Num plano inicial,
exclusivo de minuciosidades técnicas relativas aos dados provenientes da
neuropsicologia cognitiva, não é possível conceber – malgrado o desejo de
muitos partidários de “espiritualidades terapêuticas” – uma grande
compatibilidade entre o “corpo psíquico” – expressão que pretendo
representativa daquela parte do psiquismo de que se ocupa o estudo dominante da
Psicologia e da Psicanálise – e a Espiritualidade (tal como é entendida pela
Sabedoria Universal). Tal facto perturba muitas consciências que pretendem
encontrar na “Espiritualidade” uma solução “salvífica” para problemáticas
interiores (ou até mesmo exotéricas), assim como abala certas considerações
relativas ao lugar da Razão no mundo moderno em que vivemos e agimos.
Atendendo à
Hierarquia dos Modos de Conhecimento de Platão (“esquema” que, a meu ver,
decalca com muita precisão a Realidade cognitiva do ser-humano), não podemos
deixar de conceber que o corpo se pretende sobretudo ao nível da Dóxa, um nível de “dignidade ontológica”
inferior ao da Epistéme, o que
pressupõe que o nível a que atuam grande parte das terapêuticas psico-corporais
(incluindo a mais séria Psicanálise) ainda tem pouco a ver com a Racionalidade
(mesmo que, num plano de conhecimento neurobiológico recente, possamos conceber
a proximidade da Racionalidade relativamente ao corpo e ao sentir). Ora, acontece que a Espiritualidade, no sentido que a
antiga Sabedoria Universal sempre lhe atribuiu, é qualquer coisa que se inicia principalmente
no nível mais elevado da Epistéme,
correspondente a um tipo de Razão contemplativa (Noésis) que pressupõe, de algum modo, a superação do “sortilégio
carnal e exotérico”, mesmo que o caminho para esse nível elevado de Consciência
e Liberdade pressuponha uma relação dialética (eventualmente temporária) com a
entidade corpórea. Isto significa, portanto, que o “Espírito” depreende um alto
nível de Racionalidade, superior inclusive ao tipo mais conhecido e “popular”
de racionalidade científica (correspondente ao nível mais baixo de Epistéme, a Diánoia), no qual o mundo tecnológico e capitalista se encontra
flagrantemente imergido.
Isto significa, por
um lado, que a verdadeira Espiritualidade tem pouco a ver com esse mundo
fortemente mercantilizado e mistificado de terapêuticas psico-corporais, as
quais, não obstante o valor holístico revisto na forma sintética como
compreendem a relação corpo-mente, não têm por costume propugnar
suficientemente a entrada no nível mais elevado de Racionalidade, que é
apanágio do encontro “iniciático” (ou pré-iniciático) do homem com o Divino
(mesmo que se suponha que este “Divino” exista dentro do próprio homem e
enquanto sua criação abstrata); podem, por um lado, facilitar o processo de
“sofrimento” e “consciencialização” que é condição necessária ao “crescimento
espiritual” e ao trepar da hierarquia platónica (isto ocorre quando se exerce
uma terapêutica verdadeiramente holística e que, em última análise, permita um
certo tipo de gnose, coisa
vivificável exemplificativamente na meditação), mas o que acontece muitas vezes
é que essas mesmas terapias acabam por servir como meros paliativos e/ou
placebos, que mais rapidamente atuam como ‘fatores’ de “bem-estar” e como
anestesiadores da consciência.
Neste contexto, a
Psicanálise talvez possua um lugar especial nessa capacidade de Gnose necessária ao crescimento
espiritual, mas ainda assim correntemente se verifica que a Terapia
Psicodinâmica tende muitas vezes para o exercício de motivação ao exotérico e
mundano, entendendo aquilo que compreendemos como verdadeira Espiritualidade
como uma mera “racionalização” defensiva, eventualmente “patológica”. Daí que
defenda a Psicanálise se concebida como exercício dialético corpo-mente que não
obste à racionalização, enquanto estratégia eventualmente temporária de acesso
aos níveis mais elevados de racionalidade, mas nunca se concebida como
estratégia de gestão das emoções capaz de eternizar o posicionamento do sujeito
nos níveis mais baixos de “racionalidade”, que o mesmo seria perpetuar o lugar
do ser-humano num “não crescimento” – correspondente , em termos esotéricos, ao
“eterno retorno” carnal do homem nas sucessivas Eras de vivência
(reencarnações) –, numa imutável resistência exotérica de acesso do homem aos
níveis mais próximos do Divino.
Ao propugnar a
gestão dos processos psico-corporais, a Psicanálise pressupõe, de facto, que o
homem se deve manter sempre no seu nível mais Ego-maníaco, adiando
perpetuamente o encontro do Eu com o Não-Eu (com o Todo Universal). E aí
mantém-se a Psicanálise – à semelhança das diversas Terapias Psico-corporais –
numa relação de conluio com a Eticidade egoísta e com um tipo de Liberdade dita
“individualista”, o que, mesmo concebendo o resultante de um qualquer tipo de
Ética relacional ou comportamento (aparentemente) altruísta, jamais poderão ser
elididos o óbvio interesseirismo e o evidente egoísmo dos comportamentos em
questão. Pois que é um facto que, ao nível do Eu, ao nível do corpo, tudo é
Egoísmo, mesmo o comportamento aparentemente mais altruísta. O altruísmo
verdadeiramente desinteressado e desprovido de “ansiedades interiores” só
existe ao nível do Todo Universal, num nível em que as grilhetas do corpo e
daquele “Caos interior necessário para parir uma estrela que dança” de que
falava Nietzsche já tenham sido superados e vencidos. Portanto, a Ética é
necessariamente racional, restando para o campo das emoções a possibilidade de
surgirem emoções positivas e aparentemente éticas (porque socialmente
adaptativas ou meramente bem-vistas), com esta Via (a emocional) a
corresponder, na minha perspetiva, a um caminho tenebroso e pouco confiável
(para além de, como já dissemos, obviamente interesseiro). É, de facto, um
caminho de “prazer”, mas que possui – ali muito por perto – o outro lado da
moeda – o “desprazer”, com isto a significar que, mesmo parecendo o caminho
mais fácil e natural (porque respeitador da natureza instintiva), o mundo do
Corpo constitui uma “escolha” tremendamente obtusa e traiçoeira.
Facilmente se
depreende que este mesmo “caminho do corpo” é naturalmente temporal e
dialético, funcionando numa dinâmica de dualidades, com o equilíbrio mediano
sintético a cuidar-se como “ideal” e desejável (mas muitas vezes inalcançável),
quando o caminho mais “árduo” – o que pretende o escalar da Hierarquia
platónica – pressupõe uma via mais segura – e a única genuinamente ética – de
alcançar a verdadeira Felicidade.
Daqui resulta uma
possibilidade de tipologia das “felicidades”, com as duas referidas – a
“emocional” e a “racional” – a parecerem igualmente promissoras e igualmente
devedoras de Liberdade, quando, na verdade, existe uma décalage monumental entre as duas. No contexto da «Liberdade»,
podemos atender ao facto de que o caminho “psico-corporal” atenta num tipo de
“liberdade” completamente diferente da que se pretende no caminho “racional”,
pois que, na primeira, se pretende uma “liberdade” mais “corpórea”, que
rememora o “bom selvagem” de Rousseau, enquanto que, na segunda, a Liberdade é
feita num caminho progressivo, “para o interior e para cima”. Em ambas se
pretende a libertação face a um conjunto de falsas e castradoras doutrinações
“disciplinadoras” (que, no plano da modernidade dessacralizada/exotérica,
liberal, capitalista, híper-científica e tecnológica, abundam ao ponto de se
assumirem como pura fonte de alienação… de um tipo de alienação que, a meu ver,
provém de uma ação dialética entre o “corpóreo-instintivo” e a razão analítica/Diánoia). Na via “corpórea” pretende-se
a fusão com a natureza. Na via “racional” pretende-se a fusão com o Divino. A
primeira acaba por ser reducionista. A segunda acaba por ser holista. A
primeira resulta numa liberdade regressiva (que, a ser mantida, perpetua ad infinitum os ciclos reencarnativos),
uma pseudoliberdade. A segunda resulta numa liberdade progressiva e verdadeiramente
evolutiva.
É certo que aquilo
que a Psicanálise propõe tem mais a ver com o tipo de liberdade “individual” a
que estamos habituados a apelidar de “liberdade”. Um tipo de liberdade que se
aproxima da perspetiva “liberal”, no sentido tanto filosófico (com plena
representação no Existencialismo, apesar da negação deste das realidades
determinísticas apregoadas pela Psicanálise “diagnóstica”, que, eventualmente,
são moralmente desresponsabilizadoras), quanto económico do termo, e que tendeu
historicamente a antagonizar o tipo de liberdade “coletiva” (semelhável à que
preconizamos) que havia sido (e ainda é) advogado pelo Marxismo. Um tipo de
liberdade que não compreende o outro tipo de liberdade, que depreende a relação
com o Todo, sendo que esta última, na sua relação íntima com a Racionalidade,
poderia até propor o encontro conceptual do Marxismo com a Espiritualidade, não
fosse a distância monumental entre as duas “Estruturas” no ponto de vista do ‘acesso’
à citada Liberdade. É que o Marxismo pretende manter a Liberdade ao nível dos
homens e ao nível da historicidade dialética (é temporal), num plano científico
claramente materialista (apesar de não positivista) e num plano metafísico “determinista”
e materialista (trata-se, de facto, de “trazer o Céu para a Terra”, trazer o
“paraíso” aos homens), enquanto que a Espiritualidade pretende levar os homens
a alcançar o plano do divino e do intemporal (no eterno, perdem-se as
dualidades conflituais, perde-se a dialética), e isto num plano científico já
mais contemplativo (a tal Noésis) e
num plano metafísico inicialmente determinista (nomeadamente, no sentido
individual) e, num momento “final”, libertarista (no sentido do Todo
Universal). Obviamente, a Liberdade no sentido Espiritual tem pouco a ver com a
Liberdade no sentido do Ego. E a plenitude do encontro metanóico (ou seja, para
além da Noésis) tem pouco a ver com o
bem-estar psico-corporal, o tal que muitos procuram nas já citadas terapêuticas
pretensamente espirituais (e que, como já percebemos, de verdadeiramente
Espirituais têm pouco).
Resta falar agora do
que muda (?) em todas estas perspetivas, se tivermos em conta os novos dados da
neurobiologia, segundo os quais existe uma relação íntima entre as estruturas
cerebrais responsáveis pela dita Razão intuitiva e as áreas cerebrais
apelidadas de somato-sensoriais (e que são responsáveis pela receção e análise
de vários dados relativos às sensações corporais e quinestésicas). Ou, dito de
outro modo, será que tudo o que dissemos se torna diferente se pensarmos que a
velha dicotomia Corpo vs. Mente ou
Emoção vs. Razão tende atualmente a
ser atenuada pela evidência neurocientífica que pretende colocar a Consciência
mais elevada na direta dependência das sensações corporais (muito
particularmente as internas) e dos sentimentos (que passam por emoções tornadas
conscientes)? Para mim, a resposta é essencialmente “Não”, pois que a
perspetiva filosófica apresentada mantém-se essencialmente a mesma, porque
devedora de uma projeção fundamental do funcionamento do Homem enquanto
Consciência Universal (ou seja, no plano Existencial, tudo se mantém tão válido
como antes!...). O que não implica que não possamos, de algum modo, conceber
que existe, de facto, um corpo “consciente”, um corpo feito “alma”, um corpo
que tende para o “Espírito”, algo como uma dialética entre o Corpo (Dóxa) e a Razão (Noésis) que exclui a passagem pela Razão analítica (ou Diánoia), traduzível na perceção de um
“Corpo bio-psico-social” que grande parte da Medicina (entre profissões afins)
ainda não reconhece (pois que persiste em ver o corpo segundo uma perspetiva de
racionalismo científico/dianóico, que o reduz a uma “máquina” segmentada, pouco
afoita a uma visão do corpo “Uno” enquanto “metamorfose permanente”), qualquer
coisa que a semiótica entende como “proxémica” e que atesta o lado mais
simbólico (e até ritualístico) de uma Estrutura que aparentemente constituiria
um mero Significante.
Este “Corpo
Espiritual”, devedor de uma relação próxima com a Racionalidade, este Corpo que
“Somos” e não “Temos” (Merleau-Ponty), este “Corpo noético”, este sim, podemos
apregoar, não tanto como um designativo da verdadeira Espiritualidade (porque,
ao nível do Absoluto, não existe tal materialidade concreta, objetiva e individualizada),
mas mais como um passo significante nesse tão longo (mas desejavelmente mais
curto) caminho que empreendemos na busca do Divino em nós, do «EU Total e
Eterno» que já não é ‘Eu’.