Enquanto
fisioterapeuta que sou, estudioso não só de “terapias” e de “indústrias do
corpo”, mas igualmente reivindicativo de um estudo já há muito por mim
enformado na área da psicologia e da psicanálise, não posso deixar de, todos os
dias, me impressionar com o conjunto de disposições assaz “relativistas” respeitantes
ao mundo do corpo e das terapêuticas que com este se preocupam. Na verdade, a
medicina, a fisioterapia e a psicologia/psicanálise, mais do que matérias dadas
a uma pretensa e unidimensional objetividade racional/clínica, relevam para
temáticas com grande nível de ambiguidade e um interminável veículo de
paradigmas e de dimensões e escalas do olhar.
Pois
que não existe somente a Medicina canónica, tal como não existe uma Psicologia
ou uma Fisioterapia, mas sim várias Medicinas, várias Psicologias e várias
Fisioterapias. E, não obstante o valor científico das ditas profissões/ciências
que dominam o panorama do trabalho clássico nestas matérias, a verdade é que a
experiência racional, associada a uma certa sensibilidade estética e ética, vem
comummente demonstrar que o conhecimento de certas especialidades e/ou escolas
minoritárias está mais próximo da Verdade (se é que esta é de algum modo
definível…) do que aquilo que a grande maioria dos profissionais advoga e/ou
pratica.
O
caso da Psicanálise é, de algum modo, paradoxal, pois que, não sendo o modelo
dominante de prática diagnóstica em medicina psiquiátrica e até em psicologia
clínica, não deixa de constituir uma teoria interpretativa de importância
crescente e de reconhecimento social já bem entrosado. Por outro lado, releva
referir que, à semelhança do que foi dito relativamente aos “paradigmas
clínicos”, também não há uma Psicanálise, mas sim múltiplas psicanálises,
modelos diversos de escolas e autores também eles muito diversos… o que já por
si nos deveria alertar para o elevado grau de subjetividade que tal modelo de
explicação do comportamento poderá empreender.
Não
obstante a existência de múltiplos paradigmas de análise clínica (que, apesar
da possibilidade de confundir o terapeuta e/ou o doente nas suas decisões,
poderiam – ou deveriam – teoricamente facilitar o processo de flexibilização
interpretativa e interventiva), é comum os grandes e “minoritários” modelos de
intervenção, tal como as grandes escolas de pensamento, possuírem uma certa
tendência dogmática, o que não é necessariamente defeito, pois que grandes
teorias podem significar grandes Verdades que teimam em se querer afirmar
muitas vezes como “boas novas” anti-Sistema, mas que pode ser um defeito se,
mesmo depreendendo a aparência axiomática dos princípios e “leis” subjacentes à
‘escola’ em questão, o dogma esbarra com premissas erróneas, que, associadas à
recalcitrância da sua defesa intempestiva, resultam numa atividade própria de
um “relativismo” de “gurus” ou “vendilheiros”.
Ora,
é nestas alturas que a defesa da cientificidade tende a ser adotada (leia-se
uma cientificidade do tipo clássica e quantificativa), pois que ela poderá
significar um maior número de critérios que possibilitem a objetividade, a
medição de resultados terapêuticos e até a prevenção da prática “excessiva” ou
interesseira. Por outro lado, reside sempre a problemática da maior ou menor relevância
de obter resultados facilmente mensuráveis em matéria de comportamento humano
ou bem-estar psico-emocional – qualquer coisa que revela sempre uma
subjetividade adstrita a uma matriz que cruza um número quase infinito de
fatores e/ou variáveis – o que é, bem sabido, uma das temáticas centrais da
polémica que opõe várias escolas de psicoterapia, como a diatribe «Terapia
cognitivo-comportamental versus
Psicoterapia dinâmica».
Ora,
agarrando na temática psicanalítica – e assumindo que as suas diversas “escolas”
adotam como dominante a verdade psicossexual, segundo a qual o modelo da
identidade sexual é obtido fortemente a partir dos padrões de comportamento e
vivência com os pais e a conjugação destes com o sexo biológico descoberto nos
primeiros e em si-mesmos – deparamo-nos, de facto, com uma das temáticas mais
polémicas das ditas “interpretações clínicas dogmáticas”, a qual se prende –
para ser mais específico – com a interpretação psicanalítica da causalidade da
Homossexualidade. Mais uma vez se sublinha que esta tem tanto de potencial
Verdade dogmática quanto de potencial Falsidade dogmática, pois que, na
verdade, a cientificidade clássica das asserções psicanalíticas acerca da
Homossexualidade é ainda extremamente débil… o que, obviamente, não recolhe o
acordo dos psicanalistas, os quais, defendem o seu dogma como científico, mas
de um tipo de cientificidade certamente diferente da “clássica”…
A
temática é de extrema importância, até porque a resolução de outra temática
dita “fraturante” – a questão da adoção de crianças por parte de casais
homossexuais – parece depender fortemente da opinião destes profissionais da
“Psicologia”… opinião que, como sabemos (e já não é difícil perceber porquê),
está longe da consensualidade.
Ora,
eis que sugiro aos leitores a análise do texto “Homossexualidade”, de Jaime
Milheiro, da obra «Novos desafios à Bioética» (Porto Editora), referência que
considero fundamental e verdadeiramente paradigmática. Tentarei resumir a
abordagem do autor.
O
psicanalista começa por explicar, de forma resumida, a importância das
experiências precoces e das vivências com os pais na formação da identidade
sexual, colocando no padrão de relação com os pais (e no padrão de
comportamento destes com as crianças) a causalidade da identificação da criança
em geral, tal como da identificação sexual em particular, num conjunto de
múltiplos fatores: género, escolha, prazer, encontro e idealização. Logo a
seguir, cite-se «Se o desenvolvimento se processar em moldes comuns, a
identificação global ao progenitor do mesmo sexo acontecerá sem grandes
turbulências. Se houver inibição com angústias perturbadoras, podem
desenrolar-se dinamismos característicos e consequências. Poderão acontecer
fixações em patamares transitórios, pontos de passagem do amadurecimento. A
homossexualidade será disso um exemplo.» Sublinhe-se que o autor parece ser
proponente da clássica teoria freudiana do desenvolvimento da personalidade, o
que, já por si, é discutível e eventualmente criticável. Continuando a citar:
«Costumo dizer que isso acontece quando a criança não teve capacidade de
“reivindicar” o seu próprio sexo, ao discutir consigo própria a diferença entre
os dois. E não terá tido essa capacidade, conferida pela série animal aos seus
elementos, porque alguém lha retirou. Porque um clima relacional perturbado e
crónico, por excesso ou por defeito, a sufocou. Não lhe terá permitido o
exercício da formatação indutiva natural, porque ela se prejudicou nas malhas
onde se meteu. Mães grandiosas e possessivas, determinantes de tudo o que a
criança será, incluindo a sua identidade e género sexual, terão especial
relevo». É uma teoria interpretativa possível, mas não deixa de ter forte
carácter hipotético, com múltiplas possibilidades, múltiplos questionamentos
possíveis… Reparemos que se o modelo de “mãe possessiva e pai ausente” poderá
“criar” filhos homossexuais, pois a dominância da mãe cala a assunção
identitária do filho (ou da filha, mas nesta o processo é menos grave, pois
tratar-se-ia de um elemento do mesmo sexo), de igual maneira também o modelo de
“pai dominante” poderá criar rapazes homossexuais (e, sobretudo, raparigas
homossexuais), pois que o domínio do pai evita a assunção identitária do filho…
Eis
outra citação de destaque: «Agressividades não elaboradas, fragilidades
narcísicas, angústias de separação, medos de destruição da mãe, figura
primordial de quem a criança totalmente depende. Identificações maciças com
essa mãe nos dois sexos para a manter dentro de si em perspetivas fusionais são
de observação corrente, o que acarreta no adulto uma idealização dela quase
absoluta, muito visível na maior parte dos homossexuais, masculinos ou
femininos, ou, em contrapartida, uma desvalorização reativa do mesmo grau,
igualmente quase absoluta.» Mais uma vez esta tendência para dizer que a causa
pode ser uma coisa ou o seu contrário, o que até pode ser entendido numa
perspetiva de explicação teorética, mas dificilmente pode ser aceitável em algo
que se diz “científico”… Claro que também será necessário ter em conta a
questão estatística e probabilística. Será que todas as mães dominantes
produzem rapazes gays? (Qual o número necessário para considerar a existência
de uma relação de causa-efeito?...) Não existirão outros fatores importantes? A
fixação edipiana que produz a homossexualidade não deveria também produzir,
numa boa parte dos casos, alguma forma de neurose? Não seria de esperar que o
homossexual tivesse (quase sempre) alguma perturbação de ansiedade? E se a
tivesse, não poderia ser uma consequência da forma como é tratado pela
Sociedade? Será que a explicação psicanalítica difere para gays “ativos” versus “passivos”? Os gays passivos
terão maior nível de identificação com a mãe? Ou serão só os gays com tiques e
maneirismos?... (Enfim… Será que alguma destas questões precisa mesmo de ser
respondida?... E se quisermos mesmo responder a estas questões, não teremos que
estabelecer primeiro uma série de critérios, de fronteiras e de definições
operacionais? Mas não será tal rigor próprio de uma ciência? Será que tal rigor
é possível ou simplesmente aceitável?...)
A
temática teria, decerto, que ser bem trabalhada, refletida, e de algum modo
estudada, sempre tentando sobrepor o discurso racional ao discurso da
preferência e do preconceito. Até que é precisamente a ideia de que o bom
equilíbrio “Pai – Mãe” é necessário à produção de um ser “normal” que leva a
que, muitas vezes, se produza o conhecido preconceito contra a adoção por
casais homossexuais… Pergunto eu: e que fazemos com os casais heterossexuais em
que existe um desequilíbrio na “supremacia” de um dos elementos? Proibimos a
reprodução nos casais matriarcais? Punimos as mães dominantes? Multamo-las
quando produzem filhos homossexuais? (Cobramos às mães possessivas o dinheiro
gasto no “divã”?) Mas não será já tudo isto um preconceito?... Pois, afinal de
contas, a homossexualidade não é uma doença… Ou é? Será que para os
psicanalistas de que nos ocupamos a homossexualidade deveria voltar a constar
dos manuais de psiquiatria? E será que, se isso acontecesse, alguma coisa mudava
na realidade do próprio homossexual? Mesmo que fosse uma “doença”, não seria a
homossexualidade uma parte da natureza do indivíduo? Deve uma natureza ser
modificada (com base em pressupostos de “anormalidade” versus “normalidade” que podem estar errados)? Deve uma “Estrutura”
ser alterada? Pode uma “Estrutura” ser considerada “anormal” (concebendo que
existiria um modelo de “normalidade”…)?
Na
extensão das perguntas anteriores, resta-nos questionar a fidedignidade das
psicoterapias que usamos no tratamento das nossas neuroses… Pois, que confiança
posso ter neste tipo de terapias quando o grau de incerteza parece sobrepor-se
ao grau de cientificidade? E que fazer perante tantos e tantos casos em que o
psicoterapeuta interfere diretamente nas opções e escolhas do doente? Será isto
legítimo? Não será perigoso mexer com a vida de outrem? Não será incoerente,
por exemplo, um psicoterapeuta ser “paternalista” e protetor relativamente ao doente,
quando é a autonomia do paciente que deverá tomar a dianteira do processo
terapêutico? Um psicoterapeuta paternalista não atuará ele mesmo como um
“pai/mãe” dominante? Não era desse género de Ente que era “suposto”
libertar-nos?...
Reparemos
que muitas das questões que temos feito só fazem sentido se tivermos como ponto
de partida o facto de a homossexualidade ser uma coisa a extirpar… Será que não
é toda uma visão social que tem de mudar? Pois que tudo é contexto, tudo é
relativo!
Publicado no Site do Jornal 'Expresso'
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