«Acusar os outros de ignorância porque desconstroem as realidades fabricadas na aparência é, no mínimo, ser escravo e disso ter orgulho» (in ‘O Corpo e o Nada’, 2013, Apeiron Edições)
O facto de se viver em Portugal um clima de profunda depressão psicossocial e económica justifica a eventualidade de certas lutas corporativistas serem vividas com inédita agressividade mas não justifica que essas mesmas lutas assumam o aspeto de uma tentativa de conquista da própria Realidade. É bem sabido que o contexto dos sistemas de saúde é, como sempre foi, dado às lutas de poder e aos conflitos interdisciplinares (ao mesmo tempo que uma certa ética das “boas práticas” reitera a importância do trabalho em equipe), mas uma situação única, verdadeiramente inédita no Mundo, está a suceder e tem criado, agora mais do que nunca, um enorme cisma entre os profissionais de saúde. Trata-se do fenómeno do “enfermeiro” enquanto Super-homem (no sentido quase nietzscheniano do termo) que se arroga a capacidade de poder praticamente substituir o trabalho de todas as outras profissões de saúde, situação que ganhou um crivo particularmente consternador com a recente saída da Circular Normativa n.º 19/2013/DPS de 15 de Abril de 2013 da ACSS relativa à “Uniformização dos Registos de Enfermagem em Cuidados de Saúde Primários”circular-normativa-19-2013-DPS.pdf.
Se é já algo conhecida a intenção do enfermeiro de “substituir” o médico em muitas das suas competências, o que inclui a ambição do primeiro de vir a ater o poder de “receitar” exames complementares e medicamentos – o que é estranho, atendendo ao discurso do (mesmo) enfermeiro enquanto profissional “holístico” e “não médico”, apologia da autonomia que deveria ser compatível com um espírito “clínico” menos prescritivista – é provável que muitos portugueses não tenham ainda uma grande consciência de que a ambição a longo prazo do enfermeiro passa por vir a substituir muitos outros profissionais nas suas diversas habilitações. E, observada e estudada a Circular em questão, as competências que se apresentam como sendo “do enfermeiro” incluem muitas das atividades normais do fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, terapeuta da fala, psicomotricista e psicólogo, profissões cuja especialização permite, com obviedade, a execução das ditas atividades com um grau bastante mais elevado de competência. Competência obtida a partir de um modelo de expertise que tem por trás anos e anos de formação graduada e pós-graduada, experiência e treino específicos, assomados a formações e vivências singulares, que honram o espírito da “arte”/”ciência” em questão na sua densidade científico-académica e técnica e na sua maturação humana e espiritual num ponto comparativo que é o do nível dos pares internacionais… com tudo isto, toda esta riqueza concetual e multiparadigmática, dada por anos de vivências insubstituíveis por parte dos mesmos profissionais que criaram, pensaram ou amadureceram grande parte dos métodos referidos no documento, a ser ridicularizada, pretensamente “diminuída”, por uma Circular (apadrinhada por interesses particulares e economicistas) que adota a falaciosa teoria da “Polivalência”, que, de tão “Poli” pouco terá de “Valência”.
É certo que a Circular só se refere aos ‘Cuidados de Saúde Primários’, mas é um precedente que se abre agora e se torna aparentemente “legal” e que não pode deixar de se sentir como o início de uma nova Era em Saúde no nosso país (aliás em todo o Mundo), em que o enfermeiro – outrora um profissional “auxiliar” (se bem que de importância inquestionável) – passará a ser praticamente “O Profissional” único e heroico dos Serviços de Saúde; passe-se a lógica ego-maníaca e classista da coisa que, mesmo sendo um “arquétipo” incluso do animalismo humano, assume proporções desmedidas e pouco inteligentes neste nosso país de “padrinhos”…
Relativamente à Circular, ao que parece, a partir de agora, nos Centros de Saúde, o enfermeiro passará a poder ser responsável por atividades como “Testes de Psicomotricidade”, “Exames de alterações da fala e da linguagem”, “Cinesiterapia Corretiva Postural”, “Reeducação Funcional de cada membro com análise simultânea do movimento e registo”, “Treino de Equilíbrio e Marcha”, “Terapia Ocupacional”, “Treino de escrita à mão ou à máquina de escrever/computador”, “Execução de ligaduras funcionais ou gessos”, “Reabilitação Cardíaca Individual”, “Reabilitação Otolítica”, “Sessões Psico-Educacionais familiares em grupo (…)”, “Terapia Ocupacional em Psiquiatria”, entre muitas outras que, pelo seu elevado grau de especialização, exigiriam muito mais do que um “simples” profissional de enfermagem (cuja “especialidade” não é suficientemente “específica” e simultaneamente abarcante, a não ser, claro, que este profissional tenha passado a augurar de capacidades sobre-humanas).
As diferentes atividades a que a Circular se refere requerem um número elevado de profissionais e uma gestão dos Cuidados feita de modo a que diferentes serviços ou centros possuam dissemelhantes valias e equipes diferentemente constituídas. É um tipo de “multiplicidade” nem sempre favorável à noção de Uno (que é apanágio da Totalidade, de um “holos” que reside no próprio paciente e sobretudo na sua “transcendência”), mas necessária à organização cognitiva dos saberes e à pragmática psicossocial das atividades, cujos conteúdos são demasiadamente abarcantes para poderem ser geridos por um só ser humano.
Os enfermeiros defendem-se com a suposta legalidade da situação e com a grande compatibilidade da mesma com a crise (pois os serviços serão geridos por profissionais mais polivalentes), quando, durante anos defenderam a importância da existência e exercício de uma equipe inclusiva de diferentes valências. Que é, na verdade, basicamente o que existe em todos os outros países, nos quais as leis são mais claras e os diferentes profissionais coexistem, e todos os que citei lá em cima possuem real existência e inclusão no nível mais elevado da Classificação Internacional das Profissões.
Ora, se o nosso país é único no respeitante a esta situação alarmante e que tem preocupado milhares de jovens terapeutas que já tantas dificuldades possuem em arranjar emprego ou em realizar atividades minimamente prestigiantes e edificantes, é porque os enfermeiros têm sabido escalar e ocupar lugares robustos no tecido governamental e organizacional português. Não que desmereçam esses lugares ou que não possuam grandes valências, assim como qualidades indiscutíveis, mas, de facto, o poder do enfermeiro no nosso país não tem paralelo e está a crescer de um modo tal que coloca em perigo os lugares e valências de outros profissionais igualmente qualificados e com níveis importantes de competências específicas.
A situação tem provocado grandes conturbações entre as associações e grupos profissionais dos diferentes terapeutas e técnicos de saúde, pelo sentimento de profunda injustiça perante tal ilegitimidade. Também já há quem augure que os enfermeiros pretendem vir a efetuar atividades relativas ao Serviço Social, à Terapia Familiar, entre tantas outras que requerem uma preparação especial. E ao mesmo tempo que os enfermeiros vão passando anúncios na televisão bem “alusivos”, uma petição (http://www.peticaopublica.com/pview.aspx?pi=P2013N40825) de cujo texto base eu próprio sou autor (petição base da Terapeuta Leonor Lainho) já circula com milhares de assinaturas.
Temos, assim, que uma classe profissional outrora maltratada passa de “cordeiro” a “lobo”, com aparente traição de muitos dos princípios holísticos e de “humildade” que, ainda há poucos anos, vinham a defender, o que nos leva a pensar que, mais uma vez, tudo não passa de uma lógica de poder e que os injustiçados de hoje passam a ser os injustos de amanhã.
Publicado em 'Hospital do Futuro'