo que, mesmo sendo difícil de acreditar por parte das “maiorias” a que
vulgarmente chamamos de “opinião pública”, um olhar mais analítico poderá
permitir identificar uma série de questões complexas que parecem não ter
existência, mas são, na realidade, o fundamento de qualquer decisão política
e/ou institucional consciente. O meu duplo papel de fisioterapeuta e de
ensaísta de pendor marxista promete complicar ainda mais as múltiplas questões
que se levantam, essencialmente porque o interesse do “profissional” parece
contrapor a atitude do ensaísta.
Não
obstante, tal contraponto parece até nem existir, e vejamos porquê… Ora, tal
como referi em «Corpo e pós-modernidade» (Esfera do Caos Editores), é inegável
que, com o advento do liberalismo, teve lugar o surgimento de uma medicina com
carácter científico que, mesmo possuindo uma maior probabilidade de se
desenvolver enquanto ciência “séria” e “não dogmática”, viria a marcar o início
de uma perspetivação do corpo que não mais mudou globalmente até ao presente.
Refiro-me à criação de uma visão “mecânica” do corpo, que, subjacente ao modelo
que apelidamos de “biomédico”, pressupõe a divisão em peças, a categorização
semiológica e/ou a decomposição estrutural de uma entidade que não pode nem
deve deixar de ser vista na sua globalidade sistémica. A fragmentação do corpo
tem a vantagem inquestionável de facilitar a “educação clínica” e até a
especialização médica, mas é o processo que permite epistemológica e
inquestionavelmente a estruturação absoluta do conluio entre a medicina e o
capitalismo. Pois que havendo que transformar a Saúde em mercadoria e o corpo
em indústria, o modelo biomédico encaixa-se na perfeição, e é precisamente esta
“conspiração” que permitirá reforçar o papel dogmático de um “médico-Deus”,
dono e senhor do doente, um “Doutor” do corpo, na realidade em constante
despreocupação com a “alma” e até com uma certa intenção de subjugação
paternalística desta.
Ora,
é bem certo que o aparecimento das profissões de saúde não médicas fez-se neste
mesmo contexto de modelo “biomédico”, sendo certo que uma parca formação e a
“falta de oportunidade política” manteve atividades como a enfermagem e a
fisioterapia numa posição subsidiária. Entretanto, como quem é filho de
determinados pais, ainda assim tem direito à saída do “paraíso original”, uma
certa carência de autonomização não poderia deixar de se buscar numa
necessidade de educação e graduação bastante fortalecida. Esse crescimento da
exigência da formação é uma realidade inquestionável, e cá estou eu para
garantir os meus vários anos de grande sofrimento com vista à mera
licenciatura. Portanto, que os profissionais de saúde não médicos têm já uma
formação “médica” robusta é inegável e a assunção do contrário revela somente
ignorância. Obviamente que, perante tal exigência de formação, é impossível o
profissional de saúde não médico não se sentir, de algum modo, frustrado
perante a pouca autonomia que lhe é reservada. O crescimento das ditas
profissões parece, assim, possuir até uma certa e justa pertinência!... No
entanto, parece-me que tal crescimento, feito em subjacência ao “modelo
médico”, apenas vai levar a que os enfermeiros e outros profissionais se tornem
novos médicos. E, verdade seja dita, bem me parece que a luta pela autonomia
não passa de mera luta pelo poder. E de que serve mais poder se este vai servir
para alimentar um novo lóbi profissional, o qual pretende manter o mesmo tipo
de intervenção que se mantém numa relação de cumplicidade com o liberalismo?
Parece-me que, assim sendo, somente se transferirão “competências”, sendo que,
a acrescentar aos tantos e tantos “médicos-burocratas”, passaremos a ter (como,
de facto, já temos) os “enfermeiros-burocratas”. Por outro lado, a assunção de
que tal transferência permitirá poupar dinheiro ao Estado é, de algum modo,
enganosa, pois, não só os enfermeiros estão prestes a ganhar financeiramente
mais do que sempre ganharam, como a mera possibilidade de “passarem exames” vai
levar a mais um “inflacionar” do processo de realização de exames desnecessários,
que, a bom saber, é já, no mínimo, escandaloso.
Ora,
não deixo, no entanto, de estar de acordo com a autonomização dos profissionais
de saúde não médicos. Mas acredito que tal “caminho” deverá passar
necessariamente pelo trabalho no sentido da mudança de paradigma. Ou seja, a
autonomia deverá basear-se num modelo epistemológico de intervenção também ele
autónomo do modelo “biomédico”. Somente na “diferença” fará sentido qualquer
tipo de autonomização! Ora, reconheço que, nas últimas décadas, o paradigma
“biomédico” tem sido sujeito a revisões e cuidada reflexão. E o resultado é que
cada vez mais os profissionais de saúde – médicos incluídos – pretendem-se mais
“humanos” e “globais”. E a consciência de que a autonomia dos profissionais de
saúde não médicos passa pela referida mudança de paradigma é tal que, de facto,
os enfermeiros e terapeutas se têm pretendido “holísticos”. O grande problema
reside precisamente aqui. É que, independentemente do que tem sido “vendido”, a
esmagadora maioria da atividade dos enfermeiros e terapeutas não pode ser
considerada holística, pois que uma visão “nosológica”, “mecânica” e
“fragmentada” do corpo persiste em manter-se teimosamente arraigada aos
profissionais de saúde. Culpa sobretudo do paradigma económico, bem o sabemos,
pois que é impossível tratar o “todo” do doente quando simultaneamente o
neoliberalismo pretende transformar o “utente” num artigo catalogável e
descartável.
Bem
sei que, pessoalmente, vejo o doente na sua “totalidade”; a minha intervenção
visa o corpo por inteiro, sendo que o tratamento de uma área do corpo poderá
significar o tratamento da totalidade do doente e até a intervenção
psico-emocional. Mas também sei que, para poder praticar esta intervenção, tive
de abandonar o Sistema, e, não havendo contexto de Clínica ou Hospital que
permita uma intervenção que vise a verdadeira holisticidade (pois que tais
instituições trabalham segundo o modelo das prescrições de tratamento de partes
do corpo divididas), sou automaticamente obrigado a trabalhar enquanto sempre
inseguro trabalhador “independente”.
A
prometida liberalização do SNS vai, de facto, possibilitar o crescimento das
ditas profissões não médicas, pois que há a perceção de que tal “distribuição
estatutária” permitirá tornar os serviços mais baratos, mas, como já terei
dito, a médio e longo prazo, o utente, aliás cada vez mais “cliente”, acabará
por perder, porque o paradigma epistémico e económico básico continua o mesmo…
mas agora nas mãos de um punhado de profissionais que, verdade seja dita,
possuem uma formação intelectual e cultural ainda muito deficiente; o risível
desta questão é que é precisamente essa mesma pobreza racional e epistémica que
continuará a manter os profissionais pregados ao desiderato do poder, assim
como continuará a impedir a consciência necessária ao abraçar de um novo modelo
de tratamento e compreensão do “doente-Pessoa”.
Publicado no site do 'Expresso'
Publicado no site do 'Expresso'
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