Recentemente,
dada a intenção governamental de que a nota da disciplina de Educação Física
deixe de ser contabilizada para a média de entrada para a Universidade, têm
sido tecidos diversos discursos acerca da importância da “matéria” em questão –
desde a quase total irrelevância à quase endeusificação que, de qualquer modo,
atravessa paralelamente as diversas “indústrias do corpo” –, muitas vezes
desprovidos de uma ligação franca e coesa à realidade.
De
algum modo, o meu papel enquanto estudante do ensino básico e secundário
contraria o meu papel enquanto praticante de atividade física e a minha
profissão de fisioterapeuta, pois que, revendo o passado, não posso deixar de
lembrar o quase “inferno” que as aulas de Educação Física sempre representaram
para mim, dado que um certo “mau-jeito” para as coisas do físico sempre serviu
de mote ao agravamento de um “bullying” do
qual fui vítima ininterrupta durante muitos anos.
Não
representou, todavia, tal experiência um abandono da prática física, antes me
apaixonei por esse tipo de atividade, ao ponto de ter influenciado a escolha do
meu curso de Fisioterapia. Curso e profissão que valoriza, logicamente, as
atividades ligadas à motricidade e ao treino, mas somente num tipo de
representação maioritária e académica, pois que, nos últimos anos, após estudos
realizados no domínio de um paradigma fisioterapêutico muito específico,
nomeadamente o modelo da “Reeducação Postural”, me tornei novamente adversário
de um vasto leque de atividades físicas (mas não da totalidade das mesmas) e um
representante da necessidade de uma “revolução epistemológica” no domínio da
Educação Física e da Fisioterapia.
A
temática possui certos cambiantes complexos que não importa discutir agora, até
porque, acerca da fraqueza do “fitness” enquanto “nova medicina” já terei
escrito há vários anos (em textos que são, agora, feitos renascer no meu
recentemente publicado «Corpo e pós-modernidade»), mas releva afirmar que,
segundo o modelo “clínico”, e se tivermos em conta as leis biomecânicas pelas
quais se rege o corpo e a postura, a esmagadora maioria das atividades físicas
– principalmente aquelas que fazem uso da força e da resistência musculares –
não possui real valor para a saúde. O que não implica que todas as práticas
sejam igualmente más, até porque não cesso de valorizar as atividades físicas
holísticas e de baixo impacto (principalmente aquelas que fazem uso do
alongamento e do relaxamento psicossomático) e as atividades de domínio
cardiovascular, das quais eu próprio sou acérrimo praticante.
Não
retiro, portanto, importância à atividade física, afirmo, sim, que o tipo de atividade
que é praticado regularmente, incluindo as aulas de Educação Física, possui, de
facto, pouca relevância no sentido clínico da questão. Bem sabemos que as aulas
de Educação Física estão veiculadas flagrantemente para a prática de desportos,
o que, não deixando de possuir certas vantagens no respeitante às competências
relacionais e “psicomotrizes”, ainda assim representa um conjunto de esforços
particularmente improfícuos, até porque muitas destas práticas não são
explicadas, adequadas à realidade diária e “práxica”, contextualizadas numa
cultura de higiene corporal e de prevenção da doença; em última análise, a
Educação Física tende a ser encarada como uma forma de “alienação” do currículo
escolar, fonte de desadaptação e até sofrimento para os alunos mais
“mentalmente meritórios” e de afirmação dos alunos que muitas vezes só na
Educação Física conseguem ter algum tipo de mérito. Com a prática e manutenção
deste tipo de modelo de Educação Física, e para desconforto de certos lóbis de
académicos que sempre tendem a defender-se com linhas de estudos cuja
fragilidade metodológica é gritante, estou de facto a favor da nova atitude governamental.
Por
outro lado, tudo poderia ser diferente, e aí faria sentido que a nota de
Educação Física tivesse um maior pendor valorativo, se houvesse uma franca
revolução no modelo de prática das aulas, com vista a adaptar a lógica da
atividade física a uma metodologia mais ligada à Saúde e menos à “performance”,
incluindo o ensino de práticas de higiene do corpo e até de princípios básicos
da medicina e da fisiologia (gerais e do exercício) e da adequada
complexificação e relativização dos efeitos do exercício (com evitamento de
“lugares-comuns” que obstam à inteligência dos estudantes), e o esforço por
sensibilizar os alunos para a importância da continuação da prática física
(incluindo a possibilidade de criar mecanismos que permitam a atividade física
fora – e para além – da escola e até o prolongamento dessa atividade pelo
máximo período de tempo) e da adequação desta à prática das atividades da vida
diária, sempre complexificadas pela vivência de um pouco sadio e ativo
envelhecimento.
Requerem-se
novas metodologias (com estas a reclamarem uma reflexão e uma mudança no seio
dos conteúdos da própria realidade académica que lança as bases para a formação
dos profissionais da motricidade), a gestão de uma relação diferenciada entre
os colegas, a prevenção do “bullying” e do preconceito, a ênfase no modelo de
aulas “teórico-práticas” e, sobretudo, o desfazer progressivo de uma imagem da
prática física conluiada com o exercício “militar”, estúpido e alienado da vida
“real”; este tipo de exercício, ainda existente no formato de professores que
se comportam como “sargentos da tropa”, tem de desaparecer, pois que, ao invés
de encorajar a prática da atividade física, antes contribui para a visão (ainda
muito) negativa do exercício, a qual, ao contrário do que muitas vezes é
afirmado, ainda é a regra da grande parte da “confortável” população portuguesa
(excetuando, talvez, as novas gerações que, de qualquer modo, realizam
atividade física mais por imposições de “bem parecer” e/ou de “bem-estar” e/ou
“bem trabalhar”/”bem produzir” do que propriamente por terem tido uma grande
experiência de encorajamento no ensino secundário). Reformule-se a Educação
Física e aí talvez a disciplina passe a ser mais valorizada e acreditada.
Publicado no site do 'Expresso'
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