segunda-feira, novembro 26, 2012

Crítica do corpo ausente

Os novos discursos acerca do papel que o desporto ocupa na sociedade hipermoderna parecem ter o mérito de atribuir ao Corpo um lugar novo que milénios de pudor lhe haviam negado. Mas, não obstante uma consciência renovada e otimista relativa ao mérito da atividade física e/ou desportiva, parece-me que continua a faltar uma certa atitude sintetizante, uma visão integrada que não obste a ver o corpo na sua transcendência, no conjunto das suas potencialidades que propendem um Uno imbatível, pois que se tende a preferir e a exaurir o discurso de um corpo utilitário, de uma máquina fragmentada e despersonalizada, despedaçada pelo cinismo de um modelo de vida que reduz as essências a meras categorias eternamente numeráveis. Perante a visão de um corpo hipermoderno, reduzido a conjuntos de peças desarticuladas, porque necessariamente catalogáveis e redutíveis a um preço, na visão deste corpo que se ausenta, porque se pretende fazer dele mercadoria ou indústria, na perspetiva de um corpo clínico violentado por uma medicina materialista que mantém o conluio com o capitalismo iniciado há mais de dois séculos, prefiro infinitamente mais a visão de uma corporeidade personalizada, de uma motricidade que se agarra teimosamente ao primor de um sentido, duma práxis que não se converta em mera competitividade predatória.
É certo que um discurso filosófico abarcante da visão de uma Motricidade Humana capaz de prescrever uma corporeidade com um novo sentido do Todo, num Homem melhorado e evoluído em que a perspetiva apelidadamente cartesiana de um corpo desagarrado da alma teria sido derradeiramente ultrapassada, teve já origem há umas tantas décadas, um pouco em paralelo com o recrudescer do discurso das neurociências que têm vindo a dar ao corpo um papel radical na construção da Consciência e da Razão. Mas também é certo que esse discurso “monista” não conseguiu ainda singrar verdadeiramente, antes tem sido traiçoeiramente instrumentalizado para favorecer o papel imagético de um corpo coisificado e de uma atividade física e desportiva elevada à ditadura de um objeto tão só económico.
Tal instrumentalização capitalista é bem visível na forma como o desporto tende ainda a ser conduzido nas escolas e até em muitos ginásios, sendo inclusivamente possível estender esta visão à prática ainda obsidiante de uma Medicina (e também Enfermagem e Fisioterapia) obcecada pelo cumprimento de um modelo de intervenção que reduz o corpo à imagem de uma máquina desmembrada.
De certo modo, até os grandes problemas relacionados com a desmotivação na prática desportiva se prendem muito com o facto de o desporto (e a atividade física em geral) não ter sido muitas vezes transformado numa devida e desejada extensão do Eu, pois que se pretende manter a descontinuidade entre a “forma” e o “espírito”, pois que o novo discurso filosófico (e cognitivo) persiste em não ser adequadamente entendido e conformado, pois que a sociedade hipermoderna não facilita qualquer visão de um corpo integrado, sentido, vivenciado, tornado uma extensão natural e saudável de uma mente que se pretende agarrada ao fluxo da vida e da natureza.
Um modelo melhorado de desporto e atividade física é um desejo para a «Nova Era», um tempo pós-moderno que promoverá o regresso ao Espírito, mas de um Espírito que não pode jamais negligenciar a sua liga carnal. Uma «Nova Era» em que será possível sonhar com um desporto e uma competição desportiva regressados ao modelo “Olímpico” e mítico da Grécia antiga...
É verdade que esse mesmo tempo antigo conformava um discurso espiritual, modelarmente platónico, que tendia a ver o corpo como uma entidade menos digna que a mente e que o Espírito (que não são, na realidade, sinónimos), pois que a “carne” se situaria hierarquicamente a uma enorme distância do elemento divino, mas também é verdade que a mesma antiguidade espiritual tendia a considerar o corpo como parte desse mesmo divino (ou o divino como estando no corpo), o que, desde cedo precipitou a antropomorfização dos Deuses e a edificação de uma visão de um Homem Uno em que a matéria integraria o Espírito. Por outro lado, já não faz sentido falar de uma racionalidade desprovida do sentir, o que, em última análise, nos poderia levar a rever algumas das construções espirituais que tendem a retirar importância ao concreto, assim como também já ninguém nega que esse mesmo sentir (incluindo as considerações do inconsciente, do corpóreo irracional) é parte construtiva e integrante da cognição e de todas as outras formas de crescimento/desenvolvimento.
O que nos leva a considerar que a Psicologia do Desporto e da Atividade Física, vista nas suas diversas vertentes emocionais, cognitivas e desenvolvimentais, só pode ser concebida se, de uma vez por todas, um modelo do Uno «Corpo-mente» puder ser reificado e passado à prática, levando a que as experiências violentas e mecanizadas sejam substituídas por outras mais expressivas e “psicomotrizes”, fazendo com que a atividade desportiva típica seja integrada numa vontade genuína do desportista e sempre desprovida de intenções oportunistas, ajudando a criar uma visão da atividade física que não colida com a visão de um corpo frágil (e até patológico), que, de resto, significa que o desporto e a “Clínica” deverão andar de mãos dadas.
Queremos, portanto, que o corpo fale, que se exprime, o que implica que a visão de um corpo mecânico deverá ser substituída pela perspetiva de um corpo psíquico, de um corpo espiritual, de um corpo simbólico. Queremos que a forma passe a significar-se, e que o gesto desportivo seja a extensão de um Ser em que significante e significado consintam em interpolar-se e surpreender-se.
E mesmo nos termos clínicos, ou nos termos de um corpo patológico, gostaria que a essência do rótulo classificatório e de um corpo analítico fosse substituída pela elegância de um corpo-psique-Espírito que é continuidade absoluta, fluxo permanente, imparável metamorfose do tipo heraclitiano em que cada momento presente se perde para gerar outro momento que já deixou de o ser para outro e outro ser. Pois que tudo é relativo, que o mesmo é dizer que tudo é movimento no Absoluto, e o corpo de um momento já não é o corpo do momento seguinte, mas ainda assim é o mesmo corpo, de um mesmo movimento (que é feito de uma infinidade de posturas), de uma mudança que não cessa.
Daí que a prática desportiva não é a prática de um corpo sem Eu, mas sim a prática de um “corpo que somos”, e é esta perspetiva de um corpo consciencializado e fenoménico, dialético e idealizado, e até divinizado na intemporalidade do “impensável” e “inexprimível”, que deveria preludiar a visão de qualquer atividade física e/ou desportiva.

Publicado online na revista 'Pódio' (www.revistapodio.pt), Dezembro 2012
Também visível em http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/cr-tica-do-corpo-ausente

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