Os novos discursos
acerca do papel que o desporto ocupa na sociedade hipermoderna parecem ter o
mérito de atribuir ao Corpo um lugar novo que milénios de pudor lhe haviam
negado. Mas, não obstante uma consciência renovada e otimista relativa ao
mérito da atividade física e/ou desportiva, parece-me que continua a faltar uma
certa atitude sintetizante, uma visão integrada que não obste a ver o corpo na
sua transcendência, no conjunto das suas potencialidades que propendem um Uno
imbatível, pois que se tende a preferir e a exaurir o discurso de um corpo
utilitário, de uma máquina fragmentada e despersonalizada, despedaçada pelo
cinismo de um modelo de vida que reduz as essências a meras categorias
eternamente numeráveis. Perante a visão de um corpo hipermoderno, reduzido a
conjuntos de peças desarticuladas, porque necessariamente catalogáveis e
redutíveis a um preço, na visão deste corpo que se ausenta, porque se pretende
fazer dele mercadoria ou indústria, na perspetiva de um corpo clínico
violentado por uma medicina materialista que mantém o conluio com o capitalismo
iniciado há mais de dois séculos, prefiro infinitamente mais a visão de uma
corporeidade personalizada, de uma motricidade que se agarra teimosamente ao
primor de um sentido, duma práxis que não se converta em mera competitividade
predatória.
É certo que um
discurso filosófico abarcante da visão de uma Motricidade Humana capaz de
prescrever uma corporeidade com um novo sentido do Todo, num Homem melhorado e
evoluído em que a perspetiva apelidadamente cartesiana de um corpo desagarrado
da alma teria sido derradeiramente ultrapassada, teve já origem há umas tantas
décadas, um pouco em paralelo com o recrudescer do discurso das neurociências
que têm vindo a dar ao corpo um papel radical na construção da Consciência e da
Razão. Mas também é certo que esse discurso “monista” não conseguiu ainda
singrar verdadeiramente, antes tem sido traiçoeiramente instrumentalizado para
favorecer o papel imagético de um corpo coisificado e de uma atividade física e
desportiva elevada à ditadura de um objeto tão só económico.
Tal
instrumentalização capitalista é bem visível na forma como o desporto tende
ainda a ser conduzido nas escolas e até em muitos ginásios, sendo
inclusivamente possível estender esta visão à prática ainda obsidiante de uma
Medicina (e também Enfermagem e Fisioterapia) obcecada pelo cumprimento de um
modelo de intervenção que reduz o corpo à imagem de uma máquina desmembrada.
De certo modo, até
os grandes problemas relacionados com a desmotivação na prática desportiva se
prendem muito com o facto de o desporto (e a atividade física em geral) não ter
sido muitas vezes transformado numa devida e desejada extensão do Eu, pois que
se pretende manter a descontinuidade entre a “forma” e o “espírito”, pois que o
novo discurso filosófico (e cognitivo) persiste em não ser adequadamente
entendido e conformado, pois que a sociedade hipermoderna não facilita qualquer
visão de um corpo integrado, sentido, vivenciado, tornado uma extensão natural
e saudável de uma mente que se pretende agarrada ao fluxo da vida e da
natureza.
Um modelo melhorado
de desporto e atividade física é um desejo para a «Nova Era», um tempo
pós-moderno que promoverá o regresso ao Espírito, mas de um Espírito que não
pode jamais negligenciar a sua liga carnal. Uma «Nova Era» em que será possível
sonhar com um desporto e uma competição desportiva regressados ao modelo
“Olímpico” e mítico da Grécia antiga...
É verdade que esse
mesmo tempo antigo conformava um discurso espiritual, modelarmente platónico,
que tendia a ver o corpo como uma entidade menos digna que a mente e que o
Espírito (que não são, na realidade, sinónimos), pois que a “carne” se situaria
hierarquicamente a uma enorme distância do elemento divino, mas também é
verdade que a mesma antiguidade espiritual tendia a considerar o corpo como
parte desse mesmo divino (ou o divino como estando no corpo), o que, desde cedo
precipitou a antropomorfização dos Deuses e a edificação de uma visão de um
Homem Uno em que a matéria integraria o Espírito. Por outro lado, já não faz
sentido falar de uma racionalidade desprovida do sentir, o que, em última análise, nos poderia levar a rever algumas
das construções espirituais que tendem a retirar importância ao concreto, assim
como também já ninguém nega que esse mesmo sentir
(incluindo as considerações do inconsciente, do corpóreo irracional) é parte
construtiva e integrante da cognição e de todas as outras formas de
crescimento/desenvolvimento.
O que nos leva a
considerar que a Psicologia do Desporto e da Atividade Física, vista nas suas
diversas vertentes emocionais, cognitivas e desenvolvimentais, só pode ser
concebida se, de uma vez por todas, um modelo do Uno «Corpo-mente» puder ser
reificado e passado à prática, levando a que as experiências violentas e
mecanizadas sejam substituídas por outras mais expressivas e “psicomotrizes”,
fazendo com que a atividade desportiva típica seja integrada numa vontade
genuína do desportista e sempre desprovida de intenções oportunistas, ajudando
a criar uma visão da atividade física que não colida com a visão de um corpo
frágil (e até patológico), que, de resto, significa que o desporto e a
“Clínica” deverão andar de mãos dadas.
Queremos, portanto,
que o corpo fale, que se exprime, o que implica que a visão de um corpo
mecânico deverá ser substituída pela perspetiva de um corpo psíquico, de um
corpo espiritual, de um corpo simbólico. Queremos que a forma passe a
significar-se, e que o gesto desportivo seja a extensão de um Ser em que
significante e significado consintam em interpolar-se e surpreender-se.
E mesmo nos termos
clínicos, ou nos termos de um corpo patológico, gostaria que a essência do
rótulo classificatório e de um corpo analítico fosse substituída pela elegância
de um corpo-psique-Espírito que é continuidade absoluta, fluxo permanente,
imparável metamorfose do tipo heraclitiano em que cada momento presente se
perde para gerar outro momento que já deixou de o ser para outro e outro ser.
Pois que tudo é relativo, que o mesmo é dizer que tudo é movimento no Absoluto,
e o corpo de um momento já não é o corpo do momento seguinte, mas ainda assim é
o mesmo corpo, de um mesmo movimento (que é feito de uma infinidade de
posturas), de uma mudança que não cessa.
Daí que a prática
desportiva não é a prática de um corpo sem Eu, mas sim a prática de um “corpo
que somos”, e é esta perspetiva de um corpo consciencializado e fenoménico,
dialético e idealizado, e até divinizado na intemporalidade do “impensável” e
“inexprimível”, que deveria preludiar a visão de qualquer atividade física e/ou
desportiva.
Publicado online na revista 'Pódio' (www.revistapodio.pt), Dezembro 2012
Também visível em http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/cr-tica-do-corpo-ausente
Publicado online na revista 'Pódio' (www.revistapodio.pt), Dezembro 2012
Também visível em http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/cr-tica-do-corpo-ausente