A propósito das declarações do
Bastonário da Ordem dos Médicos acerca da menor competência dos enfermeiros
para realizar as triagens das urgências hospitalares, acto basilar do processo
da equidade no atendimento, não posso ignorar a necessária ressalva face a mais
uma ignóbil e frustre polémica, que, a bem ver, nada mais é do que o
aproveitamento de casos excepcionais do funcionamento dos Serviços de Saúde
para fazer valer um lóbi face a uma Corporação em emergente crescimento.
Sou insuspeito, até porque ainda
há pouco tempo era eu o autor de uma polémica que contrapunha terapeutas a
enfermeiros, assumindo eu um pouco a salvaguarda dos direitos dos terapeutas
face à crescente prepotência dos enfermeiros e da figura do enfermeiro
"Super-Homem". Mas eis que, atendo a nova polémica das
"triagens", não posso deixar de dar razão aos enfermeiros e de
condenar as afirmações e actos do Bastonário da Ordem dos Médicos.
Enquanto fisioterapeuta que sou,
com treino aturado na compreensão do raciocínio clínico, o qual inclui a
relação dialéctica da capacidade de diagnóstico (clínico e funcional) e da
capacitação de realização do exame subjectivo e objectivo do paciente, posso
assegurar que, muitas vezes, é impossível compreender completamente a situação
clínica do doente, mesmo no decorrer de diversas consultas ou sessões de
tratamento. É que o paciente compreende todo um Universo semiológico, para não
falar da complexidade da relação dos sistemas orgânicos entre si e em relação
com o "Sistema psicossocial", e muitas vezes situações aparentemente
simples, como manifestações clínicas específicas, escondem processos complexos,
que chegam a nem sequer ser adequadamente compreendidos no decurso de uma ou
mais consultas.
A presunção de que há uma relação
directa entre a patologia e a manifestação vigora somente entre quem não
entende que o mundo da Saúde envolve todo um manancial de sistemas, modelos,
paradigmas, e também multi-valências, com os consequentes conflitos interdisciplinares
(quando o funcionamento da Equipe continua a ser defendido como ideal, no seio
de outros horizontes...), os quais, na verdade, não deixam de escamotear o
desiderato do poder.
O mundo da Saúde tem muito mais a
ver com o irracional do que os cidadãos possam sequer imaginar, e presumir que
há modelos perfeitos é, no mínimo, vogar no desconhecimento ou na hipocrisia.
Daí que não posso deixar de condenar as afirmações do Bastonário da Ordem dos
Médicos, até porque também os médicos conhecem as referidas dificuldades de
diagnóstico e vogam em todo um mundo de relativismos e incertezas (malgrado a
petulância de alguns profissionais que se afirmam como totipotentes, e que, por
isso mesmo, acabam por errar ainda mais).
As afirmações referidas não
passam de todo um aproveitamento contextual, que é o mesmo que é utilizado para
fazer guerra a profissões que se encontram em situação de definição emergente.
Quem trabalha em Saúde, sabe que este género de oportunismo é frequente, tal
como a constância da luta entre profissionais em nome do domínio do Sistema e
da "posse" do paciente.
O Sistema de Triagem não pode
jamais ser perfeito, até porque não se trata de um contexto de diagnóstico mas
somente de um processo de selecção da ordem do atendimento. Face ao que já
disse, e acrescentando-lhe as condições e os tempos bizarros de atendimento do
paciente, não podem restar dúvidas de que é impossível que a tarefa dos
enfermeiros possa ser desempenhada com total ausência de erros. E nada garante
que a maior formação dos médicos implique que os mesmos erros diminuam
significativamente; a não ser que esse atendimento fosse feito em muito mais
tempo e com uma acuidade muito superior... o que não deixa de ser risível, pois
deixaríamos de ter uma triagem e aproximar-nos-íamos do modelo actual (e,
diga-se, pouco benemérito) de consulta médica.
Publicado em 'Hospital do Futuro': http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/a-triagem-dos-enfermeiros-nas-urg-ncias-hospitalares
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