quinta-feira, agosto 29, 2013

A triagem dos enfermeiros nas urgências hospitalares

A propósito das declarações do Bastonário da Ordem dos Médicos acerca da menor competência dos enfermeiros para realizar as triagens das urgências hospitalares, acto basilar do processo da equidade no atendimento, não posso ignorar a necessária ressalva face a mais uma ignóbil e frustre polémica, que, a bem ver, nada mais é do que o aproveitamento de casos excepcionais do funcionamento dos Serviços de Saúde para fazer valer um lóbi face a uma Corporação em emergente crescimento.
Sou insuspeito, até porque ainda há pouco tempo era eu o autor de uma polémica que contrapunha terapeutas a enfermeiros, assumindo eu um pouco a salvaguarda dos direitos dos terapeutas face à crescente prepotência dos enfermeiros e da figura do enfermeiro "Super-Homem". Mas eis que, atendo a nova polémica das "triagens", não posso deixar de dar razão aos enfermeiros e de condenar as afirmações e actos do Bastonário da Ordem dos Médicos.
Enquanto fisioterapeuta que sou, com treino aturado na compreensão do raciocínio clínico, o qual inclui a relação dialéctica da capacidade de diagnóstico (clínico e funcional) e da capacitação de realização do exame subjectivo e objectivo do paciente, posso assegurar que, muitas vezes, é impossível compreender completamente a situação clínica do doente, mesmo no decorrer de diversas consultas ou sessões de tratamento. É que o paciente compreende todo um Universo semiológico, para não falar da complexidade da relação dos sistemas orgânicos entre si e em relação com o "Sistema psicossocial", e muitas vezes situações aparentemente simples, como manifestações clínicas específicas, escondem processos complexos, que chegam a nem sequer ser adequadamente compreendidos no decurso de uma ou mais consultas.
A presunção de que há uma relação directa entre a patologia e a manifestação vigora somente entre quem não entende que o mundo da Saúde envolve todo um manancial de sistemas, modelos, paradigmas, e também multi-valências, com os consequentes conflitos interdisciplinares (quando o funcionamento da Equipe continua a ser defendido como ideal, no seio de outros horizontes...), os quais, na verdade, não deixam de escamotear o desiderato do poder.
O mundo da Saúde tem muito mais a ver com o irracional do que os cidadãos possam sequer imaginar, e presumir que há modelos perfeitos é, no mínimo, vogar no desconhecimento ou na hipocrisia. Daí que não posso deixar de condenar as afirmações do Bastonário da Ordem dos Médicos, até porque também os médicos conhecem as referidas dificuldades de diagnóstico e vogam em todo um mundo de relativismos e incertezas (malgrado a petulância de alguns profissionais que se afirmam como totipotentes, e que, por isso mesmo, acabam por errar ainda mais).
As afirmações referidas não passam de todo um aproveitamento contextual, que é o mesmo que é utilizado para fazer guerra a profissões que se encontram em situação de definição emergente. Quem trabalha em Saúde, sabe que este género de oportunismo é frequente, tal como a constância da luta entre profissionais em nome do domínio do Sistema e da "posse" do paciente.
O Sistema de Triagem não pode jamais ser perfeito, até porque não se trata de um contexto de diagnóstico mas somente de um processo de selecção da ordem do atendimento. Face ao que já disse, e acrescentando-lhe as condições e os tempos bizarros de atendimento do paciente, não podem restar dúvidas de que é impossível que a tarefa dos enfermeiros possa ser desempenhada com total ausência de erros. E nada garante que a maior formação dos médicos implique que os mesmos erros diminuam significativamente; a não ser que esse atendimento fosse feito em muito mais tempo e com uma acuidade muito superior... o que não deixa de ser risível, pois deixaríamos de ter uma triagem e aproximar-nos-íamos do modelo actual (e, diga-se, pouco benemérito) de consulta médica.

Publicado em 'Hospital do Futuro': http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/a-triagem-dos-enfermeiros-nas-urg-ncias-hospitalares

quarta-feira, agosto 21, 2013

As Metamorfoses do Espírito: em breve...

Desde já anuncio a saída, para breve, do meu próximo livro, do qual revelo o título: «As Metamorfoses do Espírito. Sobre o Mal, a psicologia da Filosofia e o Super-Homem. Ensaios poemáticos e fragmentos luciferinos» (pela Apeiron Edições).
 
Vão alimentando a ideia de ler um livro politicamente incorrecto e muito pouco convencional!!...
 
 

sábado, agosto 17, 2013

Nietzsche e a psicologia do Super-Homem


"O homem é uma coisa que tem de ser superada"

"Anuncio-vos o Super-Homem, aquele que há-de dominar a Terra"

Nietzsche («Assim falava Zaratustra»)


Se considerarmos que a Espiritualidade conforma um terreno que se estende desde o desiderato da "Psicologia do auto-conhecimento" - e que inclui obviamente o papel da religião (e, claro, do mito) como retorno saudosista (à semelhança do que propende a Psicanálise), como "reactualização nostálgica das origens" (Mircea Eliade) - à moral martirizada da "renúncia" (que se reifica com o 'Nada' da Voz meditativa do Silêncio e concretiza derradeiramente com a morte pacificadora), podemos considerar que é sobretudo a primeira perspectiva mais "psicológica/psicanalítica" que interessa mais à noção do Super-Homem tal como apresentada por Nietzsche em «Assim falava Zaratustra»; este mesmo Super-Homem é, assim, o resultado derradeiro de todo um crescimento, um pouco como o produto finalizado de um processo de Gnose pessoal, a meta de um caminho epopeico, que é no fundo a tragédia da vida psicológica e intelectual.
Sabendo nós que a via Ética genuína implica a renúncia e que o verdadeiro amor reitera o abandono do Ego (o desapego que um certo Budismo refere), é igualmente vero que nenhuma via de auto-exclusão poderá fazer com que, de facto, um efectivo crescimento transpessoal e civilizacional possa ocorrer. E esta perspectiva não pode deixar de recolher o consentimento próprio da modernidade, que é, de algum modo, o contexto temporal por excelência da valorização das relações inter-pessoais e mundanas, acrescentando-lhe por detrás o cenário de uma valoração científica materialista que há muito contribuiu para dessacralizar o tecido social e igualmente de uma valoração política liberal que veio contribuir para reificar uma dupla perspectiva de vida Individualista vs. Igualitarista.
E é precisamente a imersão neste contexto liberal empossado pela moda "darwinista" e reaccionado pela revolução Socialista que veio dar a Nietzsche uma força motriz elevada na geração da sua perspectiva do Super-Homem, que viria a ser um dos pré-requisitos históricos capitais da criação das teorias de Freud e de uma parte significante da Psicodinâmica.
Influenciado pela revolução científica do séc. XIX, e bem consciente da há muito anunciada "Morte de Deus", Nietzsche viria a contribuir para uma avalanche "secular" verdadeiramente dessacralizadora, tendo contribuído, como nenhum outro, para demolir as noções "românticas" do Espiritualismo e de todas as Metafísicas, e também para mostrar que todo o Idealismo tinha por trás a razão própria de cada um, a necessidade doentia de cada Ego, a projecção psicológica de uma ilusão, enfim... contribuiu para denunciar a aspiração Espiritual como meramente "humana, demasiado humana".
A pretensão da renúncia seria assim vista como doença do crescimento, medo da evolução, necessidade de totalização de um Eu que tem a fobia da aventura de ser; e, tal como defendido em «A Genealogia da Moral», a moral cristã seria somente o resultado da destituição de um tipo de moral mais antiga, que é a "moral dos fortes", a "moral aristocrática".
Para Nietzsche, o homem é sobretudo uma condição intermédia entre o animal e o Super-Homem, e o ser humano está destinado a crescer e a "tornar-se". O que vem em abono da perspectiva da evolução pessoal, do crescimento do nosso Eu, o qual irá implicar o "retorno", o recuo às memórias, e até o "marca passo", para que, no fim, após um caminho realizado enquanto "Odisseia", todos os condicionamentos tenham sido vencidos e a Liberdade (ou, pelo menos, a sensação da liberdade) tenha sido obtida.
Esta meta seria a do Super-Homem, ou seja o homem que foi capaz de se transcender - se bem que não tenho a certeza se este caminho possui um "fim" - obtendo-se um Ser capaz de criar os seus próprios Valores, que podemos interpretar como o homem maduro que se torna criador, de obra ou dos seus filhos.
Ora, se bem que existe uma tentação de associar ao Super-Homem aquilo que seria o resultado de um longo trabalho de divã psicanalítico (que pode ser interpretado como o caminho próprio de transmutação que todos estamos destinados a perpetrar no devir das nossas vidas), não posso deixar de acrescentar que esta é uma interpretação, que apesar de se manter válida e aceitável, não condiz, ainda assim, com a perspectiva que Nietzsche apresenta a partir de «Para além de Bem e Mal», em que o Super-Homem é apresentado enquanto Elite aristocrática destinada por várias gerações à grandeza, e portanto não alcançável pelo "comum" (malgrado as filosofias liberais e igualitaristas pouco aceites pelo filósofo); por outro lado, se bem que concebo que a via do crescimento e da formação do Super-Homem acaba por permitir a eticidade, este tipo de moral não corresponde, de facto, ao tipo de "moral darwinista" com a propensão competitiva da Vida que Nietzsche tanto parece estimar.
Os aspectos das obras de Nietzsche posteriores a «Assim falava Zaratustra» não implicam que não possamos dar livre interpretação a essa fantástica obra que propende que o homem está destinado a ser ultrapassado, de modo a criar o «Super-Homem», que, a meu ver pessoal, existe em potência em cada um de todos nós, e que, sendo alcançado (ou "desvelado"), permitirá a harmonia, no sentido em que a fixação da estrutura fálica ou o pilar fundamental do Eu levará automaticamente à capacidade do Eu de se virar para fora de si (é um facto, que a tolerância e a dedicação aos outros não podem ser obtidos sem que primeiro o Eu se encontre a si mesmo).
Penso que, na actual fase de "défice narcísico" da Humanidade, em que o egoísmo assumiu proporções desmedidas e o individualismo se tornou um valor dominante, é precisamente o alcance do Super-Homem (e só depois de uma "Super-Humanidade") que reitera a prioridade. Não do Super-Homem aristocrático e individualista, porque esse já o temos e em excesso! Mas do Super-Homem cheio de amor, primeiro do auto-amor do Super-Homem individual, e só depois do Amor Universal do Super-Homem colectivo.
Como já disse, a via implica o caminho próprio, até porque a verdadeira Sabedoria tem de ser "não mediada". Não se pode esperar que sejam os outros a fazer este caminho por nós; isso seria arriscar a substituição do Crescimento pelo Conforto, que, apelando à analogia com a Espiritualidade, é como substituir a espiritualidade esotérica pela religião exotérica (que, como sabemos, corresponde ao que de facto aconteceu com a Humanidade, principalmente desde as trevas cristãs).
Ora, percebemos, então, que a Espiritualidade inclui este "caminho" do "Auto-conhecimento", e que não é só o que Nietzsche nela quis identificar: a renúncia. O caminho ascético e a renúncia à mundaneidade são, apesar de tudo, caminhos nobres de Eticidade, mas parece-me que, não obstante a possibilidade de serem somente uma construção velada dos espiritualistas racionais (ou mera projecção psicológica do Idealismo), ancoram numa via final de silenciamento ou pacificação que a Humanidade não se encontra actualmente preparada para substantivar.
Assim, o crescimento, o silenciamento e o encontro do «Nada»/Absoluto - fases do "processo Espiritual" - poderiam corresponder precisamente às fases da vida do homem/Humanidade, em que o crescer da criança e do adulto (fase actual em que se encontra o Colectivo) seriam terminados pela pacificação da maturidade (e em que a entrada no silêncio sem a adequada integração do corpo egóico poderia implicar uma danosa "fuga para a frente", que os psicanalistas, de algum modo, denunciam nos que se "anulam a si mesmos", e em que, por outro lado, a vivência ad eternum do corpo egoísta destinaria o Homem ao temido "eterno retorno").
Empreendamos, consequentemente, o desejado caminho para o Super-Homem, que, ainda assim, estamos destinados a ser, nesta nossa impossibilidade de não sermos Amor.

 
in «A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade» (Edições Mahatma)