O
que têm em comum a "fibromialgia" e a "homossexualidade"?
Ambas implicam um "pathos" ("sofrer") íntimo, fantasmático,
que é estendido, dilatado, pelas representações sociais relativas às duas
condições, portanto, pelo "pathos" social. O "outro" que
temos por dentro, a culpa, influencia e é influenciado pelo "outro"
de fora, a sociedade. No caso da "homossexualidade", a culpa
intrínseca é parcialmente nutrida pelas representações sociais da primeira; a
sua despatologização pretende desligar parte deste processo. No caso da
"fibromialgia", a culpa aspira ser desligada através de um processo
de conversão, de transformação, de uma coisa "mental" "stricto
sensu" numa coisa essencialmente "física" "stricto
sensu".
Aproveito
o facto descrito em
https://www.publico.pt/2016/12/29/sociedade/noticia/fibromialgia-reconhecida-como-doenca-1756467
("Fibromialgia reconhecida como doença") para mencionar a ponderação
que a "sociedade" possui no prolongamento do "pathos" de
cada um. Não querendo autenticar a sua "síndroma" enquanto mera (?)
"depressão" (neste contexto, com caracteriologia, expressão,
especialmente "física"), os fibromiálgicos, e as suas associações,
sempre pressionaram a comunidade médica, e os clínicos em geral, no sentido de
verem o seu "sofrer" ser patologizado/nomeado/identificado no molde
de uma presumida "doença" com cariz autónomo, cujo reconhecimento
enquanto tal permitisse apagar parte das representações mentais negativas que,
geralmente, se atribuem a uma coisa tão aparentemente volúvel quanto a
psicopatologia.
Mas
a depressão (passe-se a "globalidade" do que o termo abarca) é tudo
menos volúvel e, por vezes, o "pathos" que ela configura é tão
desabrido que o paciente, inconsciente e/ou involuntariamente, acaba por
convertê-la/o numa coisa emergivelmente "física" "stricto
sensu", menos abstracta (se bem que a "sensação física" apela ao
"abstracto") e, portanto, mais facilmente compreensível, partilhável
e/ou aceitável. O mecanismo é interno e pode ser reconhecido em muitos
pacientes, mormente naqueles em que a "evolução" é capciosa e
tendente para a cronicidade. O mecanismo, como já vimos, é igualmente social,
contribuindo este para perpetuar o anterior.
No
início nem sempre é evidente. O paciente queixa-se de determinada(s) parte(s)
do corpo, tratamo-la(s), a coisa melhora subitamente ou simplesmente nada
acontece. No dia seguinte é outra coisa que dói, o paciente desgasta-se em
pormenores e "sensações" geralmente infundados e irrisórios (apesar
de subjectiva e semioticamente relevantes). Nada que seja evidenciado pelos
exames já efectuados. Porventura, terá havido alguém que valorizou o pouco que
os exames mostravam de "anormal" ou as apreensões do paciente, este
ficou satisfeito, a coisa até pode ter melhorado, mas, mais tarde, tudo
retornou. As dores mantêm-se e vão viandando por um corpo provavelmente tenso,
o paciente mexe-se com cuidado e prevenção desmedidos (pode haver medo ou
mal-estar, mas o paciente dirá, possivelmente, que não se sente deprimido;
obviamente, também há a possibilidade de as manifestações físicas e
mentais/emocionais se co-relacionarem, sendo, claro, por vezes, difícil de
definir/discernir objectiva e subjectivamente o que é "físico" vs.
"mental", até porque o físico é mental é físico, significantes de uma
"mesmidade") e tudo se vai perpetuando numa demanda de intervenções
(bastas vezes com resultados frustrantes, outros, estranhamente milagrosos) e
de múltiplos profissionais de saúde (os quais, quase sempre vitimam o paciente
com as suas teorias e paradigmas - ao invés de se disporem a um esforço de
"síntese" dos diferentes dados, distintas pistas do raciocínio
clínico -, contribuindo para prolificar ainda mais o conjunto das apreensões do
sujeito). Se há algum que lobriga a irracionalidade (?) das manifestações
(segundo o ponto de vista do raciocínio clínico mais costumeiro) e escolhe
referir-se ao aspecto possivelmente mental, psicossomático, dos sintomas (coisa
que, na, frequentemente não acontece - dado o imediatismo do sistema, do modo
como se avalia e trata, bem como a mera componente metamorfoseante do paciente,
que ilude continuamente o profissional -, o que até admira, não sejam todas as
condições físicas irmãmente, senão causalmente, "mentais"), ele é
presumivelmente repelido, o paciente dificilmente aceita que aquilo que tem é
dominantemente psicogénico (sendo que o mal-estar que possa eventualmente
existir é facilmente encarado como consequência, e menos enquanto correlato - e
menos ainda como causa -, do problema físico) - embora possam ocorrer
transitoriamente algumas suspeitas -, recusa usualmente a ajuda estritamente
psicoemocional, se bem que a recebe "indirectamente" através dos multíplices
terapeutas entretanto sondados (nem que seja mediante a componente psico-física
das inerentes terapias - não obstante o facto de a via "física"
propriamente dita conservar a problemática -, pela via do trabalho semiológico
das manifestações, talvez menos pelo viés dos processos de relaxamento e outros
que dimanam sobretudo a um nível cognitivo-comportamental). À falta de
respostas, as terapêuticas não convencionais assentam que nem uma luva nas
necessidades destes pacientes. E, assim, tornam-se comummente seguidores destas
terapias, das suas explicações e filosofias, da dinâmica das suas soluções (a
sua linguagem "ideal" é um "modus" de linguajar
"psíquico", o nosso condicionamento "materialista"
atribui-lhe uma importância ténue, mas, bem vendo, não é especialmente
divergente da solução psicanalítica, identicamente abstracta, volúvel e
"infalsificável"; quiçá os pacientes encontrem o seu lugar dentro dessa "práxis").
Às tantas, convertem-se ao "new age", a estilos de vida alternativos,
às "espiritualidades" salvíficas. E, por vezes, só assim chegam a
entender derradeiramente que existe uma ligação corpo-mente inalienável, não
integrando, no entanto, a sua "perfeita" condição
"mentalista" (diz, claro, o velho preconceito "materialista");
procuram, quiçá, a resposta no "espírito" - que é, em suma, o próprio
inconsciente, trasladado para níveis especularmente "superiores" e
abstractos, funestamente promovidos pela semiologia esotérica -, e não tanto no
"inconsciente", preferem os terapeutas das "vidas passadas"
(que, não obstante, poderão operar metaforicamente a um nível inconsciente,
representando as "vidas passadas" processos "ancilares" da
vida coetânea) aos psicanalistas mais sistemáticos, as proposições mágicas às
psicológicas "stricto sensu", a meditação transcendental à busca
verdadeiramente íntima (egóica, claro, e, por isso mesmo, repudiada pela mesma
espiritualidade que a sabe excrescente). Reconhecem a importância da
"psique", mas de modo controverso, não "psiquificando" a
sua condição, mas antes a "espiritualizando", sem deixarem de prover
a sua causalidade "física"; assim, efectuam uma "fuga para a
frente", não reconhecendo que é a própria problemática depressiva que
explica tanto os sintomas como a busca do "etéreo", dupla defesa,
dupla conversão, do mental ao físico e do mental ao espiritual, e, já agora, do
físico ao espiritual (sendo que a conversão do materialista
"psicodinâmico" poderia ser do espírito ao mental-físico, aqui a
cegueira "psicanalítico-cêntrica" teria uma razão de ser "ideal"
e "paradigmática" semelhante à da cegueira teomaníaca... quiçá, o
paradigma "psicanalítico" corresponda à minha plena ilusão
egocêntrica desindividualizadora, identitária), com o sobrepujar da etapa
"emocional", talvez a mais difícil de ser vivificada integralmente;
não que estes "espirituais" não assegurem a importância do
"auto-conhecimento", mas portam-no para um lugar abstracto, sem que
prevaleça uma verdadeira auto-análise, esta muitas vezes afrontada como
perdulária, errática e aviltante, pois, afinal de contas, o "ego" é
uma ilusão.
Não
é que a coisa fosse necessariamente resolvida no divã, também, e sobretudo, aí
as coisas se eternizam num labirinto de interpretações (tal-qualmente
abstractas e mágicas - mas vivenciadas na carne autobiográfica e onírica do
reconstrutor do terreno (super)egóico -, se bem que, sobrevindo de um
psicanalista, enraizado num contexto de aceitação social e materialista,
poderão ser encaradas de outro modo). O "mal" (socialmente visto
enquanto tal) é profundo e ancilar (possuindo origem na mesma sociedade, a qual
enforma as referências principescas/supergóicas, que julga
"moralmente" o desajuste "culposo" ao contexto), há quem
silencie o sintoma com o anti-depressivo, muitas vezes totalmente rejeitado
pelos proponentes das "alternativas" (que se escusam aos métodos de
um sistema arrostado como condicionador, propagador de "bonifrates"
dessensibilizados), há quem se limite a adoptar a existência de uma doença que,
supostamente, não possui cura e merece tratamento especial, incluindo os
direitos estatais, tudo serve para evitar a conversão genuína da problemática
ao abstracto, ao concreto dos sentimentos (que, não obstante, de pouco serve,
visto que esse "concreto" é igualmente ilusório e impermanente). No
caso do fibromiálgico, procura-se a aprovação social que o
"espiritual" comuta num suposto estilo de vida
"sustentável" e harmonioso. Iludidos estão ambos, mesmo o que parece
"mentalizar" e, na verdade, transfigura a "espiritualidade"
numa "religião". E iludidos se devem manter, como todos nós, pois
prodigalizar a consciência é arriscar a implosão (por outro lado, aqueles
processos poderão facilitar uma futura consciencialização); interessa,
sobretudo, segurar a compensação, o que, demais a mais, nos leva a questionar o
relevo de um texto que pretende "desiludir"... é que este foi escrito
pelo "ego" e não pela "empatia", interessou ao autor
arrumar seu próprio equilíbrio, sua intrínseca alucinação, ao invés do alheio.
Se, para o paciente, o registo "espiritual" constitui o paradigma
responsivo, de nada serve "irrealizá-lo", pois que o
"ideal" é, para ele, tão "real" quanto é, para outros, o
"positivo". O seu "ideal" é a sua linguagem,
"espiritual" ou "psicodinâmica", tanto faz, com doença,
espírito, medicamento ou holisticidade, persiste, desde sempre, o
"ilusório", a fantasia com que podemos alimentar o futuro, de bengala
na mão da (in)solução. Algumas soluções parecem mais certas e delongáveis, mas
que diferença fará este "longo prazo" à vista de uma eternidade de
transformismo polarizado? Achamos que somos especiais por concebermos o método
dialéctico, porque o dominamos a algum nível, mas não somos categoricamente
distintos do que voga na efeméride ou em "paraíso artificial", todos
em seu plano ou amplitude, interessa, particularmente, fazer medrar o
sofrimento, o resto é, mais uma vez, caso de aquiescência social, facécia de
uma visão preconcebida do tempo e da virtude.
(* in «A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada», Edições Mahatma, 2017)
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