domingo, fevereiro 08, 2009

A reeducação postural segundo Mézières e suas implicações para a fisioterapia: a “revolução na ginástica ortopédica”

O presente post consiste num artigo que nunca cheguei a publicar ou a colocar on-line... até agora. Os aspectos iniciais já são um tanto conhecidos, mas os aspectos do "desenvolvimento" são particularmente importantes para os fisioterapeutas em geral. Para mais pormenores consultar o livro.
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Resumo

O presente artigo trata da história dos métodos relacionados com a globalidade miofascial, em particular da Reeducação Postural ou da “teoria das Cadeias musculares”. O método Mézières constitui o método paradigmático da Reeducação Postural, no sentido em que foi este que, a partir do “princípio de observação” de 1947, institui o conceito de “cadeia muscular”. Tanto este como os métodos ditos neo-mézièristas – ‘Antiginástica’ de Bertherat, ‘Cadeias musculares e articulares’ de Godelieve Denys-Struyf, ‘Morfoanálise’ de Peyrot, ‘Reeducação Postural Global’ de Souchard, ‘Cadeias musculares’ de Busquet e ‘Reconstrução Postural’ de Nisand – preconizam que as deformidades articulares, assim como a maioria das perturbações reumatológicas – são provenientes de excessos musculares, seja na perspectiva da retracção das estruturas miofasciais, seja na perspectiva da desinibição tónica das estruturas neuromusculares. Os métodos da linha de Mézières, se tidos em conta na sua verdadeira completude teorética e paradigmática, comportam uma nova filosofia de intervenção fisioterapêutica, mais centrada no alongamento e menos centrada nas técnicas de “reforço muscular”.

Introdução

A história da Globalidade em saúde remete para a integralidade da história do tratamento das disfunções do corpo humano. Mas, num domínio que podemos designar de músculo-esquelético, o início do trabalho da Globalidade remete essencialmente para os finais do século XIX, nomeadamente para as mãos dos osteopatas anglo-saxónicos. Referimo-nos, essencialmente, a um tipo de globalidade dita miofascial, respeitante à visão holística das estruturas músculo-esqueléticas que, em termos teoréticos, dão forma ao corpo. Mais tarde, esta forma irá ser vista enquanto Postura ou Estrutura, sendo que duas grandes escolas ditas de “Reeducação Postural” vão se desenvolver no contexto da Europa ocidental: a escola anglo-saxónica, referente ao método da “Integração estrutural” ou Rolfing (Rolf, 1977) e a “escola francesa” iniciada pela descoberta revolucionária de Françoise Mézières, no ano de 1947.
A revolução mézièrista, prosseguida pela edificação de uma série de métodos ditos neo-mézièristas, irá dar origem ao conceito de “cadeia muscular”, e a uma teoria que pode ser apelidada de “teoria das Cadeias musculares”. Esta representa uma mudança significativa na forma fisioterapêutica de tratar os doentes, constituindo uma nova forma de perspectivar o conjunto das disfunções neuromusculares e uma grande parte das doenças ditas “reumáticas”.
Iniciaremos o nosso artigo pela explanação do “princípio de observação” de Françoise Mézières de 1947, descrito no seu “Révolution en Gymnastique Orthopédique” (publicado em 1949), o qual viria a dar origem a um novo método de “intervenção postural”, diferente das ginásticas estáticas clássicas (aliás, criticadas por Mézières – 1947 – no seu “La Gymnastique Statique”). Continuaremos, referindo o desenvolvimento histórico do método e sua “desconstrução” nos diferentes métodos neo-mézièristas, e acabaremos o artigo discutindo o conjunto das implicações que a “Reeducação Postural” (entendida, sobretudo, como o “método de linha Mézières”) ou a “teoria das Cadeias musculares” possui para o campo de intervenção em Fisioterapia, independentemente da área de adequação.

Método Mézières e princípio de observação

Não querendo propriamente celebrar o princípio científico clássico de Francis Bacon, baseado no empirismo observacional, e continuado nos tempos do positivismo e do neopositivismo, o método Mézières é, de facto, um método baseado num “princípio de observação”, que reitera um conjunto de “compensações” existentes nos meandros de um corpo que é um “todo miofascial”. Na realidade, apesar de existir já a ciência dedutiva de Karl Popper, Françoise Mézières vai conceber uma série de postulados – ditos científicos – a partir da sua “observação preliminar” de 1947.
É bem conhecida a observação iniciática de Mézières de um paciente com uma cifose muito abrangente, que envolvia a totalidade da coluna. Todas as tentativas de reduzir o padrão postural existente levavam a que o corpo do paciente “compensasse” através de outras “deformações”.
Tal princípio de observação iria ser generalizado a todos os casos, o que foi claramente influenciado pelo facto de este “princípio” ser encontrado em todas as “condições experimentais” semelhantes, sendo que Mézières iria perceber, sobretudo, que (a) a musculatura posterior comporta-se como um só músculo e (b) esta musculatura é sempre forte de mais, curta de mais, potente de mais.
A partir do seu “princípio observacional”, Mézières iria chegar a um conjunto de conclusões, encontráveis na obra “L’homéopathie française” (1972): (1) «Il n’est que des lordoses.»: a cifose (e a escoliose) não é possível sem uma acentuação das lordoses e é vista como a sua consequência. (2) «La lordose est mobile et coulisse sur le corps tel un anneau sur une tringle à rideau.» (3) «Les membres sont solidaires du tronc et le creux poplité constitue, en dehors du rachis, une troisième concavité postérieure liée aux lordoses rachidiennes.» (4) «Tout est compensation lordotique.» (5) «La lordose s’accompagne toujours de la rotation interne des membres.» (6) «La morphologie thoracique est conditionnée par certains mouvements de la tête et des membres supérieurs.» (7) «La lordose coexiste toujours avec le blocage du diaphragme en inspiration.».
A partir destas conclusões, um conjunto de leis iria ser exposto mais tarde na obra “Originalité de la méthode Mézières” (1984): Primeira lei: «Les nombreux muscles postérieurs se comportent comme un seul et même muscle (Une chaîne musculaire se définira comme étant un ensemble de muscles polyarticulaires et de même direction, qui se succèdent en s’enjambant comme les tuiles d’u toit).»; Segunda lei: «Les muscles des chaînes sont trop toniques et trop courts (il n’y a donc rien qu’il faille renforcer).»; Terceira lei: «Toute action localisée, aussi bien élongation que raccourcissement, provoque instantanément le raccourcissement de l’ensemble du système.»; Quarta lei: «Toute opposition à ce raccourcissement provoque instantanément des latérofléxions et des rotations du rachis et des membres (lógica das compensações).»; Quinta lei: «La rotation des membres due à l’hypertonie des chaînes s’effectue toujours en dedans.»; Sexta lei: «Toute élongation, détorsion, douleur, tout effort implique instantanément le blocage respiratoire en inspiration.».
Em termos gerais, podemos dizer que Françoise Mézières iria conceber a totalidade das deformidades adquiridas (mais funcionais/reversíveis – conhecidas por paramorfismos – ou mais estruturadas/irreversíveis – conhecidas por dismorfias – Tribastone, 2001) enquanto resultado de “excessos musculares”, inquinando a ideia clássica – ainda dominante – de que as deformidades posturais têm origem na fraqueza da musculatura postural.
Não obstante a existência de um conjunto de postulados, ditos axiomáticos (anteriormente citados), a teoria de Françoise Mézières viria a aproximar-se do carácter de “lei”, a partir do momento em que as suas ideias foram confrontadas com a divisão – tacitamente científica (até porque confirmada pelos estudos provenientes da electromiografia) – da musculatura humana em músculos tónicos/posturais/estáticos e em músculos fásicos/dinâmicos (Burke, 1973; Gollnick e Matoba, 1984; Gurfinkel et al., 2006; McLean, 2005; Minamoto, 2005). A musculatura referida por Françoise Mézières como a fonte de uma “cadeia muscular posterior” dominante seria, portanto a musculatura postural, estruturalmente profunda e multi-articular, funcionalmente estática e de controlo neurológico central inconsciente, concebida sobretudo para o trabalho de “sustentação anti-gravítica”.
Para além da “cadeia posterior”, Mézières viria a conceber um outro conjunto de cadeias musculares, sinérgicas à posterior.
Os diversos métodos de linha mézièrista viriam a ter, cada um, a sua própria forma de perspectivar a dinâmica estrutural e funcional das cadeias musculares.
Quanto à intervenção, os princípios de tratamento de Mézières (deslordose, desrotação e desbloqueio diafragmático com expiração) vão também ser mantidos no essencial nos diversos métodos neo-mézièristas.

Métodos neo-mézièristas

A partir do momento em que Françoise Mézières inscreveu o seu método no Institut National de Propriété Industrielle, os diversos discípulos de Mézières foram forçados a seguir o seu próprio caminho. Assim como o método Mézières se manteve mais parecido com o original pela mão de certas associações como a AMIK (Association Mézièriste Internationale de Kinésithérapie), outros métodos, baseados no original viriam a ter origem:
a) ‘Antiginástica’ de Bertherat (1976) – mais do que um método, é um conceito, relacionado com as implicações (revolucionárias) que o método Mézières possui para a prática desportiva. Thérèse Bertherat é a grande responsável pela fama mundial do método Mézières. Mais tarde, certos métodos como o “Corpo e Consciência” de Courchinoux viriam a reproduzir um pouco a filosofia da antiginástica.
b) ‘Cadeias Musculares e Articulares’ (ou ‘método GDS’) de Godelieve Denys-Struyf (1995) – Denys-Struyf, fisioterapeuta e retratista, concebeu um conjunto de posturas designativas de estados “psico-físicos” e personalísticos específicos e idiossincráticos.
c) ‘Morfoanálise’ de Peyrot – à semelhança do anterior, é um método também de dimensão claramente “psicofísica”, demonstrando a importância que o método Mézières tem para a “psicossomática”.
d) ‘Reeducação Postural Global’ de Souchard (1981) – talvez o método mais parecido com o original, o RPG, acusado por muitos autores de constituir um plágio de Mézières, diferencia-se por preferir posturas mais activas (em número de oito), utilizadas segundo o tipo de retracção global dominante (posterior ou anterior). Ph-E Souchard contribui, em muito, para tornar mais científicos os princípios do método Mézières, mas o facto de negligenciar quase completamente o método de onde foi beber a “inspiração” é demonstrativo de uma certa falta de honestidade intelectual.
e) ‘Cadeias musculares’ de Busquet (1996) – grande conhecedor da anatomia humana, Leopold Busquet concebe um conjunto de várias cadeias dinâmicas (cadeias de flexão e extensão, cadeias cruzadas), para além de uma cadeia estática posterior. É o mais dinâmico dos métodos neo-mézièristas.
f) ‘Reconstrução Postural’ de Michael Nisand (2004, 2006) – é o mais científico dos métodos, para além de ser o mais fiel ao original. Criado nos anos 90, logo após a morte de Françoise Mézières, é o mais “neurológico” dos métodos, pois, enquanto, por exemplo, o RPG vai seguir um trajecto mais “miofascial”, a ‘Reconstrução Postural’ vai valorizar todas as modalidades de trabalho postural que facilitem a “inibição tónica” da musculatura postural. Em termos metodológicos, apesar de não existirem referências de similitude histórica, é possível encontrar semelhanças entre a ‘Reconstrução Postural’ e métodos de intervenção neurológica como o conceito de Bobath.
Todos os métodos neo-mézièristas dão grande importância às posturas de inibição dos excessos musculares, incluindo aqueles – relacionados com os anteriores – que propõem a “inclusão do analítico dentro da globalidade” como o que advoga o Bienfait (1995) da “Reeducação estática funcional”. Em geral, o grande contributo dos métodos da linha de Mézières constitui a visão indissolúvel de que a patologia músculo-esquelética adquirida resulta, sobretudo, da existência de músculos de acção desinibida. Tal concepção acarreta a “mudança de paradigma”, numa terminologia claramente segundo o protótipo de Thomas Kuhn, visto que a “fisioterapia clássica” utiliza os métodos de “reforço muscular” de forma bastante corrente.

Implicações da revolução mézièrista para a Fisioterapia

Apesar de certos autores, como Bienfait (1995), terem uma visão mais limitativa do contributo das posturas de alongamento global para o tratamento de dismorfias ditas estruturadas (que são, no fundo, para o autor, aquelas que acarretam modificações ao nível da fáscia), não podemos deixar de louvar o espírito mézièrista, segundo o qual as deformidades e a maioria das perturbações de índole reumatológica não constituem uma fatalidade (Nisand, 2006).
A visão dessas mesmas perturbações, segundo o espírito mézièrista, é bastante diferente daquela cedida pelas perspectivas mais analíticas da fisioterapia. Enquanto método da Globalidade, a Reeducação Postural segundo Mézières preconiza a intervenção com vista na causa das perturbações, e não nos efeitos ou sintomas das problemáticas nosológicas.
Mas, para além de perorar a importância de uma intervenção necessariamente holística, lenta e progressiva, muito diferente daquilo que a maioria dos contextos de intervenção fisioterapêutica permite em termos de tratamento, a teoria das Cadeias musculares possui outro género de implicações, tanto de carácter teorético/conceptual como de carácter pragmático.
A fisioterapia, um pouco à imagem da Educação Física e do fitness, está demasiadamente centrada no exercício físico com vista ao fortalecimento muscular. Ora, o que os métodos neo-mézièristas vêm dizer é que tal “reforço muscular” pode ser visto como pejorativo na maioria das condições reumatológicas. Se os fisioterapeutas que trabalham em Condições neurológicas já entenderam há muito que o reforço muscular pode acarretar compensações e deformações num corpo comummente marcado por estados de hipertonia, é preciso que também os terapeutas de condições músculo-esqueléticas entendam que a hipertonia está também presente na maioria dos doentes com perturbações inflamatórias e também degenerativas. Por outro lado, a utilização de exercícios de mobilidade articular em articulações marcadas por uma postura “viciada” poderá igualmente constituir um recurso terapêutico pouco inteligente.
Os mézièristas têm a dizer à maioria dos fisioterapeutas que deve dar-se importância ao trabalho de alongamento global das estruturas miofasciais, feito antes de qualquer outra modalidade, a frio, prolongada e progressivamente.
O trabalho dos fisioterapeutas, principalmente em condições reumatológicas e neurológicas, poderia e deveria incluir o trabalho de reeducação postural, segundo o qual, antes de qualquer tentativa de reforço ou mesmo de mobilização, seria utilizado o alongamento, o qual permite a obtenção de um pré-alinhamento articular. Por exemplo, a mobilização de uma articulação com artrose será muito mais penosa se for realizada sem realinhamento articular prévio, pois a mobilidade estará a ser induzida numa articulação de “postura” viciosa. E o mesmo pode ser aplicado a todo o trabalho de mobilidade realizado no caso específico das perturbações da coluna vertebral.
O que se sugere é que, mesmo tendo em conta o pouco tempo disponível de tantos terapeutas, se realize um trabalho por “blocos”, de acordo com a área a tratar envolvida: trata-se o bloco superior das cadeias musculares, incluindo o alongamento cervical e o trabalho respiratório, no caso de se estar a tratar o quadrante superior; trata-se o bloco inferior das cadeias musculares, incluindo o alongamento global dos membros inferiores, no caso de se tratar da intervenção na coluna lombar ou segmentos inferiores.
Logicamente, a intervenção verdadeiramente global, incluindo o tratamento individualizado com vista a compreender as causas das perturbações, mantêm-se enquanto “utopia” a obter, a qual será alcançada de diferentes maneiras pela vontade não demérita de cada terapeuta.

Referências bibliográficas

Bertherat, T. (1976). Le corps a ses raisons. Paris: Éditions du Seuil.
Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos. Fisiologia, patologia e tratamento fisioterápico (3ª edição). São Paulo: Summus editorial.
Burke, J.F. (1973). Electrode placement and muscle action potentials amplitudes. Physical Therapy, 53(2): 127-131.
Busquet, L. (1996). Les chaînes musculaires. Kine Plus 57: 19-25.
Denys-Struyf, G. (1995). Les chaînes musculaires et articulaires: la méthode G.D.S. Paris: Maloine.
Gollnick, P.D., & Matoba, H. (1984). The muscle fiber composition of skeletal muscle as a predictor of athletic success. An overview. American Journal of Sports Medicine, 12(3): 212-217.
Gurfinkel, V. et al. (2006). Postural muscle tone in the body axis of healthy humans. J Neurophysiol, 96(5): 2678-2687.
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Mézières, F. (1947). La gymnastique statique. Paris: Vuibert.
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Minamoto, V. (2005). Classificação e adaptações das fibras musculares: uma revisão. Fisioterapia e Pesquisa, 12 (3): 50-55.
Nisand, M. (2004). La Reconstruction Posturale®, déviance ou évolution? 11ème Symposium Roman de Physiothérapie les 5 et 6 novembre 2004 : "Les Chaînes Déchaînées" Lausanne-Suisse. Mains Libres, la revue Romande de Physiothérapie.
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