sábado, fevereiro 07, 2009

Sobre a crise do Conceito em Fisioterapia

Neste mesmo blog tenho afirmado, muitas vezes, que há dois grandes “movimentos” em termos de metodologia fisioterapêutica: os métodos convencionais de índole científica e os métodos paradigmáticos de índole teorética. A Reeducação Postural pertence, regra geral, ao segundo conjunto. Estes mesmos métodos “paradigmáticos” visam mais a Teoria e o Postulado que diversos e múltiplos estudos científicos, e, em termos de estudo objectal, utilizam mais os métodos ideográficos de base descritiva do que os métodos nomotéticos propriamente ditos.
Várias grandes teorias da compreensão do mundo, como o marxismo e a psicanálise, toldaram-se em função de um método observacional puramente descritivo. O que é o mesmo que dizer que certas “ciências” (e compreendamos aqui por “ciência” o lado pós-modernista da mesma) se fizeram em torno de um método que não é convencionalmente científico. O método Mézières, e os diversos métodos neo-mézièristas de Reeducação Postural, à semelhança da maioria dos grandes paradigmas de intervenção neurológica e até de vários métodos de Terapia manual, sofre daquele mal que Karl Popper descreveria como “princípio Baconiano”, pois é verdade que estes vários métodos de Fisioterapia consubstanciam-se por uma Teoria ou Conceito formulado em termos descritivos, não puramente científicos ou “falsificáveis” (Popper), com base num empirismo – não propriamente no sentido dado por Francis Bacon ou Wittgenstein e outros neopositivistas – algo bacoco e claramente redutor.
Muitos grandes métodos de Fisioterapia estão formulados segundo uma esquemática fortemente Conceptual e Teórica, fortalecida por um “método” alimentado à custa de “estudos de caso” (e não estou a esquecer que o conceito de “estudo de caso” é diferente do conceito de “estudo experimental de caso único”). Vejamos, por exemplo, o método Bobath, método fortemente inflaccionado no mundo fisioterapêutico (daí utilizar este exemplo). Existem múltiplos livros sofre o método. Existem milhares de registos de doentes tratados com o método. Mas, relativamente a estudos verdadeiramente experimentais relacionados com o método, só existem alguns muito limitativos ou com amostras muito reduzidas. Claro, e tal é formulado como principal razão das presentes limitações científicas, que é difícil estudar cientificamente um assunto tão complexo quanto a Globalidade do Doente neurológico ou da Postura humana. E de facto é difícil isolar tantas variáveis e ter em conta uma tão grande prolixidade de factores a controlar. Daqui temos que a divisão entre estudos ideográficos (adaptados a métodos fortemente teoréticos) e estudos nomotéticos (adaptados a métodos mais científicos – no sentido clássico do termo – e convencionais) acaba por manter-se tão aporética quanto já se mantinha. Ou seja, continuamos, em pleno século XXI, a ter em conta uma evolução de ciência particularmente parecida com a que existia na segunda metade do século XX. Por outro lado, o próprio conceito de Ciência tem sofrido alterações, e o novo movimento, tão vociferado quanto odiado, do pós-modernismo aceita como “científico” coisas que o “cientista convencional”, seja positivista, seja popperiano, jamais aceitaria. Num post recente referi a importância de se ler a obra “Um discurso sobre as ciências” de Boaventura de Sousa Santos. É, efectivamente, um manifesto pós-modernista, e este mesmo manifesto pode incluir como Ciência muitas coisas que anteriormente não cabiam no conceito.
Mas a tradição ainda é o que era. Aos que ainda me lêem – muitos de vocês são estudantes de Fisioterapia a preparar monografia – convido a deixar comentário quem tenha conseguido fazer, enquanto monografia de licenciatura, um estudo de caso que seja de natureza descritiva e não experimental. Duvido que alguém o consiga, a não ser que tenha algum “truque na manga”. Na realidade, os professores dos cursos de Fisioterapia – cursos esses organizados segundo uma esquemática crescentemente científica, no original sentido do termo – ainda se encontram agarrados a um conceito “clássico” de ciência. Aceitam-se como estudos monográficos estudos epidemiológicos, estudos experimentais ou até quasi-experimentais, e, em última análise, aceitam-se estudos experimentais de sujeito único. Mas estudos de natureza descritiva, o mesmo género de estudos que permitiu o nascimento de grandes métodos do conhecimento da Realidade, raramente são aceites.
Mas não são os métodos Bobath e Mézières grandes métodos de conhecimento da natureza do funcionamento corporal humano? E não são eles métodos formulados em torno de “observações”?... Bem, o que é certo é que, na realidade, pessoalmente tenho dúvidas relativamente a estes assuntos. Se, por um lado, o método Mézières possui “leis”, sempre verificáveis nas mesmas condições observacionais, e é substanciado por meras “observações”, por outro lado, não podemos deixar de “ouvir” os argumentos de Popper de que um método meramente observacional não é verdadeiramente científico pois não é falsificável. E se já não tenho dúvidas de que a “ciência positiva” dos séculos passados só é concebível actualmente em termos de uma “ciência de Popper”, questiono-me se o Pós-modernismo não é aceitável “para alguns casos”.
Encontro-me, portanto, dividido entre uma ciência mais ou menos clássica – a, supostamente, “verdadeira” ciência – e uma ciência observacional mais subjectivista. Encontro-me eu e outros teóricos das ciências sociais e humanas. E é este tipo de “escolha” a que me referia em texto anterior. Pois, nas nossas vidas de fisioterapeutas, se escolhemos gerir-nos por um método Paradigmático, por exemplo se escolhemos trabalhar “segundo o conceito de Bobath”, acabamos por ter de “negar” um pouco a Ciência (em termos do conceito tradicional) para abraçar um Conceito, o qual só é “científico” se incluirmos como “tal” a forma pós-modernista de ver a coisa.
Os meus leitores comummente têm confundido um pouco as coisas. É realmente impossível viver sem “Método”, mas é possível viver sem o conceito tradicional de “Ciência”. A Fisioterapia carece realmente de estudos científicos – têm-me dito muitos leitores – pergunto eu: que género de “estudos científicos”? Ciência como a fazia Copérnico ou Galileu é impossível para a Fisioterapia, ou seja, para os fisioterapeutas é estulta qualquer intenção de construir uma ciência de mote indutivo. Daí que o conhecimento da “ciência dedutiva” de Popper seja um pré-requisito para a construção da Ciência em Fisioterapia. Arrisco a minha vida em como a maioria dos professores de metodologia científica dos cursos de Fisioterapia (e não só) desconhecem o nome Karl Popper.
Ora, acontece que este nome – que eu tanto leio e amo – é o principal inimigo do método da Reeducação Postural. Como é possível – na minha cabeça – conciliar Popper com a Reeducação Postural ou a Psicanálise? Nem eu sei. Mas também não nos interessa isso. Interessa sim perceber por que é que Karl Popper é incompatível com a Reeducação Postural. Ou seja, por que é que Karl Popper jamais aceitaria o método da Reeducação Postural como método verdadeiramente científico. Pela simples razão de que um método como a Reeducação Postural – fortemente subjectivo – não é falsificável, ou seja, nos termos popperianos, não define as condições da sua própria refutabilidade. Vejamos um exemplo: segundo os mézièristas, uma escoliose – dita idiopática – é criada por um excesso muscular da musculatura paravertebral ou de outra zona da Cadeia posterior. Então, seria importante os mézièristas dizerem por exemplo que num indivíduo totalmente flexível não poderá existir escoliose. Mas, acontece que, sendo achado um indivíduo escoliótico com uma grande flexibilidade de todas as cadeias musculares, o mézièrista pode sempre argumentar com a questão da “tonicidade muscular” (“É muito flexível, mas os músculos apresentam grande resistência à manipulação”), ou pode argumentar que o indivíduo tem um outro género de escoliose. Ora, acontece que, perante uma ciência não falsificável, que para Popper não era ciência, “tudo é possível”, tudo tem explicação. Se existe, por exemplo, uma hiperlordose lombar num determinado indivíduo, dizemos que há certos músculos lombares ou a nível do psoas que estão retraídos. Se não estão retraídos é porque são muito “tónicos”. Se não são muito tónicos é porque é a própria constituição fascial que leva à deformidade. E podíamos continuar eternamente... até que, eventualmente, poderíamos chegar a um ponto em que já não havia argumento possível... e aí a tendência é para “ignorar” os casos que, segundo a linguagem de Thomas Kuhn, “não se enquadram no nosso paradigma”.
Bem... porquê, afinal de contas, toda esta conversa? Por que razão estou a apresentar as limitações “científicas” do método que eu próprio abracei, o método Mézières?... Para já, estou a tentar definir melhor os conteúdos dos meus textos anteriores, e aquilo que designei como sendo o “princípio do prazer” vs. “princípio da realidade”. Depois, estou a apresentar a crítica a Mézières e aos métodos Teoréticos, como ponto de partida para duas coisas: 1º tentar estudar cientificamente, por estudos verdadeiramente científicos-nomotéticos a “ciência mézièrista”, coisa que é da responsabilidade dos estudantes de Fisioterapia, desde a licenciatura ao doutoramento; 2º integrar o conceito pós-modernista de ciência. Este 2º ponto é de importância vital. Será que Popper e o pós-modernismo são compatíveis? À partida é difícil serem-no. Vejamos, de novo, o método Mézières. Eu posso, eventualmente, afirmar que a cadeia posterior é muito “tónica” em 100% dos indivíduos. O que vai ao encontro dos estudos electromiográficos recentemente realizados. Mas, se Popper estivesse aqui, diria: “O facto de até agora só se terem verificado indivíduos com rigidez das cadeias musculares tónicas não invalida o aparecimento de um indivíduo, algures, que negue tal evidência”. Mas, entretanto, a nossa “ciência mézièrista” já está a funcionar segundo o paradigma da falsificabilidade. Se Popper dizia que uma verdadeira ciência tem de assumir as condições de refutabilidade, ou seja, se uma ciência tem de apresentar as condições de não verificabilidade, então, nós, os mézièristas, podemos sempre dizer que “a cadeia muscular posterior não pode apresentar, em condições algumas, um zero electromiográfico”. Ora, isto tem grandes implicações. Isto significa que em certos doentes neurológicos é possível achar excepções à nossa “regra”. E nesses doentes não podem existir “deformidades” do mesmo género das que existem na quase totalidade das pessoas.
Podíamos continuar eternamente. Este é realmente um ponto importante: definir as condições de “falsificabilidade”, e realizar estudos de natureza nomotética... de modo a fazer com que o “método Mézières” se preencha de um estatuto classicamente científico. Recentemente têm aparecido alguns estudos relevantes no campo da Reeducação Postural Global. Mas a maioria desses estudos não tem sido publicada em revistas indexadas à Medline. Mas isto é já uma outra história...
Voltemos a Popper e tentemos perceber se é possível construir um paradigma científico sem Karl Popper. Há realmente matérias demasiadamente complexas para que possam definir-se condições de refutabilidade. A Psicanálise, enquanto terreno mais subjectivo que a Fisioterapia, constitui uma Teoria do conhecimento humano fundamental. Mas possui também muito “delírio interpretativo”. Pois, como dizia Popper, se um indivíduo salva um outro que se está a afogar há determinadas razões do Inconsciente, assim como outras razões do mesmo mote podem ser apresentadas para o caso de o indivíduo não salvar o que se afoga ou, então, ficar ambivalente. Em todas as situações, a psicanálise arranjaria uma “razão de ser”. Mas eis que eu afirmo que a Fisioterapia não é Psicanálise. E que, sendo bastante mais objectiva, a Fisioterapia consegue sempre definir condições de refutabilidade científica. Convido qualquer um a apresentar exemplos que contrariem o que digo agora. Mas, na realidade, até um método como o “Conceito Bobath” afirma que certas coisas não são possíveis... e, de facto, em certas condições, certas coisas não são realmente possíveis. Por outro lado, vejamos o seguinte exemplo: o método Bobath afirma que o treino de força aumenta a espasticidade. Mas há vários estudos científicos que demonstram que o treino de força não aumentou o nível de hipertonia espástica. O que significa que certos estudos científicos infirmam certos postulados do método Bobath. Mas, neste caso particular, estamos a fazer algo diferente e não estamos a apresentar uma condição de falsificabilidade. Podíamos é dizer qualquer coisa como: no doente espástico, o treino de força jamais resultará numa diminuição da espasticidade. Mas estas coisas são realmente complexas. Pois, na realidade, há excepções para quase tudo... por exemplo, é possível existir espasticidade sem “reacções associadas” ou sem “clónus”, e nem sempre a relação entre elas depende da “intensidade” da espasticidade. Claro que podemos sempre dizer que “no doente espástico, nunca se verificará um aumento da mobilidade com o aumento da velocidade do movimento”, o que significa que se encontrarmos algum doente com diagnóstico de espasticidade que apresente diminuição da resistência muscular com aumento da velocidade do movimento, então, encontrámos uma “excepção”. Mas, na medicina e nas ciências da saúde em geral, este problema resolve-se “modificando o diagnóstico”; ou seja, bastaria tirar o doente de um “grupo” ou “designação” patológica.
Temo que toda esta “conversa” seja interminável, na sua natureza. Eventualmente podíamos até cair numa aporia. Mas, em última análise, o que pretendo dizer com tudo isto é que o conhecimento da Epistemologia é regra fundamental à prossecução de uma ciência de qualidade. Pergunto-me: que género de monografias ou investigações pode ser feito pelos nossos fisioterapeutas investigadores, os mesmos que, apesar de muito saberem de metodologia, pouco sabem de Epistemologia? E a mesma pergunta pode ser generalizada ao campo de ciências mais “exactas”. Conheço físicos que tudo ou quase tudo sabem sobre a metodologia das suas investigações, mas desconhecem o conceito de refutabilidade. E, na realidade, o conhecimento de certos pré-requisitos epistemológicos é fundamental para a construção de uma ciência com menos erros. Por exemplo, evitar-se-ia a tendência para tudo querer justificar!... Tenho visto muitos RPGistas a meterem à força certos doentes no seu “paradigma”, quando, havendo excepções próprias do “campo da saúde”, a lógica – pouco popperiana – dos paradigmas tem de ser tida em conta.
Por último quero afirmar que, sendo a discussão epistemológica fundamental à construção de uma boa Fisioterapia científica e metodológica (incluindo toda a parte prática), toda esta teorização é fundamental ao campo de conhecimento dos fisioterapeutas. Ou seja, a ideia por vários fisioterapeutas partilhada, de que os estudos e as leituras dos fisioterapeutas devem ser essencialmente pragmáticos, e que a Filosofia pouco interessa à Fisioterapia, é simplesmente ridícula. Pois, já como diria João Lobo Antunes, “é diferente a medicina praticada por um médico culto”... ou “é diferente a Fisioterapia praticada por um fisioterapeuta com capacidade para reflectir”. Não aceito, portanto, as críticas inerentes ao facto de o meu livro ter muita Teoria ou muitos termos inacessíveis. Não aceito também que o meu livro devesse adaptar-se à realidade dos fisioterapeutas. Se os fisioterapeutas não entendem, por exemplo, metade do que escrevi neste post, é porque possuem certas limitações teoréticas que têm de ultrapassar. Os fisioterapeutas é que têm de adaptar-se às fontes de cultura teorética. Essa ideia de que “os fisioterapeutas são essencialmente práticos e que livros muito conceptuais – como o meu – não se adaptam à sua inteligência” é pura barganha. Os fisioterapeutas que quiserem rever-se numa “classe sem teoria ou Inteligência” façam “bom proveito”, mas não me incluam a mim no grupo. Pois sempre considerei que todas – absolutamente todas – as profissões devem bastar-se de uma carga congruente de material conceptual. Ou seja, os fisioterapeutas precisam de muito mais Filosofia, conceitos, Teoria, etc., que aquilo que estão habituados a ter. Os fisioterapeutas precisam de se afirmar como uma classe “culta” e “reflexiva” – sempre o disse. E já quando falava com muitos fisioterapeutas da “velha guarda” – aqueles que fizeram o curso em tempos não muito dados ao estudo da Epistemologia – dizia que é preciso Intelligentsia na Fisioterapia para nos afirmarmos como bons profissionais. Esta característica da “Intelligentsia” continua a criar uma demarcação grosseira entre médicos e terapeutas, sendo que os primeiros são vistos como intelectuais e nós somos vistos como “trabalhadores manuais”. Tal diferenciação é inaceitável, e, enquanto os fisioterapeutas continuarem a denegar toda a parte teorética e conceptual que perfaz ou deve perfazer a natureza dos nossos métodos e paradigmas, continuaremos a perder a batalha da afirmação contra outros profissionais de saúde.

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