quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Sobre a crise (e emergência) da Fisioterapia em Portugal

No seio do paradigma económico-político atual, em que a entrada na Pós-modernidade das meta-narrativas – em que todos os “ismos”, certezas e latitudes terão sido derradeiramente desconstruídos – persiste em ser adiada pela afirmação da crueza de um “neoliberalismo de mercado” contumaz, a discussão em torno do futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), assim como dos Subsistemas por muitos considerados “alternativos”, volta a marcar forçosamente a linha de um horizonte sentido como “de todos” e “para todos”; este mesmo horizonte é incluso de um tecido de profissões de saúde, nas quais, não obstante as nem sempre afirmativas representações sociais dos portugueses, a Fisioterapia e o Fisioterapeuta representam um papel fulcral e até inexpugnável. Daí que o desconhecimento nacional relativamente à situação algo dramática que os fisioterapeutas portugueses estão a viver presentemente só pode ser considerado como um pressuposto de uma atitude social acrítica, por parte de um tecido social que, direta e indiretamente, poderá vir a pagar uma fatura cara por tal nesciência. Este texto pretende, obviamente, contrapor a tal, contribuindo para dar uma visão, necessariamente sintética, mas nimiamente inclusiva, daquilo que é a Fisioterapia que se pratica em Portugal e de um drama que persiste, e que assim persistindo, contribuirá para agravar (ainda mais) o “bem-estar” dos cidadãos.
Importa, antes, reafirmar aquilo que todos já sabem mas que poucos reconhecem: a fatalidade alusiva ao que somos e ao que sentimos (algo que intitulo por “determinação subjetiva”) não pode deixar de determinar a posição que qualquer cidadão ou profissional prefere considerar como “racional”, mas que, na verdade, é sempre o desiderato de uma complexa teia de sensações, conjeturas, sentimentos, crenças, entre tantos outros poluidores daquilo que deveria ser apresentado como Uno e permanente; daí que, querendo eu evitar tal subjetividade, combustível para mais um rol de discussões intermináveis que acabam por colocar os próprios agentes da mesma profissão numa turba de contradições e aporias, mas não podendo nem devendo eu fazer uma qualquer projeção da minha pessoa como Ente objetivo e absoluto (até porque estaria, mais uma vez, a cair no mesmo tipo de ilusão de suposta “racionalidade” a que já aludi), tentarei, dentro do possível, apresentar uma visão realista e inclusiva, se bem que dificilmente desapaixonada ou descomprometida.
A maioria dos portugueses já terá, decerto, tido algum tipo de experiência “fisioterapêutica” numa qualquer Clínica das muitas que (ainda) por aí abundam. Mas é provável que só alguns desses cidadãos se tenham dado ao trabalho de comparar a qualidade dos seus tratamentos com o tipo de subsistema com que são servidos ou com o tipo de subsistemas com que a Clínica em questão se apresenta comprometida. O caso paradigmático de uma Clínica com acordo com o SNS é flagrante, pois é precisamente neste tipo de clínicas que é mais provável o doente ser tratado em conjunto com mais quatro, cinco ou mais doentes, por um terapeuta logicamente fatigado e muitas vezes limitado nas suas capacidades de avaliação, decisão e tratamento. O número de doentes é quase sempre excessivo – a intervenção é, de facto, massificada (o que chega a fazer com que o fisioterapeuta apareça travestido numa espécie de “educador físico”, “sargento de exercícios”) – e este número é função do preço dos doentes, com este preço a ser, por si, função das prescrições de tratamento que lhes são impregnadas, com estas a possuírem mais ou menos valor dependendo do “valor” do seguro ou subsistema com que o utente se apresenta. O utente possui, de facto, um valor, e é muito comum o fisioterapeuta ser “instruído” para dar uma qualidade diferenciável aos doentes, presumindo-se sempre que o doente do SNS terá direito a “menos tempo” que o doente do seguro (e dentro dos seguros, tudo dependerá do tipo de seguro). Ora, a problemática do “valor” do utente não é independente da problemática das prescrições fisiátricas…
Apesar de a Fisioterapia constituir um território epistemológica e profissionalmente autónomo da Medicina, a maioria dos sistemas de saúde requer a existência de um fisiatra prescritor, com este a “criar” prescrições terapêuticas (limitadas pelos estatutos próprios de cada sistema) cujo tipo e número decidirão o já referido “valor” do doente. A situação é risível até porque, não podendo o doente deixar de constituir um “Todo”, com a óbvia limitação da sua divisão em peças (já muito falei disto no livro «Corpo e Pós-modernidade», 2012), a prescrição de tratamento para uma área do corpo apela a uma quase “amputação” do utente dos cuidados, agravada ainda mais pelo facto de ser “decidida” ou “prescrita” por um agente que não é aquele que participa diariamente na complexa e sempre metamórfica realidade fenomenológica do corpo do doente. Pois que a Fisioterapia possui uma natureza epistemológica muito diferente da Medicina científica, e, não obstante constituir igualmente um território científico, a sua essência prática não pode deixar de se conceber nos termos de uma Arte (baseada na Observação contínua tornada práxis, no Raciocínio Clínico ininterruptamente perpetrado, na avaliação e ajuste constante de um corpo em permanente metamorfose, na vivência de uma intimidade de intercorporeidade em que o corpo do doente se torna uma extensão do corpo do terapeuta)! Limitar esta riqueza quase Humanista em que o ‘físico’ se torna ‘motor’ e este ‘psicomotor’, o corpo se transtorna em Soma e Motricidade e estes em Psicossomático e Psicomotricidade, o Corpo-ação renasce Corpo-intenção e este renasce Corpo-representação, o “corpus” moderno/performativo/denotativo do “homo faber” se transmuta no “corpus” pós-moderno/reflexivo-simbólico/narrativo do “homo sapiens”, e o ‘biomédico’ se transmuta em ‘biopsicossocial’ e este em ‘sócio-psico-neuro-músculo-esquelético’, a um conjunto de códigos prescritivos ou a um conjunto de indicações mais ou menos quantificáveis é, no mínimo, curto-circuitar a realidade.
Claro que a massificação dos doentes é menos a consequência da vontade do fisiatra deífico do que do fraco valor das já citadas prescrições. E é precisamente o desvalor do doente que obriga tanto à sua massificação como à suposta utilização de profissionais “mais baratos”, os técnicos auxiliares de Fisioterapia, que, não obstante não poderem legalmente praticar Fisioterapia, abundam nas clínicas já aludidas (o que faz com que, muitas vezes, o tal “fisioterapeuta” que tratou o nosso vizinho ou familiar não seja de facto um fisioterapeuta). Entretanto, a questão dos citados técnicos parece vir a resolver-se de forma automática pelo próprio Sistema: precisavam de existir até há uns anos atrás, mas neste nosso presente em que os fisioterapeutas persistem em ser “multiplicados” exponencialmente pelas quase duas dezenas de instituições de ensino (com muitas a terem sido criadas sem controlo ou pudor, com um tipo de cinismo mercantil muito condenável numa matéria tão “sagrada” quanto a do Ensino Superior), a crescente desvalorização profissional/financeira do terapeuta leva a que possam ser utilizados sem grandes “dificuldades”, se bem que para “obedecerem” a uma Entidade que muitas vezes reconhecem como tendo um poder absoluto (poucos terapeutas arriscariam o seu emprego tentando negociar as já citadas prescrições, o número de doentes ou o prestígio da intervenção utilizada…); daí que a existência de perto de dez mil profissionais só pode significar o desemprego (na verdade, genuinamente pandémico) ou o emprego precário; por outro lado, a pressa de “arranjar emprego” facilita a aceitação das mais desprestigiantes propostas, e o facto de existir tal aceitação vai, por sua vez, facilitar ainda mais o “abaixar da fasquia” da qualidade dos empregos; por sua vez, o facto de os terapeutas ganharem menos irá levar a que estes não possam suprir as suas necessidades de formação, o que leva automaticamente a uma redução da qualidade dos serviços, o que, para muitas entidades patronais, não é necessariamente grave, pois que a quantidade de doentes, tratados apenas com recurso a métodos pobres e técnicas anti-sintomáticas (técnicas que, mais uma vez, persistem em dividir o doente-Pessoa em fragmentos, estilhaços desgovernados), é aquilo que parece importar.
Esta situação leva a que, consequentemente, a maior riqueza de métodos e paradigmas da Fisioterapia, aquela que é a verdadeira Fisioterapia, fique reservada aos doentes que possuem capacidade financeira para recorrer ao sistema Privado, o que reduz as perspetivas de (re)conhecimento público das nossas possibilidades/potencialidades. Este mesmo meio Privado promete, de algum modo, vir a crescer, até porque, como sabemos, apesar de o valor das já citadas prescrições fisioterapêuticas se manter o mesmo em termos de “lucro para a Instituição”, a parte que cabe ao pagamento por parte do próprio doente tende a aumentar cada vez mais; daí que a tendência é para se falar cada vez menos do utente dos serviços de saúde, substituindo-se muitas vezes este conceito pelo malogrado termo de “cliente” (em breve, o próprio SNS será constituído por “clientes”, e esse mesmo SNS tornar-se-á melhor, não por imposição do Estado, mas por imposição do cliente pagador); claro que o crescimento do “Privado” tem de ser relativizado, não seja vero o facto de, após inúmeras sessões de calores, pedaleiras ou maquinismos inúteis (feitos não se sabe muito bem por quem), o tal cliente pagador, pensando que a Fisioterapia se resume a tais fracas experiências, prefere simplesmente mudar de “paradigma” (quando não passa a multiplicar-se num rol de reviravoltas de “opiniões profissionais” e multi-perspetivas que o alienam progressivamente da realidade da sua condição), passando a recorrer a certas “alternativas” “não convencionais”, que, não obstante a sua inalienável importância, seriam decerto mais sérias e aceitáveis se cortassem na dose de misticismo e no alimento placebetário.
Nos termos das soluções propostas pelos próprios fisioterapeutas para que a situação apresentada possa “mudar”, podemos identificar o mesmo tipo de divisão que se encontra tradicionalmente na economia política:
- A solução protecionista: assenta no conjunto das leis, estatutos, regras que a Classe, e a sua ainda não fatível mas desejada Ordem, pode e deve impor para estruturar as práticas (estigmatizando as pseudo-práticas de pseudoprofissionais, assim como as tentativas de diminuir a autonomia da profissão já prevista pela Lei), um mínimo de remuneração, e um conjunto de padrões éticos pelos quais os terapeutas terão de se respeitar (a si-mesmos e aos doentes) nos adequados termos de uma cortesia profissional. Trata-se, de algum modo, de uma solução mais coletivista, que, na perspetiva de alguns, diminui a liberdade individual ou não se adequa ao contexto liberal em que vivemos ou a um país onde as leis se fizeram para não ser cumpridas.
- A solução liberal: assenta no esforço individual do próprio profissional, na tentativa de, enquanto representante da profissão, aumentar o seu prestígio e representação social (incluindo a atitude de contraposição às situações e contextos que desprestigiam financeira e institucionalmente a Fisioterapia). Obrigando ao mérito e à responsabilidade individual, desejado decerto por quem o tem e muito particularmente pelas empresas de formação profissional e pós-graduada que pretendem ganhar no esforço de contribuírem para que o próprio terapeuta se torne um ganhador, é visto por alguns como criador de um estado de crua e pouco cortês competitividade inter-pares.
Logicamente, a solução liberal é fundamental no sentido em que o esforço individual é imprescindível para que o profissional possa autonomizar-se e, sobretudo, aprofundar-se e especializar-se (por sua vez, condições da autonomização); a ausência desse esforço mataria a parte mais nobre e bela da Fisioterapia, precisamente a mesma que não tende a ser do amplo conhecimento dos cidadãos. O que significa que, de certo modo, é inútil apelar à responsabilidade de/da Classe, sem que a própria Fisioterapia melhore intrinsecamente a sua qualidade… (o que, ainda assim, não garante a melhoria da “condição profissional” do terapeuta dentro da instituição – razão da até compreensível inércia de muitos colegas – mas cria um nível de consciencialização no profissional capaz de produzir neste um aumentado estado de desconforto ou “dissonância cognitiva”). Por outro lado, o esforço individual não coíbe a criação e estruturação de alguns princípios regulamentadores fundamentais (porventura uma solução organizacional que compromete pessoalmente menos o terapeuta dentro da organização que o “vitimiza”), sem os quais o “cada um por si” matará decididamente o “contrato social” em que ancora a noção da profissão.
Uma possível solução “compatibilista” e sustentável merece ser pensada e, logicamente, ajustada à Realidade. Muitos passos estão já a ser dados, muito particularmente por parte da Associação Portuguesa de Fisioterapeutas e também por parte de outros projetos recentes como o grupo facebookiano Fisioterapeuta.PT (https://www.facebook.com/#!/groups/Fisioterapeuta.PT/), grupo criado na senda da intensa polémica e partilha do artigo «Enfermagem de reabilitação e Fisioterapia (…)» publicado pelo Expresso.pt, e do Diretório Nacional de Fisioterapeutas – www.fisioterapeutas.pt (que pretende ser dirigido aos cidadãos/utentes), mas é obviamente indubitável a importância do esforço Singular. Não posso todavia fazer qualquer tipo de apologia mais concreta; já basta que a lógica das predileções e dos paradigmas seja marcada pela fatalidade da preferência individual… não seja o homem, singular ou coletivo, prenhe de relatividade.
 

1 comentário:

Anónimo disse...

Texto indecifrável! Mas alguém com esta complexidade de pensamento ainda tem coragem para pedir autonomia de alguma coisa? Era a morte certa, embrenhado nas suas conjecturas filosóficas e na transcendencia da fisioterapia em entender para além da ciencia...!
pois foi com a ciência que o campo da fisiatria se densevolveu, de outra forma ficávamos pelos endireitas!