Na extensão da
eterna bipolaridade Corpo versus Mente,
Sensível versus Inteligível, Múltiplo
versus Uno, o binómio «Inconsciente versus Consciente» reitera a mecânica da
dualidade que, numa perspetiva Espiritual, qualifica o mundo do concreto, a
dimensão da relatividade material; binómio que, em última análise, presencia
uma antiga querela adveniente do mundo das psicoterapias: Psicanálise
(abordagem psicodinâmica) versus
Terapia Cognitivo-Comportamental, que, na perspetiva da Sabedoria Universal
(antiga e Espiritual) encerra, a meu ver, o correlato Psicanálise versus Meditação (esta última, analisado
o modo de funcionamento ‘mental’, constitui, de certa maneira, uma abordagem essencialmente
cognitivista). Veremos que, mais do que constituintes de diferentes formas de
ver o Eu e a relação Corpo-Mente, as perspetivas paradigmáticas em análise
compreendem dois modelos fundamentais de conceção da Realidade.
Diria que tanto a
Psicanálise como a abordagem Cognitiva utilizam o Corpo como via de alcançar um
fim, que, no caso da Terapia psicodinâmica, parece ser, de algum modo, de mote
mais egoísta e autocentrado do que na Meditação, com a segunda a conter um fim
Espiritual que apela à Ética e à Transcendência. Curiosamente, para além de se
conceberem como formas de Psicoterapia praticáveis em indivíduos com ou sem
problemáticas psicossomáticas associadas, ambas auguram igualmente servir de
modelo a diversas práticas relacionadas com a atividade física.
A Psicanálise não se
esgota obviamente no sortilégio do Inconsciente, pois que propõe uma visão
modelar complexa de todo um Self,
mas, ainda assim, não deixa de antever no Corpo, e até na Psicossomática, o
palco matricial do seu trabalho, se bem que a Corporeidade seja por ela vista
não só na sua vertente pulsional como igualmente na sua vertente expressiva e
semiológica. Daí que, para além de constituir uma abordagem de trabalho do tipo
elementar/corpuscular (no sentido em
que opera na base da consciência, nos pré-requisitos da racionalidade e nas
raízes dos sintomas neuróticos e/ou psicossomáticos), é também radicalmente
evocada em práticas físicas como a dança, a expressão corporal, a
psicomotricidade, as terapias psico-corporais e/ou de relaxamento, e, de modo eventualmente
mais inaparente, na totalidade genérica das atividades desportivas (porque todas
elas gozam de uma iniludível componente práxico-proxémica e de significado);
não esqueçamos que o corpo É – designativo de uma mor telúrica prédica lógico-discursiva
– mas também Significa – o que designa o menos carnal discurso semiótico.
Em particular, a
perspetiva da Psicossomática centra a intervenção da Psicanálise – num e por
meio de um – corpo que preconiza uma vertente simbólica, com muitas “dores” e
outras manifestações clínicas de um corpo “patológico” a representarem
conflitos e angústias que não puderam ser adequadamente abstratizados no plano
mental, o que não implica que não possam “significar-se” e, portanto, ser
interpretados, o que, em última análise, depreende a existência de uma linha
entre o concreto e o subjetivo sem solução de continuidade.
Assim sendo, o
modelo psicodinâmico não se exaure no divã do consultório do psicoterapeuta, tal
como uma adequada perspetiva psicossomática não pode restringir-se a um
contexto que se distancie da ambiência do praticante.
Por outro lado,
mesmo concebendo que a perspetiva psicanalítica (e refiro-me, como já se
percebeu, essencialmente ao clássico e modelar freudianismo) possui toda uma
vertente de complexa abstração e de significação racional, o facto de pejarmos
a Psicanálise com a sua dimensão dominantemente Corpóreo-Pulsional acarreta a
aceitação deste modelo de intervenção como reducionista
em comparação com os modelos que visam a superação do plano psico-corporal.
Este reducionismo respeita, não tanto a uma qualquer dimensão de desvalorização
pessoal, mas sobretudo à perspetiva de que a Psicanálise se propõe como uma
base explicativa do comportamento e até de tudo o que aparenta ser racional, naquele
sentido corpuscular segundo o qual o
Superior depende e é explicado pelo Inferior.
Sendo assim, a
perspetiva psicanalítica constitui-se, de algum modo, como essencialmente
materialista (mesmo que de pendor especificamente mentalista), pois que, à
semelhança das clássicas perspetivas científicas, depreende uma visão
determinística da ação (o que não implica que não reconheça a existência do
Livre-arbítrio, sem o qual não poderia advogar a possibilidade de mudança), tal
como também figura ser reducionista, pois que, mesmo concebendo a mente como
palco de abrangência sistémica, ainda assim, muito parece distanciar-se da
visão de um Todo Espiritual e Transcendente, apanágio do exercício meditativo.
Acontece que,
contrariamente ao exercício de gestão das emoções (e das dualidades polares que
limitam os seus movimentos) – propugnado pela Psicanálise –, a Meditação, um
pouco à semelhança das estratégias cognitivo-comportamentais, propõe o controlo
e superação dos palcos emocional, volitivo/motivacional e cognitivo, com o
objeto derradeiro de sobrepujar o plano do Eu. É que a verdadeira Meditação não
pode ser descolada do contexto da Sabedoria Espiritual antiga, a qual coloca no
Eu carnal (com este a incluir também os planos elevados da mente individual) a
responsabilidade pelo ‘Mal’ e de todas as formas de Sofrimento. O que significa
que a Espiritualidade, no sentido que lhe é dado pela Sabedoria Universal,
propõe, com vista à construção de uma Ética global e à aproximação de um Todo
Cosmológico hiper-racional, o abandono do plano da Individualidade
(ego-maníaca), o que acaba por acarretar a consideração do corpo como um “meio para acercar um fim”.
A meditação
concretiza-se com o treino de uma atenção localizada e inclui o corpo enquanto
via para atingir certos estados de concentração. Atividades físicas “holísticas”
como o Yoga podem (e devem) incluí-la. Mas, mais cedo ou mais tarde, o
exercício meditativo propriamente dito convida ao abandono do plano
simbólico-fantasmático da corporeidade e até da consciência (individual),
considerando todas as formas de apego ao Eu como um processo displicente de
autoilusão.
Ora, não podemos
negar que tal perspetiva, segundo a qual o Superior acaba por explicar e
comandar o Inferior e a Liberdade reitera a superação do Eu, parece ser de
algum modo adversa à perspetiva científica tradicional e à visão clínico-patológica
e psicodinâmica… Na verdade, tal atitude “ascética” só poderia ser vista pela
Psicanálise como mera Defesa ilusória, uma forma de fugir à realidade concreta
e de racionalizar a vivência pulsional (em derradeira perspetiva, poderíamos
dizer que também essa Liberdade hiper-racional não passaria da sempre eterna
ilusão de que somos livres, tão determinada quanto a mais fisiológica e basilar
das necessidades).
No contexto moderno,
certo é que dificilmente pode ser defendida uma visão espiritual
descorporizada, pois que um novo modelo do todo Corpo-Mente fortemente monista-fisicalista
teima em obter protagonismo. As questões de ordem científica e epistémica são
complexas, passíveis de ser encaradas em termos de diferentes perspetivas e/ou
escalas e “grelhas cognitivas”, mas parece-me que uma visão subtil inclusiva da
Motricidade Humana é praticamente incontornável. Ora, seja porque a matéria é
vista como extensão ou parte indecomponível do Absoluto, seja porque o
apaziguamento das diferentes vertentes emocionais de um corpus em desunião com o Absoluto acarreta o jogo de cessação ou
controlo das diferentes manifestações da matéria carnal, é inegável que a
prática específica dos diferentes tipos de Yoga (implicativa dos anteriores)
inclui o tipo de subtilidade corpórea que parece ser parte incontornável de um
alcance Espiritual minimamente libertador.
Daí que o Yoga e o
processo meditativo a que a sua filosofia acaba por apelar poderão, de algum
modo, constituir processos únicos e valiosos para alcançar aquele nível de
“Corpo feito Noésis” (Corpo tornado contemplativamente racional) que acredito
pressupor necessariamente o processo simbolicamente ascensional. Nisso, o nível
de transcendência é inesgotavelmente mais rico que o acarretado pelo processo
psicanalítico, com este último a ser rico mas espiritual e eticamente
questionável.
A primeira versão deste artigo intitula-se «Psicanálise vs. Espiritualidade: Corpo vivido ou corpo superado?» e encontra-se publicada no nº2 da revista 'Pódio' (www.revistapodio.pt)