segunda-feira, outubro 07, 2013

Crítica da Razão Clínica (tempo e Espiritualidade, medicinas, psicanálise e Alquimia)


«O fundamento do tempo é a memória»
Gilles Deleuze

«As Luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas»
Michel Foucault


Atendo o absoluto da Singularidade divina enquanto Totalidade imanifestada do que as coisas são no sentido objectivo (para logo deixarem de o ser na perdição quântica do eterno presente e traduzirem o Nada do eterno movimento, no sentido heraclitiano de um repouso permanente), e o reino material arquetípico como a Totalidade manifestada do que as coisas são e estão quase a deixar de ser para outra coisa ser, não restam muitas dúvidas de que a temporalidade e a corrupção dos elementos por ela implicada são pertença do mundo da matéria, desse "inferior" que se inicia logo abaixo do Inefável para quedar luciferinamente no seu nível mais grotesco e saturnino, no quase esquecimento de um reino dantesco de demónios e fantasmas muitas vezes apelidados de "diabólicos".
O diabolismo, enquanto coisa que afasta ou desagrega, é menos o afã de um personagem secularmente demonizado por um certo cristianismo exotérico do que a qualidade implícita da carnalidade, o tecido inestético das leis da animalidade, a espessura própria do ser fenomenológico, do devir corruptor, do atrito desolador, enfim, a vestimenta veladora dos falsos absolutos, de um mundo em que a relatividade e a incerteza vão sendo alimentados pela corrente lodosa de uma temporalidade embriagadora.
Embriagação de um tempo que consome a perfeição paradisíaca de um "Princípio" arquetípico (Arché), porque a relatividade produz a multiplicação numa quase infinidade de acontecimentos, factores ou variáveis. Um tempo que remata o princípio do fim das origens, pondo ciclicamente fim ao sentimento vívido do Sagrado, colocando um termo no receptáculo da necessidade do conforto mítico.
O tempo, a História e a dialéctica têm o poder de fundear o Homem no eixo cabalístico dos contrários, numa reprodução incessante de dualidades instáveis, e somente a repetição cíclica do Princípio permite renovar a condição originária, aquela que, na perspectiva do "bom selvagem" de Rousseau, denuncia o carácter incondicionadamente benigno de um Homem ainda não traído pela maldade da temporalidade entrópica. Uma renovação revista na perspectiva do "in illo tempore" mítico (Mircea Eliade) ou do regresso cíclico à Era de Ouro indiferenciada, antecipada pela destruição diluviana da Era precedente (conspurcada pela soberba do poder de uma cientificidade fausticamente rendida à intenção de destruição mefistofélica).
Este "não tempo" do Princípio reitera a inocência, a liberdade do conforto de uma vivência despreocupada no Paraíso, portanto uma liberdade um tanto animalística, uma pseudoliberdade que requer o tempo para propender o caminho próprio de uma liberdade autónoma, trajecto destinado pelo próprio Arché, incluindo a necessidade saudosista de regresso ocasional à estrutura inicial.
A regressão indefinidamente perpetrada pelo passado mítico, um pouco diferente da perspectiva cíclica do Bramanismo/Sanathana Dharma, na qual o "eterno retorno" está destinado a deixar de o ser para que uma libertação genuína no sentido do Divino possa ser ciclicamente alcançada (o que não implica que um novo processo involutivo não velha igualmente a ocorrer, mas com a possibilidade deste "retorno" não o ser verdadeiramente porque a nova involução se dá no ventre de uma escala de evolução espiritual superior à que precedeu o grande ciclo temporal anterior). O retorno periódico ao conforto dos Deuses, Heróis ou Pais consoladores, que implica a diluição da "angústia de separação" do Homem face a um "Superior" que a Humanidade mítica requereu construir porque não conseguiu tolerar a solidão da sua Condição originária.
O tempo Histórico pode ser o que se iniciou há milénios, como também pode ser, reiterando a perspectiva de Michel Foucault, o que se inicia derradeiramente com o liberalismo, sobretudo no que à "Clínica" diz respeito.
O tempo é, assim, o sinónimo da profanação, da secularização, da dessacralização da Unidade primacial, com esta a ser submetida a um processo de fragmentação cognitiva, necessária de algum modo ao próprio processo de massificação secular dos saberes no contexto escolar e até das profissões (agora vistas numa perspectiva smithiana).
O tempo clássico, na perspectiva de Foucault, antecede o liberalismo, até ao qual o Sagrado se mantinha ainda como força dominante, se bem que há muitos séculos, senão milénios, que tinha assumido um formato exotérico de religiosidade popular confortadora e limitadora da liberdade de pensamento (estando a sabedoria profunda e esotérica reservada a uns poucos iniciados ou eleitos, e, particularmente desde os tempos medievos, sujeita a um tipo especial de secretismo, que teve a perseguição da cultura eclesiástica oficial enquanto catalizador).
Cedendo à tentação de estabelecer marcos históricos, há que reter particularmente o processo epistemológico de separação cognitiva entre Sujeito e Objecto, iniciada com o nascimento da Ciência moderna e reforçada esmagadoramente pelo Positivismo do séc. XIX, processo que reificará decisivamente a tragédia da separação dos saberes, incluindo a dessacralização e a desvinculação Ética de um saber adequadamente "científico". Como se a Ciência/Epistémi não fosse iniciaticamente todo o Conhecimento dito "racional", em oposição à Doxa, matéria opinativa e portanto irredutível ao julgamento da Razão...
O irredutível é assim reduzido e dividido pelo fluxo da temporalidade desorganizadora e relativizadora. Processo relembrado pelo orgulho de uma ciência que tem a fobia de ser confundida com o dogma religioso ou o dogma pagão que ainda vigorava na medicina do tempo anterior ao liberalismo, esta última tantas vezes parodiada nas comédias de Molière.
A nova ciência exclusivamente materialista assume o protagonismo no século de Darwin, retumbando esmagadoramente, ao ponto de até as matérias humanas e espirituais se tentarem assumir nos termos do tecido semiológico próprio do positivismo. A Sociologia e a Psicologia nascem enquanto ciências precisamente porque tentam explicar os fenómenos humanos mediante a utilização dos instrumentos da Física, e até a matéria espírita - interesse "lúgubre" dum século muito marcado pela atracção ocultista - se tenta definir em termos essencialmente científico-materialistas. O séc. XIX marca definitivamente a abertura à obsessão telúrico-individualista, e somente um certo Idealismo e algum Romantismo se manterão epistemicamente desligados da obsessão da concretude (mas não em termos políticos, com os mesmos a abraçarem algumas das pretensões "igualitaristas" da revolução liberal, e assumindo uma perspectiva utopista de uma nova Idade de ouro, de uma Sociedade "última" e renovada). O idealismo alemão manter-se-á parcialmente a salvo da pretensão do racionalismo científico das Luzes, se bem que a noção de um "fim da História" enquanto Utopia finalista de um tempo linearmente demarcado o aproxima da perspectiva Aristotélico-Judaico-Cristã de representação da Realidade, com esta escolástica a desempenhar, de algum modo, um mediador de proximidade e adaptabilidade da religião às perspectivas científicas da modernidade. Hegel propõe uma dialéctica do tempo que somente vê o seu "fim" na assunção do Espírito, nos termos de uma temporalidade "ocidentalizada", e o materialismo dialéctico vem substantivar a dialéctica mas destronar o idealismo com a presunção de encontrar a Utopia no "fim da História", mas agora numa perspectiva "adequadamente" profana e materialista (se bem que não positivista). Mesmo o relativismo do séc. XIX, nos termos de Schopenhauer e Nietzsche, não é do tipo "absolutista", mas somente ancora na perspectiva de que todo o Absoluto, todo o Espírito, se reduz a uma dinâmica de subjectividade, antecipando, de algum modo, a obsessão freudiana do séc. XX.
No século XX, a assomar à tónica subjectiva da Psicanálise - que propende, por um lado, a "relativização" da quimera do Absoluto e, por outro, a proposta "determinista" face aos comportamentos -, temos o relativismo "absolutizante" encaminhado pela nova Ciência quântica, que logo é aproveitado pelo Espiritualismo para coisificar a proposta libertarista do Homem (nunca se chegando a demonstrar adequadamente que aquilo que pertence à escala subatómica pode ter algo a dizer no respeitante à escala do homem, no seu sentido restrito), num sentido próximo do Idealismo hegeliano e ainda mais próximo do Idealismo Objectivo das antigas Espiritualidades, e quase grosseiramente usurpado pelo Pós-modernismo, que vem re-substantivar a aproximação entre Sujeito e Objecto, como se tal coisa fosse nova e não incluísse o tecido "cognitivo" do reino milenar das Espiritualidades.
Não obstante, o Pós-modernismo tem uma relação bastante mais próxima com o relativismo que o mundo das Espiritualidades, pois se o primeiro concebe a possibilidade de um libertarismo enquanto regra abrangente, negando um pouco a metafísica - coisa que assumirá um aspecto mais radical com o pós-estruturalismo e o desconstrucionismo -, o segundo não pretende negar a realidade literal (ou será um velo?) de um Absoluto meta-humano, reduzindo o relativismo ao humano "velado", prisioneiro da caverna da carnalidade, sobretudo se inquilino de um edifício pouco elevado da escala/escada da Consciência.
Não obstante, munido de uma série de influências bem contemporâneas - para além da ciência quântica e das filosofias idealistas e relativistas, o pós-marxismo, o subjectivismo, a psicanálise, a ciência cognitiva, entre outras -, o Pós-modernismo vem marcar a aurora de um ensombramento, que é o da ciência realista, positivista, ainda actualmente convencida de que a Realidade externa pode ser estudada em independência face ao observador. Podemos dizer que o Pós-modernismo é, então, uma "reactualização nostálgica das origens" espirituais (perdoe-me Mircea Eliade por repetir tanto as suas palavras), e, nesse sentido, é impossível não vislumbrar na Pós-modernidade o ensejo da Nova Era, daquela que rematará o regresso ao Espírito (resta saber se a Nova Era que se aproxima corresponderá a um "simples" retorno à Era mítica, ou se a corrupção dos tempos modernos levará à destruição diluviana, com a possibilidade de a Nova Era ser também o tempo de uma nova "raça" - isto, claro, segundo a visão teosófica, e não me atrevendo eu a referir tempos concretos).
O "eterno retorno" parece figurar perpetuamente como a Regra da temporalidade dialéctica. E isto inclui, sabidamente, a própria História da Filosofia e das Ideias, com um faseamento triplo de "Idades humanas" (que tanto podem ser as do Homem civilizacional, como as do homem singular no sentido ontogenético) em cíclica e constante repetição: (1) a infância, a idade mítica, arquetípica, em que os Deuses/Pais ainda desempenham o papel de protectores, e em que a religião fortemente exotérica ainda assume a dianteira face à esotérica e profunda; pode ser o tempo pré-histórico ou até mesmo a arqueologia foucaultiana, a idade clássica anterior à modernidade liberal. Um tempo que não exclui as excepções da espiritualidade esotérica para uns tantos eleitos e uma mística ocidentalizada por meio de uma Grécia assumidamente platónica e de um Idealismo que será sempre o modelo dominante da História da Filosofia, espiritualidade, arte e literatura ocidentais até que o domínio aristotélico comece a tomar a dianteira. (2) a juventude/adultícia, a idade moderna, científico-materialista, aquela em que o Homem utiliza o cepticismo científico enquanto instrumento de assunção de uma fúria libertadora face ao Paraíso agora visto como castrador (de facto, se a "angústia de separação" da criança é o quesito dominante do apego ao Arché, a "angústia de castração" do jovem domina no (novo) apego ao dogma científico, com este "re-apego" a ser prova de uma falsa Luz, de um Arché reinventado, igualmente protector, mas agora mais apologético de uma nova automomização que não viu, contudo, a sua realização integral, senão o perigo da eterna manutenção na compulsão da materialidade). A idade ainda dominante nos tempos em que vivemos, em que o Homem, desconhecendo o verdadeiro e prístino objecto da Espiritualidade (porque a "doutrina" oficial insiste somente na visão dessa enquanto sinónimo de religião "mediada", exotérica, literalizada, viciosamente cultuada), pressupõe a laicização enquanto estratégia de independentização face aos Deuses/Pais. Não entende que a sociedade de consumo, a mundaneidade prazenteira, a overdose de informação, a quimera tecnológica e a indústria cultural das "massas" exercem a violência castradora de um modo semelhável a qualquer outra forma de castração inquisitorial. Queixa-se dos tempos do Sagrado e parece não reagir à "normalidade" do tempo moderno do Big Brother. Confunde Cânone e Dogma (no bom sentido) com aprisionamento e contenção, permanecendo alienadamente refastelado num mundo em que as Estruturas e os Pilares civilizacionais sofrem a humilhação dessa inútil e trôpega juventude pseudo-reaccionária (e isto inclui aqueles que padecem da "doença infantil do Comunismo", que, pretendendo-se livres do sufoco religioso, não se reconhecem nos termos tentaculares da prisão ideológica). Um tempo em que, face à ausência do conforto religioso, destruídos (pelo menos aparentemente) os pilares da protecção arquetípica, o Homem mergulha, mais do que nunca, no jogo de quimeras, ilusões placebetárias, feitiços mentais plastificados, dificilmente controvertidos pela força de uma Infância (que, de qualquer modo, já não existe, pois já nem os pais ou as famílias existem...) ou do divã do psicanalista, quase sempre mais necessitado de terapia do que capaz de propiciar a evolução mental do seu "paciente". (3) a maturidade (a pós-modernidade), a fase verdadeiramente evolutiva, aquela que remete para o arquetípico, mas que propende o avanço para o arquétipo próprio, para o Demiurgo que existe veladamente e em potência no próprio homem, senão Deus-Homem Ele mesmo enquanto Civilização, Totalidade, Unidade, Indiferencialidade.
Ora, revendo a temática do "eterno retorno", vide o número interminável de vezes em que estas três idades se verificam (e repetem) na História do Homem, incluindo as fases da vivência helénica: fase homérica (mítica), fase moderna (transposta, por exemplo, nas obras de Eurípides, marcando uma certa emancipação face aos deuses míticos) e fase pós-moderna (o helenismo propriamente dito, a fase fulgurante de uma Alexandria enquanto foco centrípeto das mais ricas culturas, não olvidando os saberes milenares profundos e herméticos). Veja-se também a própria História da Filosofia, que vive intermitentemente a transmutação "paradigmática" do Idealismo em materialismo e este em Idealismo...
Esta vivência da temporalidade dualista, em que a Idade Síntese (Esotérica) poderá resultar do confronto dialéctico entre uma Idade Tese (Arquetípica) e uma Idade Antítese (Moderna/Liberal/Materialista) realça particularmente a tendência inalienável para a Existência se conceber nos termos de uma odisseia de perpétuo e inextinguível movimento dinâmico, em que o eterno retorno parece ser quase a regra, incluindo as grandes Idades míticas (desde a Idade de Ouro à Idade de Ferro), e até, de certo modo, os grandes processos cíclicos, tal como vislumbrados pela antiga filosofia da Índia. Uma simples discussão filosófica perpetrada entre dois simples seres poderá ser bem exemplificativa da forma como a temporalidade dinâmica de uma instabilidade perpétua ou "não concordância" poderá originar um mecanismo "ad eternum", sem solução final e aparente à vista...
Daí que a própria noção de Idade de Ouro enquanto Utopia do "fim da História" poderá parecer mera quimera, pois não há mundo Ideal que sempre dure e que sobreviva à necessidade de mudança ou transposição. Tal como não há existência Utópica que permaneça eternamente incorrupta e imaculada, até porque é a própria entropia que demanda o desgaste temporal do que parecia incorruptível.
Esta tendência para considerar as coisas incorruptíveis também merece um certo esgar ou sorriso. É a própria ilusão (mayávica) da carnalidade que demanda que as coisas pareçam "obra acabada", objectos do Absoluto (quando é a própria História que acaba por demonstrar que aquilo que parecia inicialmente um Valor incorruptível demonstra ser, mais tarde, um pequeno valor relativo ao tempo que somente alguns pretenderam absolutizar movidos por insegurança interna - necessidade milenar dominante do espírito em querer ser Espírito - e/ou intenções menos benevolentes). Como se o Absoluto pudesse sequer ser contemplado pelas nossas mentes relativisticamente determinadas. Como se o Divino estivesse ao alcance das mentes humanas, escolar e cognitivamente treinadas para serem "uma coisa e não outra". Como se o pensamento e a linguagem, que são necessariamente relativos, ousassem sequer reflectir o Irreflectível e pensar o Impensável, que é como dar coloração ou qualidade ao Inefável, Inqualificável, Inexprimível, à Totalidade imanifestada, ao Nada da Singularidade quântica.
A dialéctica do "eterno retorno" apela obviamente a um tipo de relativismo não comparável à noção de uma certa irrepetibilidade fenomenológica (como no "Dasein" de Heidegger), com esta a ser, de algum modo, a regra da existência interior, pensada como tendo um início e um fim definidos, se bem que esta "consciência linear" pode ser a norma do íntimo de cada ciclo, fase, Idade ou Era.
Por meio dessa irrepetibilidade lá vai o homem alimentando a noção de que ele é o mundo, de que é livre e indeterminado, de que ele é o responsável único pela História, responsabilidade rapidamente abandonada para um "outro" (homem ou Deus), no preciso momento em que o peso inexorável de um destino escabroso revela acontecimentos históricos dificilmente suportáveis por uma mente arquetipicamente oca (passe-se a incoerência da "insustentável leveza do ser"...). A lógica do homem tem sido essa: livre para o que consegue fazer com mérito ou quando as coisas correm bem, determinado para a incapacidade ou quando as coisas não correm pelo melhor.
A irrepetibilidade fenomenológica nutre obviamente a sensação de liberdade necessária a uma não desistência do caminho face ao devir. É ela que possibilita o antes e o depois requeridos à evolução. Por outro lado, a evolução implica o reencontro arquetípico, mas este deve ser um "retorno" essencialmente temporário, de modo a que o "iniciado" possa firmar a aurora da sua libertação. Este "prelúdio" precisará do Outono amadurecido da vida. Requererá a superação dos condicionamentos que citei nas fases da Primavera (Infância/Era mítica) e do Verão (Adultícia/Modernidade materialista), com vista a uma lentificação da temporalidade, em que a síntese esotérica se aproxima de algum modo da fase infantil arquetípica (o que é o mesmo que dizer que a evolução demanda o regresso à infância, ao útero materno, ao paraíso do "Pater"... para que uma "infância própria" possa ser (re)criada).
Este retorno rememora, obviamente, e num tom mais profano, o objecto da Psicanálise, e também o objecto da Fisioterapia reeducativa (tal como a concebo, enquanto voz minoritária), com estas a assumirem o aspecto de uma verdadeira Alquimia transmutadora. Não se pretende, obviamente, que estas terapias forneçam somente um placebo que, ao promover a mitigação do sofrimento das "dores de crescimento", mais implica a "não evolução" do que o necessário crescimento espiritual. A Psicanálise tem sido muitas vezes aplicada com o intuito de mitigar o sentimento de culpa face à tentação "teomaníaca" do homem querer melhorar-se de forma ética e redentora. Aí, estaria a assumir um papel semelhável ao da religiosidade exotérica, confortadora do sofrimento, com este último a poder constituir-se como a "espada" necessária ao crescimento («Não vim para trazer a paz, mas sim a espada»). Da mesma maneira, a Fisioterapia e a medicina convencionais são usadas maioritariamente enquanto estratégias de minoração da dor/sofrimento, como quem pretende calar a raiz de um sofrer mais profundo. Obviamente que o conforto importa, tanto quanto importa regressar ao Arché paradisíaco, com este a ser capaz de minorar a dor e de proporcionar algum alívio prazenteiro. E é no seio desse mesmo Arché que pode e deve ser buscado o elo requerido ao caminho próprio. Mas o risco de uma perpetuação de residência no paraíso em que o Pater é um "outro" é extraordinariamente grande, e é nisso que tanto o mito quanto a religião exotérica se fundem numa proximidade de "eterno regresso" (uma neurose, no sentido psicopatológico), senão até de um mal maior que é a eterna manutenção na infância (a alienação da psicose). É certo que é uma requerida "atemporalidade", mas quer-se igualmente o momento da realização integral, que, no sentido terreno (portanto, do "quaternário inferior"), é o Homem superior (quiçá o Super-Homem) capaz de criar ele mesmo o seu Arché, e portanto de ser criador, Pai Demiurgo.
Não obstante a ligação das antigas terapias ao princípio espiritual da libertação (incluindo, com obviedade, a meditação) - subjacente, muitas vezes, a um trabalho feito no sentido Superior > Inferior - dificilmente podemos considerar que a Psicanálise e a Fisioterapia reeducativa ultrapassam o elemento "alma" do quaternário inferior. O excesso de materialismo que as consome (porque surgidas institucionalmente na época moderna) leva-as a ousar, na melhor das hipóteses, a criação do Demiurgo no próprio paciente. O que não invalida que elas não devam ser o mais "holísticas" e totalizantes que for possível. Coisa que, no contexto da medicina e fisioterapia convencionais, ainda está longe de se verificar.
A Psicanálise e a Fisioterapia verdadeiramente holísticas (que, no caso da última, é uma raridade, não obstante aquilo que se advoga) podem ser vistas, então, como uma reactualização da Alquimia, se bem que, considerando que se mantêm ao nível da "manifestação humana", não deverão ir para além da mera "purificação mercurial" (ou seja, o retorno à matéria prima). Assumindo que o ser encarnado está inextrincavelmente ligado a uma "condição humana" de determinação, não posso deixar de conceber que, mais do que a libertação (no seu sentido literal), o homem somente conseguirá, no melhor dos casos (portanto, na condição de homem completo), escalar até ao topo da montanha de Consciencialização (quiçá, alcançando uma sensação de completude, não desejará sequer a suposta "libertação" face à Totalidade, pois que já se sente como Total, narcisicamente compensado, um Sísifo pacificado...). O que significa a obtenção de uma adequado nível de Noésis, mas jamais a verdadeira Totalização do Ser.
O ouro alquímico não é, então, o desiderato das modernas terapias e psicanálises. Terá sido o objecto de outros tempos, anteriores à corrupção da idade mítica pela temporalidade da modernidade liberal. Poderá vir, igualmente, a ser o objecto da pós-modernidade, aquela que acredito vir a criar a derradeira redenção da Espiritualidade esotérica (será possível acreditar que ainda actualmente, no tempo hipermoderno, existem no nosso Portugal profundo pessoas que acreditam ser a maçonaria, a alquimia, o rosa-crucianismo ou a teosofia obra do Diabo?... Se for obra o Diabo, é somente porque os níveis saturninos são a rampa de lançamento da iniciação. Talvez ainda possamos encontrar nessas terras alguns rituais mistéricos, e ainda mais provavelmente "crentes" "ortodoxos" com uma atracção pelo fogo... E não é tudo isto a maravilha das trevas medievas, aquelas a que ainda se associa a suposta origem "recente" da Alquimia?).
Claro que a obtenção do "Ouro" tem como pré-requisito a progressiva consciencialização e "libertação" face ao condicionamento relativista associado ao velo da carnalidade. O que significa que há, de algum modo, uma relação de proporcionalidade directa entre a consciencialização, a libertação, a subtilização (em que o corpo começa, de algum modo, a deixar de o ser) e a lentificação gradual do tempo. No estado final, obtém-se a Totalidade, que é como abandonar a escala da materialidade (ou seja, a condição humana) e abraçar a escala quântica da Energia imanifesta. Que é como tornar-nos Deus, ou simplesmente pertencer ao Divino, que é o Éter que tudo É e atravessa, que em tudo jaz e tudo controla; é o Testemunho e portanto a Totipotência; ou será simplesmente o Nada, Não Ser Total sem consciência ou livre arbítrio (apesar de possuir pura Liberdade)?
Será certamente a ausência de "antes e depois", de atrito, de sofrimento, de devir, e também de individualidade, de separatividade, de subjectividade; e é por isso que alguns psicanalistas antipatizam com o objecto da Espiritualidade: preferem a felicidade do Eu na Terra, de um Eu pacificado, quiçá Demiurgo ou Super-Homem (Nietzsche), mas desprezam maioritariamente o ensejo do esvaziamento egóico, do sacrifício ético, da perda da consciência própria em nome de uma Totalidade indiferenciada. Alguma vez no contexto da teoria clássica de Freud poderia ser concebido o "andrógino" ou o "Hermafrodita" enquanto ser "psicanaliticamente acabado", ainda mais quando o período "final" do seu "desenvolvimento psicossexual" é o da diferenciação genital?
A esta perspectiva podemos assomar a interpretação psicanalítica da "construção Espiritual" que, valha-nos o elemento meramente interpretativo, poderia ser o objecto crucial da Psicanálise Jungiana. Porque em Jung, tanto o Arquétipo como o Inconsciente Colectivo podem ser materialisticamente interpretados como uma Consciência Civilizacional/Colectiva no contexto do qual as construções religioso-espirituais dos diferentes povos teriam origem no mero facto de possuírem genéticas comuns e também relações comparáveis com o seu ambiente exterior. Será isto suficiente para explicar tamanhas similitudes entre construções espirituais de diferentes religiões, mesmo entre aquelas que dificilmente poderão ter sido culturalmente miscigenadas?
Esta é uma interpretação materialista que tem sido muitas vezes apresentada, e que assomada ao facto de muitas construções supostamente esotéricas terem resvalado para o lado da fraude, coloca muitas vezes a Espiritualidade numa situação de alguma delicada reputabilidade (temos de admitir que a impossibilidade de podermos utilizar um qualquer critério falsificabilista de modo a distinguir o "verosimilhante" do "não verosimilhante" na matéria pertencente ao domínio da Noésis pode levar a alguns excessos e, sobretudo, ao engano dos mais desavisados ou nescientes... Isto é também a fraqueza de uma apregoada "não cientificidade" do método pós-moderno, incluindo a possibilidade de um certo "relativismo interpretativo" com intenções parciais e não cunháveis com a Ética criar o "mau dogma" e a dominação a partir daquilo que seria no máximo um "bom dogma" do Espírito, o que nos rememora o objectivo do critério falsificabilista de Popper e dos "liberais"). Como convencer as pessoas, as massas presas à carnalidade, da "obviedade" das construções do Idealismo enquanto Obra maior da Sophia (pelo menos para os "destinados" ou "eleitos" a uma compreensão do que pode ser visto como reminiscência platónica)? Não será talvez por isso que, em tempos passados, um certo secretismo mistérico permitia o acesso dos saberes profundos somente aos eleitos, aos mais preparados e já mais desalienados?
Mantendo a visão da crítica materialista, é possível afirmar que, de algum modo, uma certa perspectiva psicanalítica poderá advogar que a Espiritualidade é somente o resultado da generalização do Inferior mental individual para o Superior Civilizacional e Supergóico. Desse modo, o Arché é como a Origem do ser (o útero, o nascimento ou o início da consciência), o Paraíso é a casa dos pais, Deus é o Pai, e as fases da vida individual podem ser os inúmeros ciclos a que já me referi, ou simplesmente os inúmeros processos reencarnativos; o eterno retorno corresponde ao regresso constante aos nossos fantasmas infantis e que preludia o neuroticismo da vida, assim como a evolução corresponde ao crescimento individual, e a obtenção do próprio Arché, ou seja, a chegada ao topo da montanha (o mercúrio alquímico enquanto matéria impoluta), pode ser a sensação de completude da maturidade ou, antes disso, o momento de o homem se tornar ele mesmo Pai de um ser vindouro (coisa não facilmente alcançável pelo ser que não se redimiu a si mesmo no confronto com os fantasmas impregnados pela fixação arquetípica e que podem ser a angústia de uma prisão de recalcamentos). A lógica das analogias podia ser requerida eternamente, e se o materialismo vai sempre advogar que é o homem que fez Deus à sua imagem, o Espiritualismo vai sempre defender que Deus é que fez o homem à sua imagem, para que o verdadeiro sábio não queira sequer importar-se muito com estas questões (e divisões) e prefira somente viver simbolicamente os processos, e crescer, libertando-se, ou ter a sensação de descondicionamento (esta liberta, mesmo sendo nominalmente uma ilusão, porque uma certa dependência arquetípica, a ligação à condição animal, se mantém na persistência da materialidade). Também poderíamos entender a questão da Totalidade ética e do Eterno Presente como o resultado normal do ser pacificado, porque libertado do processo de Eterno Retorno. Livre da neurose e da vivência contínua do passado, o ser vive finalmente pacificado no presente, capaz de amar porque se sente amado e securizado (segurança obviamente dependente do encontro, fixação decisiva e redenção do Arché infantil enquanto pré-requisito da Estrutura própria, aquela que dará ao ser uma sensação de "firmeza" suficientemente grande para aniquilar o excesso de defesas sublimatórias ou mesmo destrutivas e maleficentes e igualmente de modo a permitir tolerar melhor a diferença relativamente ao outro, ao Grupo e a uma Sociedade que rebola eternamente na intenção de controlo supergóico de uma "liberdade individual" potencialmente diluidora da estabilidade e da previsibilidade, senão da intenção político-económica de dominação maquiavélica alienadora; tudo isto significa que o ser não poderá ser pacificado na relação com o outro e fusão com o Todo, sem que primeiro aceite a sua própria condição relativa e se perdoe a si mesmo no abaulamento das defesas primitivas, as mesmas que são constantemente recrutadas no mais pequeno gesto ou relação do Eu com os acontecimentos diários e que repercutem a condição de uma determinação que visa a "libertação para trás" num plano sequencial em que a obtenção da "matéria prima" deve antecipar a superação do próprio corpo e em que a frustração do processo pela tentativa precipitada de "calar o corpo" reitera a "fuga para a frente" que, mais a mais, ajudará, de certo modo, a perpetuar a neurose do "eterno retorno" [entretanto, e saindo da analogia "microscópica", devo acrescentar que também a própria Espiritualidade entende a eterna manutenção na manifestação à imagem do ideal da Psicanálise também como eterno retorno....... o que nos leva a encarar a possibilidade de a Psicanálise ver no Superego civilizacional a defesa - no sentido psicodinâmico - de um processo evolutivo na carne, da mesma maneira que a Espiritualidade vê no adiamento da libertação uma "defesa" para a não evolução na Globalidade....... dito de outra maneira, a Liberdade do Eu, na verdade condição do filósofo e do Super-Homem, é a meta da Psicanálise mas o meio-termo da Espiritualidade, enquanto que a Liberdade do Todo é a meta da Espiritualidade e, de algum modo, o sufoco castrador da Psicanálise, obviamente mais no aspecto de uma religiosidade exotérica edipianamente protectora - até porque esta acaba mesmo por perder o nível ético do Espírito para abraçar o apriosionamento do "Grande Inquisidor" (Dostoiévski) - do que no aspecto da Espiritualidade esotérica, se bem que mesmo esta pode ser vista nos termos de um objecto Civilizacional que, na perspectiva de Freud, é supra causa da "neurose de várias épocas culturais"]).
Será o esoterismo uma construção simbolicamente velada relativa à vida do homem singular? Ou será que isto existe desta maneira por causa da lei das analogias, porque "Atman é Brahman e Brahman é Atman" ou porque "O que está em cima é como o que está em baixo, o que está em baixo é como o que está em cima"?...
Parece-me, no entanto, que não deixa a perspectiva materialista de se conceber como eventualmente perigosa, isto no prisma da Ética e do comportamento moral. Aceitar simultaneamente que todo o altruísmo é unicamente o resultado final de uma injecção hormonal prazenteira e ego-maníaca, que a moral se resume a uma construção relativa ao tempo, lugar ou até mesmo à classe (Nietzsche) e que o Espírito é somente o produto de uma mente conturbada, tudo isto importa menos pela sua potencial verdade nominal do que pela sua latente consequência na desconstrução do Arquétipo/Pater moralizador, sem o qual o ser deixa de encerrar uma força de contenção supergóica requerida à abolição da própria empresa de imoralidade. Obviamente, que, apelando mais uma vez à perspectiva analógica, não é muito difícil ver os efeitos de uma certa relativização radical no mundo moderno: não é só Deus que morreu, é também a consciência da importância dos Valores, do Cânone, das Estruturas. A Pátria e a Família passaram a ser "verbos de encher", o que não é particularmente perigoso para a nossa visão de homens feitos e minimamente morais. Mas que consequências terá isso na "Consciência moral" da Humanidade futura? E não poderá ser encontrada nesta desestruturação dos pilares sócio-familiares do Princípio infantil, assim como na excessiva relativização dos novos tempos em que nada se mantém ou perdura e tudo é instável, inseguro e efémero, um dos grandes fundamentos do exponencial crescimento da psicopatologia das neuroses e "depressões", já para não referir a clássica "loucura da normalidade" (Arno Gruen)?...
A Psicanálise advoga a importância da evolução, mas, por vezes, abusa na "ideologia" do descondicionamento. Pretende muitas vezes esvaziar o ser de todo o sentimento de culpa, o que não é coisa perigosa se efectivado num ser com uma forte "angústia de separação", mas, tornando-se "moda", pode ajudar a criar - como já está a acontecer - seres desprovidos de barreiras, e por isso mesmo, incapazes de se auto-civilizarem e amputados do processo de evolução no verdadeiro sentido do termo.
A amputação do Espírito tem o resultado que se vê: a criação de uma Sociedade em que não existe a consciência do "outro" (coisa que, como já vimos, não é a consequência obrigatória da actividade do divã). Todos se sentem Super-Homens, e jazem já numa luta contínua pela supremacia. O neoliberalismo é apenas um sinal clínico deste mundo em que a Hiper-modernidade toma o aspecto de um vírus, altamente contagioso, que infecta o próprio cérebro das suas vítimas e que não levou muito tempo a manifestar-se numa pandemia globalizada (lembremos que somente um tiro no cérebro é capaz de "matar" o morto-vivo, com esta "morte" a possibilitar a eventualidade platónica de uma verdadeira vida).
Nas mãos da modernidade viral, a própria ciência e o saber podem adquirir um pendor fáustico, verdadeiramente destrutivo. E, perante isso, a engenharia genética, que poderia parecer a "Obra mercurial", e a Física quântica, que poderia ser o prelúdio do Ouro da "Obra ao Vermelho", perdem tal estatuto, porque, ao invés de nos conduzirem à merecida Totalidade diluidora do sofrimento, mais rapidamente nos conduzem à destruição diluviana.
Ora, este é apenas um dos resultados mais visíveis da dessacralização da Ciência. Ao fragmentar e dividir os saberes, esvaziando-os do seu conteúdo Espiritual, os corpus científicos da modernidade prometem criar uma espécie de Admirável Mundo Novo em que somente uns poucos terão acesso à Utopia, relegando para muitos a parca fatia da realidade de sofrimento. Para além disso, parece-me que os poucos que terão atingido a "libertação" não terão provavelmente essa qualidade de ajuda a todos os outros que estão "no caminho" e que o "Buda Dharma" tanto apregoa no formato da Compaixão.
A própria Bioética surgiu com o intuito de criar alguma consciencialização nas matérias da Vida, incluindo as várias medicinas, coisa que não faria sequer sentido no antigo tempo milenar, especialmente no Oriente, onde a divisão entre os saberes não integrava o tecido cognitivo daqueles povos.
Esta divisão pode parecer a "normalidade" dos nossos tempos, mas isso não significa que estejamos perante o ideal de sanidade. Há uma diferença muito grande entre as três qualidades "normal", "são" e "moral" e vislumbra-se um paradigma de "normalidade" que poderá atrasar indefinidamente a entrada no mais "são" e "moral" paradigma civilizacional da Nova Era.
É triste notar que os novos profissionais de saúde já não concebem a sabedoria plena enquanto encontro não mediado com o Outro e a sua arte.
A obsessão pela Cientificidade parece ser a regra e o afastamento da realidade do próprio paciente aumenta exponencialmente. Pretende-se trocar o terreno supostamente imensurável do Paciente Uno pelo terreno enganadoramente mensurável do Grupo, tal como reificado pelos estudos estatístico-probabilísticos a que a nova geração presta culto (estudos que, não obstante a "evidência" dos erros e da fraude, não deixam de espoletar uma certa forma de dogma científico).
Vende-se massivamente a noção de "bem estar", no plano de uma espécie de eudaimonia endorfínica, advogando a suposta holisticidade de métodos psico-corporais, perpetrando a noção de uma falsa espiritualidade e os aspectos embriagadores e alienantes de uma suposta mística, e criando a ilusão de que o Esoterismo é este acerbo de feitiços mercantilistas (como se a ignorância relativamente à palavra não fosse já monstruosa...).
Cria-se a fantasia de que o caminho para o "Ser" passa somente pelo exercício do auto-encontro, repleto de "boas sensações" e de "iluminações pacificantes", quando, na verdade se há "alguém" em específico que se sente iluminado então é porque não está definitivamente na Iluminação. Ilusão agravada pela noção de que as necessidades de um Ego carente são uma prioridade, como se o "caminho" não implicasse necessariamente o desígnio ético. Caminho do peregrino, via da pedra, do deserto ou da floresta, de uma Gnose subterrâneo-filosófica (ou, se preferirmos, inferno-espiritual) que quase sempre aduz o "sofrimento" como ingrediente inevitável (lembremos que o "caos" sofredor é um pré-requisito obrigatório, se bem que insuficiente, para a concepção do filósofo; como obter o nascimento do Espírito sem as necessárias dores de parto?... as mesmas que agora se pretendem suprimir a todo o custo, substituindo-as pela quimera de um produto "final" nem por sonhos finalizado).
A terapia verdadeiramente holística não é como os feitiços da mediania que vão ajudando a viver no "eterno retorno" de uma infância castrada e alienada, "medicada" para a perpetuação da doença de um sofrimento meramente atenuado. O terapeuta que age como "paliativo" ou "placebo" não é um verdadeiro terapeuta, é mais como o fraudulento de um certo "esoterismo" que não é verdadeiramente "esoterismo". Uma terapia que não busca o retorno conciliatório com as Origens não tem direito a denominar-se de "Terapia", e uma Psicanálise que pretende evitar o sofrimento a todo o custo não é decerto uma Psicanálise no verdadeiro e Total sentido do termo. É certo que a rapidez de resultados e o fogo de artifício da quimera de terapias atraentes atrai mais o paciente que quase deseja ser alienado (até porque o peso da Realidade pode ser esmagador, e é nesse sentido que uma cuidadosa e lenta revelação deve antecipar um ainda mais lento desvelar, não vá a Luz fazer cegar ou enlouquecer o "iniciado"...) e o terapeuta que deseja prosperar no negócio. Mas o caso é que tanto o Espírito como até a Mãe Natureza sempre requereram grandes períodos de tempo para se efectivarem como Obras (quase) plenamente firmadas. Quem deseja o Eterno Presente não deve ambicionar o rápido futuro. Arrisca manter-se eternamente no passado.
A medicina afecta ao paradigma "científico-liberal" é, de algum modo, o mal necessário à estruturação cognitiva dos saberes. Mas assumir que um médico, e sobretudo um terapeuta, não conseguiu transpor e desconstruir o Verão das "disciplinas" para alcançar o Outono da Totalidade de um Corpo visto como entidade bio-psico-espiritual é, no mínimo, preocupante. Obviamente a esmagadora maioria dos profissionais não consegue reificar tal desconstrução e a moda do "holístico" passa por ser mais publicitada do que genuinamente exercitada e integralmente compreendida. Pudera!... Com um aparelho educativo (na verdade, doutrinador) comprometido com a cientificidade "dianóica" do saber, para além da obsessão pelas categorizações e classificações, não admira que a "normalidade" social maioritária pareça cada vez mais "louca" (se bem que, para eles, somos nós os loucos). A ciência moderna parece agradar mais ao Sistema e à Economia que as matérias "inúteis" da Filosofia e da Espiritualidade... com estas a representarem até um potencial inimigo da "ordem social"...
O Sistema nutre um compromisso dominante nas sociedades modernas: medicina, ciência, indústria e tecnologia. A medicina/terapia trata de manter os actores sociais (se preferirem, os proletários) "activos" e "funcionais" para que possam produzir a "indústria", auxiliada pela tecnologia que a ciência "pensou"; por outro lado, a ciência precisa da tecnologia para ser "praticada" e a indústria necessita de "actores sociais" funcionais e ricos para consumirem. E o que é que os actores sociais tanto consomem agora? Tecnologias e medicinas (nos formatos dominantes de "bem estar", terapias e Fitness). Por outro lado, também a medicina precisa da Tecnologia para ser praticada e da ciência para se legitimar. E visto que o "esgotamento" do modelo keynesiano está a liberalizar cada vez mais a medicina, importa que a mesma seja cada vez mais "produtora de resultados", coisa em que a ciência médica materialista domina, principalmente por meio da utilização das tecnologias, as mesmas que a ciência pensou e que requereram as tecnologias para as ter pensado. Os resultados surgem, o cliente fica satisfeito, a engrenagem do Sistema mantém o seu alimento, e ninguém precisa de se preocupar com as consequências a longo prazo do processo, seja para o corpo em que muitas vezes são alienadas as verdadeiras causas da doença ou disfunção, seja para o Sistema em que a engrenagem acabará, mais cedo ou mais tarde, por entrar em falência, por efeito da já referida temporalidade entrópica (associada ao ciclo vicioso acrescido pelo "efeito borboleta" afecto à Sistémica da referida engrenagem). Este sistema está feito para que o paciente se mantenha enquanto tal eternamente, o que também significa que se mantém perpetuamente cliente da medicina e da sua indústria, legitimados pela mesma ciência que não assume tal "conluio", até porque "o método científico é cego a intenções".
Mas é precisamente porque o novo espírito liberal "racionalizou" (cuidado, muito cuidado com este termo) a ciência que ela se tornou cega à intenção Ética e Espiritual. E é também porque a medicina se cientificou que ela perdeu o contacto com a psique, e sobretudo com a Psique Divina. Se Sujeito e Objecto não são um único elo porquê a preocupação ético-moral da medicina científica ou por que há-de a Psicologia/Psicoterapia se inquietar com mais do que respeita ao bem-estar emocional do seu paciente? Se a medicina científica possui qualidades de "falsificabilidade" por que há-de retroceder aos tempos do dogmatismo? Ignora que também o período moderno e a sua cientificidade acusam dogmatismo. O dogmatismo de quem diz que a Realidade externa existe "absolutamente" e que é possível aceder-lhe objectivamente. O mesmo dogmatismo que criou a mesma Psicologia cognitiva que admite a subjectividade do percepto e não quer muitas vezes assumir a introdução decisiva do método hermenêutico entre as suas "metodologias" de investigação científica.
O mais curioso é que se torna bem notório para quem trabalha em Saúde que não é a Razão científica aquilo que impera no sistema de avaliação, decisão e intervenção clínica. O relativismo é que é a regra do funcionamento em saúde, e isto inclui tanto a complexidade dialéctica de um corpo em contínua metamorfose (e, portanto, dificilmente compreensível na sua totalidade fenomémica pelo profissional de saúde, por mais que este seja demiurgicamente sabedor e experiente "Testemunha"), quanto o lado mais idealista/"pós-moderno"/psicologista de um profissional de saúde que constrói e interpreta o seu paciente, na perspectiva de uma complexa matriz dialéctica interna ao profissional (a mesma que apela ao Espírito, pelo menos no seu sentido subjectivo) que integra a síntese entre as referências internas e as referências do Paradigma intervencional que ele advoga (que começa e acaba também por ser interno). Isto não é obviamente estranho à problemática discursiva e do Poder, segundo a perspectiva estruturalista de Foucault. E deveria, a meu ver, ser um foco essencial da reflexão dos profissionais de saúde, coisa que tende a ser indefinidamente procrastinada pela noção que estes profissionais têm de que o discurso filosófico-hermenêutico é uma excrescência inútil e catalizada pelas necessidades de um Sistema (pelo menos o público) que até aqui sempre ousou tratar o utente como (mais uma) mercadoria, agrilhoada fatalmente à engrenagem da Indústria do tratamento célere, "eficaz" e produtivo.
Claro que a lentidão de um gesto terapêutico único e fenomenologicamente irrepetível (e, portanto, dificilmente prescrevível ou distantemente vivenciável), tecido na perspectiva de um acto puro, lento e sagrado com vista ao "Opus" alquímico (na verdade, um Opus conjunto do paciente, do terapeuta, da Mónada que os indiferencia, da própria medicina/terapia enquanto projecto de crescimento na pós-modernidade), parece estar fora de questão nos termos de um contexto em que o "descartável" é adulado. E, por vezes, até há quem, "espiritual" se diga, requeira que o corpo não interessa e que é matéria inerte, como se o Espírito não requeresse a encarnação e o jogo dialéctico da temporalidade precisamente para propiciar uma possibilidade de evolução, esculpida dos níveis mais involutivos/saturninos para os níveis mais "solares", como se a carne não fosse o palco da transposição, da suma prova cabalística da dualidade polar, do caminho de avanços e retornos (céus e infernos) do peregrino pelo deserto afoito, da escalada do homem superior no encalce do topo da montanha, o tecido mental da purificação do mercúrio da matéria primeira, o nível iniciático da escala com vista ao Ouro da Indiferencialidade... o Nada da ausência de Eu, e portanto, de sofrimento, terapeutas, filósofos e de tempo...
Termino dizendo que o novo paradigma hermenêutico que desejo para as Ciências da Saúde não deverá, no entanto, rejeitar a realização de estudos científicos segundo a perspectiva das "tendências estatísticas" (se bem que mesmo para estes desejo um novo paradigma de rigor, tanto na execução quanto na publicação), até porque a última coisa que desejo para a Nova Era é que um novo dogma imbuído de "mau relativismo" intolerante tome a dianteira (note-se que a fase outonal da Espiritualidade é a síntese das fases mítica e científico-liberal, requerendo-as e, de algum modo, integrando-as, jamais as excluindo categoricamente). Desejo, mais do que tudo, o empolar da reflexão, o respeito pelas Estruturas, a revalorização do Cânone de Valores filosófico-Espirituais, e o reaproximar fenomenológico do terapeuta ao seu paciente, do ser ao ser e destes ao Ser, do Eu ao outro, do Ego ao Espírito, evitando que a Clínica das disciplinas venha dividir o que, de algum modo, nunca deixou de estar aglutinado numa extensão de impartibilidade divina.

Publicado em 'Hospital do Futuro': http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blog/show?id=1967198%3ABlogPost%3A40517 e em «A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade» (Edições Mahatma)

Sem comentários: