«O fundamento
do tempo é a memória»
Gilles Deleuze
«As Luzes que
descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas»
Michel Foucault
Atendo
o absoluto da Singularidade divina enquanto Totalidade imanifestada do que as
coisas são no sentido objectivo (para logo deixarem de o ser na perdição
quântica do eterno presente e traduzirem o Nada do eterno movimento, no sentido
heraclitiano de um repouso permanente), e o reino material arquetípico como a
Totalidade manifestada do que as coisas são e estão quase a deixar de ser para
outra coisa ser, não restam muitas dúvidas de que a temporalidade e a corrupção
dos elementos por ela implicada são pertença do mundo da matéria, desse
"inferior" que se inicia logo abaixo do Inefável para quedar
luciferinamente no seu nível mais grotesco e saturnino, no quase esquecimento
de um reino dantesco de demónios e fantasmas muitas vezes apelidados de
"diabólicos".
O
diabolismo, enquanto coisa que afasta ou desagrega, é menos o afã de um
personagem secularmente demonizado por um certo cristianismo exotérico do que a
qualidade implícita da carnalidade, o tecido inestético das leis da
animalidade, a espessura própria do ser fenomenológico, do devir corruptor, do
atrito desolador, enfim, a vestimenta veladora dos falsos absolutos, de um
mundo em que a relatividade e a incerteza vão sendo alimentados pela corrente
lodosa de uma temporalidade embriagadora.
Embriagação
de um tempo que consome a perfeição paradisíaca de um "Princípio"
arquetípico (Arché), porque a relatividade produz a multiplicação numa quase
infinidade de acontecimentos, factores ou variáveis. Um tempo que remata o
princípio do fim das origens, pondo ciclicamente fim ao sentimento vívido do
Sagrado, colocando um termo no receptáculo da necessidade do conforto mítico.
O
tempo, a História e a dialéctica têm o poder de fundear o Homem no eixo
cabalístico dos contrários, numa reprodução incessante de dualidades instáveis,
e somente a repetição cíclica do Princípio permite renovar a condição
originária, aquela que, na perspectiva do "bom selvagem" de Rousseau,
denuncia o carácter incondicionadamente benigno de um Homem ainda não traído
pela maldade da temporalidade entrópica. Uma renovação revista na perspectiva
do "in illo tempore" mítico (Mircea Eliade) ou do regresso cíclico à
Era de Ouro indiferenciada, antecipada pela destruição diluviana da Era precedente
(conspurcada pela soberba do poder de uma cientificidade fausticamente rendida
à intenção de destruição mefistofélica).
Este
"não tempo" do Princípio reitera a inocência, a liberdade do conforto
de uma vivência despreocupada no Paraíso, portanto uma liberdade um tanto
animalística, uma pseudoliberdade que requer o tempo para propender o caminho
próprio de uma liberdade autónoma, trajecto destinado pelo próprio Arché,
incluindo a necessidade saudosista de regresso ocasional à estrutura inicial.
A
regressão indefinidamente perpetrada pelo passado mítico, um pouco diferente da
perspectiva cíclica do Bramanismo/Sanathana Dharma, na qual o "eterno
retorno" está destinado a deixar de o ser para que uma libertação genuína
no sentido do Divino possa ser ciclicamente alcançada (o que não implica que um
novo processo involutivo não velha igualmente a ocorrer, mas com a
possibilidade deste "retorno" não o ser verdadeiramente porque a nova
involução se dá no ventre de uma escala de evolução espiritual superior à que
precedeu o grande ciclo temporal anterior). O retorno periódico ao conforto dos
Deuses, Heróis ou Pais consoladores, que implica a diluição da "angústia
de separação" do Homem face a um "Superior" que a Humanidade
mítica requereu construir porque não conseguiu tolerar a solidão da sua
Condição originária.
O
tempo Histórico pode ser o que se iniciou há milénios, como também pode ser,
reiterando a perspectiva de Michel Foucault, o que se inicia derradeiramente
com o liberalismo, sobretudo no que à "Clínica" diz respeito.
O
tempo é, assim, o sinónimo da profanação, da secularização, da dessacralização
da Unidade primacial, com esta a ser submetida a um processo de fragmentação
cognitiva, necessária de algum modo ao próprio processo de massificação secular
dos saberes no contexto escolar e até das profissões (agora vistas numa perspectiva
smithiana).
O
tempo clássico, na perspectiva de Foucault, antecede o liberalismo, até ao qual
o Sagrado se mantinha ainda como força dominante, se bem que há muitos séculos,
senão milénios, que tinha assumido um formato exotérico de religiosidade popular
confortadora e limitadora da liberdade de pensamento (estando a sabedoria
profunda e esotérica reservada a uns poucos iniciados ou eleitos, e,
particularmente desde os tempos medievos, sujeita a um tipo especial de
secretismo, que teve a perseguição da cultura eclesiástica oficial enquanto
catalizador).
Cedendo
à tentação de estabelecer marcos históricos, há que reter particularmente o
processo epistemológico de separação cognitiva entre Sujeito e Objecto,
iniciada com o nascimento da Ciência moderna e reforçada esmagadoramente pelo
Positivismo do séc. XIX, processo que reificará decisivamente a tragédia da
separação dos saberes, incluindo a dessacralização e a desvinculação Ética de
um saber adequadamente "científico". Como se a Ciência/Epistémi não
fosse iniciaticamente todo o Conhecimento dito "racional", em
oposição à Doxa, matéria opinativa e portanto irredutível ao julgamento da
Razão...
O
irredutível é assim reduzido e dividido pelo fluxo da temporalidade
desorganizadora e relativizadora. Processo relembrado pelo orgulho de uma
ciência que tem a fobia de ser confundida com o dogma religioso ou o dogma
pagão que ainda vigorava na medicina do tempo anterior ao liberalismo, esta
última tantas vezes parodiada nas comédias de Molière.
A
nova ciência exclusivamente materialista assume o protagonismo no século de
Darwin, retumbando esmagadoramente, ao ponto de até as matérias humanas e
espirituais se tentarem assumir nos termos do tecido semiológico próprio do
positivismo. A Sociologia e a Psicologia nascem enquanto ciências precisamente
porque tentam explicar os fenómenos humanos mediante a utilização dos
instrumentos da Física, e até a matéria espírita - interesse
"lúgubre" dum século muito marcado pela atracção ocultista - se tenta
definir em termos essencialmente científico-materialistas. O séc. XIX marca
definitivamente a abertura à obsessão telúrico-individualista, e somente um
certo Idealismo e algum Romantismo se manterão epistemicamente desligados da
obsessão da concretude (mas não em termos políticos, com os mesmos a abraçarem
algumas das pretensões "igualitaristas" da revolução liberal, e
assumindo uma perspectiva utopista de uma nova Idade de ouro, de uma Sociedade
"última" e renovada). O idealismo alemão manter-se-á parcialmente a
salvo da pretensão do racionalismo científico das Luzes, se bem que a noção de
um "fim da História" enquanto Utopia finalista de um tempo
linearmente demarcado o aproxima da perspectiva Aristotélico-Judaico-Cristã de
representação da Realidade, com esta escolástica a desempenhar, de algum modo,
um mediador de proximidade e adaptabilidade da religião às perspectivas
científicas da modernidade. Hegel propõe uma dialéctica do tempo que somente vê
o seu "fim" na assunção do Espírito, nos termos de uma temporalidade
"ocidentalizada", e o materialismo dialéctico vem substantivar a
dialéctica mas destronar o idealismo com a presunção de encontrar a Utopia no
"fim da História", mas agora numa perspectiva
"adequadamente" profana e materialista (se bem que não positivista).
Mesmo o relativismo do séc. XIX, nos termos de Schopenhauer e Nietzsche, não é
do tipo "absolutista", mas somente ancora na perspectiva de que todo
o Absoluto, todo o Espírito, se reduz a uma dinâmica de subjectividade,
antecipando, de algum modo, a obsessão freudiana do séc. XX.
No
século XX, a assomar à tónica subjectiva da Psicanálise - que propende, por um
lado, a "relativização" da quimera do Absoluto e, por outro, a
proposta "determinista" face aos comportamentos -, temos o
relativismo "absolutizante" encaminhado pela nova Ciência quântica,
que logo é aproveitado pelo Espiritualismo para coisificar a proposta libertarista
do Homem (nunca se chegando a demonstrar adequadamente que aquilo que pertence
à escala subatómica pode ter algo a dizer no respeitante à escala do homem, no
seu sentido restrito), num sentido próximo do Idealismo hegeliano e ainda mais
próximo do Idealismo Objectivo das antigas Espiritualidades, e quase
grosseiramente usurpado pelo Pós-modernismo, que vem re-substantivar a
aproximação entre Sujeito e Objecto, como se tal coisa fosse nova e não
incluísse o tecido "cognitivo" do reino milenar das Espiritualidades.
Não
obstante, o Pós-modernismo tem uma relação bastante mais próxima com o
relativismo que o mundo das Espiritualidades, pois se o primeiro concebe a
possibilidade de um libertarismo enquanto regra abrangente, negando um pouco a
metafísica - coisa que assumirá um aspecto mais radical com o
pós-estruturalismo e o desconstrucionismo -, o segundo não pretende negar a
realidade literal (ou será um velo?) de um Absoluto meta-humano, reduzindo o
relativismo ao humano "velado", prisioneiro da caverna da
carnalidade, sobretudo se inquilino de um edifício pouco elevado da
escala/escada da Consciência.
Não
obstante, munido de uma série de influências bem contemporâneas - para além da
ciência quântica e das filosofias idealistas e relativistas, o pós-marxismo, o
subjectivismo, a psicanálise, a ciência cognitiva, entre outras -, o
Pós-modernismo vem marcar a aurora de um ensombramento, que é o da ciência
realista, positivista, ainda actualmente convencida de que a Realidade externa
pode ser estudada em independência face ao observador. Podemos dizer que o
Pós-modernismo é, então, uma "reactualização nostálgica das origens"
espirituais (perdoe-me Mircea Eliade por repetir tanto as suas palavras), e,
nesse sentido, é impossível não vislumbrar na Pós-modernidade o ensejo da Nova
Era, daquela que rematará o regresso ao Espírito (resta saber se a Nova Era que
se aproxima corresponderá a um "simples" retorno à Era mítica, ou se
a corrupção dos tempos modernos levará à destruição diluviana, com a
possibilidade de a Nova Era ser também o tempo de uma nova "raça" -
isto, claro, segundo a visão teosófica, e não me atrevendo eu a referir tempos
concretos).
O
"eterno retorno" parece figurar perpetuamente como a Regra da
temporalidade dialéctica. E isto inclui, sabidamente, a própria História da
Filosofia e das Ideias, com um faseamento triplo de "Idades humanas"
(que tanto podem ser as do Homem civilizacional, como as do homem singular no
sentido ontogenético) em cíclica e constante repetição: (1) a infância, a idade
mítica, arquetípica, em que os Deuses/Pais ainda desempenham o papel de
protectores, e em que a religião fortemente exotérica ainda assume a dianteira
face à esotérica e profunda; pode ser o tempo pré-histórico ou até mesmo a arqueologia
foucaultiana, a idade clássica anterior à modernidade liberal. Um tempo que não
exclui as excepções da espiritualidade esotérica para uns tantos eleitos e uma
mística ocidentalizada por meio de uma Grécia assumidamente platónica e de um
Idealismo que será sempre o modelo dominante da História da Filosofia,
espiritualidade, arte e literatura ocidentais até que o domínio aristotélico
comece a tomar a dianteira. (2) a juventude/adultícia, a idade moderna,
científico-materialista, aquela em que o Homem utiliza o cepticismo científico
enquanto instrumento de assunção de uma fúria libertadora face ao Paraíso agora
visto como castrador (de facto, se a "angústia de separação" da criança
é o quesito dominante do apego ao Arché, a "angústia de castração" do
jovem domina no (novo) apego ao dogma científico, com este "re-apego"
a ser prova de uma falsa Luz, de um Arché reinventado, igualmente protector,
mas agora mais apologético de uma nova automomização que não viu, contudo, a
sua realização integral, senão o perigo da eterna manutenção na compulsão da
materialidade). A idade ainda dominante nos tempos em que vivemos, em que o
Homem, desconhecendo o verdadeiro e prístino objecto da Espiritualidade (porque
a "doutrina" oficial insiste somente na visão dessa enquanto sinónimo
de religião "mediada", exotérica, literalizada, viciosamente
cultuada), pressupõe a laicização enquanto estratégia de independentização face
aos Deuses/Pais. Não entende que a sociedade de consumo, a mundaneidade
prazenteira, a overdose de informação, a quimera tecnológica e a indústria
cultural das "massas" exercem a violência castradora de um modo
semelhável a qualquer outra forma de castração inquisitorial. Queixa-se dos
tempos do Sagrado e parece não reagir à "normalidade" do tempo
moderno do Big Brother. Confunde Cânone e Dogma (no bom sentido) com
aprisionamento e contenção, permanecendo alienadamente refastelado num mundo em
que as Estruturas e os Pilares civilizacionais sofrem a humilhação dessa inútil
e trôpega juventude pseudo-reaccionária (e isto inclui aqueles que padecem da
"doença infantil do Comunismo", que, pretendendo-se livres do sufoco
religioso, não se reconhecem nos termos tentaculares da prisão ideológica). Um
tempo em que, face à ausência do conforto religioso, destruídos (pelo menos
aparentemente) os pilares da protecção arquetípica, o Homem mergulha, mais do
que nunca, no jogo de quimeras, ilusões placebetárias, feitiços mentais
plastificados, dificilmente controvertidos pela força de uma Infância (que, de
qualquer modo, já não existe, pois já nem os pais ou as famílias existem...) ou
do divã do psicanalista, quase sempre mais necessitado de terapia do que capaz
de propiciar a evolução mental do seu "paciente". (3) a maturidade (a
pós-modernidade), a fase verdadeiramente evolutiva, aquela que remete para o
arquetípico, mas que propende o avanço para o arquétipo próprio, para o
Demiurgo que existe veladamente e em potência no próprio homem, senão Deus-Homem
Ele mesmo enquanto Civilização, Totalidade, Unidade, Indiferencialidade.
Ora,
revendo a temática do "eterno retorno", vide o número interminável de vezes em que estas três idades se
verificam (e repetem) na História do Homem, incluindo as fases da vivência
helénica: fase homérica (mítica), fase moderna (transposta, por exemplo, nas
obras de Eurípides, marcando uma certa emancipação face aos deuses míticos) e
fase pós-moderna (o helenismo propriamente dito, a fase fulgurante de uma
Alexandria enquanto foco centrípeto das mais ricas culturas, não olvidando os
saberes milenares profundos e herméticos). Veja-se também a própria História da
Filosofia, que vive intermitentemente a transmutação "paradigmática"
do Idealismo em materialismo e este em Idealismo...
Esta
vivência da temporalidade dualista, em que a Idade Síntese (Esotérica) poderá
resultar do confronto dialéctico entre uma Idade Tese (Arquetípica) e uma Idade
Antítese (Moderna/Liberal/Materialista) realça particularmente a tendência
inalienável para a Existência se conceber nos termos de uma odisseia de
perpétuo e inextinguível movimento dinâmico, em que o eterno retorno parece ser
quase a regra, incluindo as grandes Idades míticas (desde a Idade de Ouro à
Idade de Ferro), e até, de certo modo, os grandes processos cíclicos, tal como
vislumbrados pela antiga filosofia da Índia. Uma simples discussão filosófica
perpetrada entre dois simples seres poderá ser bem exemplificativa da forma
como a temporalidade dinâmica de uma instabilidade perpétua ou "não
concordância" poderá originar um mecanismo "ad eternum", sem
solução final e aparente à vista...
Daí
que a própria noção de Idade de Ouro enquanto Utopia do "fim da
História" poderá parecer mera quimera, pois não há mundo Ideal que sempre
dure e que sobreviva à necessidade de mudança ou transposição. Tal como não há
existência Utópica que permaneça eternamente incorrupta e imaculada, até porque
é a própria entropia que demanda o desgaste temporal do que parecia
incorruptível.
Esta
tendência para considerar as coisas incorruptíveis também merece um certo esgar
ou sorriso. É a própria ilusão (mayávica) da carnalidade que demanda que as
coisas pareçam "obra acabada", objectos do Absoluto (quando é a
própria História que acaba por demonstrar que aquilo que parecia inicialmente
um Valor incorruptível demonstra ser, mais tarde, um pequeno valor relativo ao
tempo que somente alguns pretenderam absolutizar movidos por insegurança
interna - necessidade milenar dominante do espírito em querer ser Espírito -
e/ou intenções menos benevolentes). Como se o Absoluto pudesse sequer ser
contemplado pelas nossas mentes relativisticamente determinadas. Como se o
Divino estivesse ao alcance das mentes humanas, escolar e cognitivamente
treinadas para serem "uma coisa e não outra". Como se o pensamento e
a linguagem, que são necessariamente relativos, ousassem sequer reflectir o
Irreflectível e pensar o Impensável, que é como dar coloração ou qualidade ao
Inefável, Inqualificável, Inexprimível, à Totalidade imanifestada, ao Nada da
Singularidade quântica.
A
dialéctica do "eterno retorno" apela obviamente a um tipo de
relativismo não comparável à noção de uma certa irrepetibilidade fenomenológica
(como no "Dasein" de Heidegger), com esta a ser, de algum modo, a
regra da existência interior, pensada como tendo um início e um fim definidos,
se bem que esta "consciência linear" pode ser a norma do íntimo de
cada ciclo, fase, Idade ou Era.
Por
meio dessa irrepetibilidade lá vai o homem alimentando a noção de que ele é o
mundo, de que é livre e indeterminado, de que ele é o responsável único pela
História, responsabilidade rapidamente abandonada para um "outro"
(homem ou Deus), no preciso momento em que o peso inexorável de um destino
escabroso revela acontecimentos históricos dificilmente suportáveis por uma
mente arquetipicamente oca (passe-se a incoerência da "insustentável
leveza do ser"...). A lógica do homem tem sido essa: livre para o que
consegue fazer com mérito ou quando as coisas correm bem, determinado para a
incapacidade ou quando as coisas não correm pelo melhor.
A
irrepetibilidade fenomenológica nutre obviamente a sensação de liberdade
necessária a uma não desistência do caminho face ao devir. É ela que
possibilita o antes e o depois requeridos à evolução. Por outro lado, a
evolução implica o reencontro arquetípico, mas este deve ser um
"retorno" essencialmente temporário, de modo a que o
"iniciado" possa firmar a aurora da sua libertação. Este
"prelúdio" precisará do Outono amadurecido da vida. Requererá a
superação dos condicionamentos que citei nas fases da Primavera (Infância/Era
mítica) e do Verão (Adultícia/Modernidade materialista), com vista a uma
lentificação da temporalidade, em que a síntese esotérica se aproxima de algum
modo da fase infantil arquetípica (o que é o mesmo que dizer que a evolução
demanda o regresso à infância, ao útero materno, ao paraíso do
"Pater"... para que uma "infância própria" possa ser
(re)criada).
Este
retorno rememora, obviamente, e num tom mais profano, o objecto da Psicanálise,
e também o objecto da Fisioterapia reeducativa (tal como a concebo, enquanto
voz minoritária), com estas a assumirem o aspecto de uma verdadeira Alquimia
transmutadora. Não se pretende, obviamente, que estas terapias forneçam somente
um placebo que, ao promover a mitigação do sofrimento das "dores de
crescimento", mais implica a "não evolução" do que o necessário
crescimento espiritual. A Psicanálise tem sido muitas vezes aplicada com o
intuito de mitigar o sentimento de culpa face à tentação "teomaníaca"
do homem querer melhorar-se de forma ética e redentora. Aí, estaria a assumir
um papel semelhável ao da religiosidade exotérica, confortadora do sofrimento,
com este último a poder constituir-se como a "espada" necessária ao
crescimento («Não vim para trazer a paz, mas sim a espada»). Da mesma maneira,
a Fisioterapia e a medicina convencionais são usadas maioritariamente enquanto
estratégias de minoração da dor/sofrimento, como quem pretende calar a raiz de
um sofrer mais profundo. Obviamente que o conforto importa, tanto quanto
importa regressar ao Arché paradisíaco, com este a ser capaz de minorar a dor e
de proporcionar algum alívio prazenteiro. E é no seio desse mesmo Arché que
pode e deve ser buscado o elo requerido ao caminho próprio. Mas o risco de uma
perpetuação de residência no paraíso em que o Pater é um "outro" é
extraordinariamente grande, e é nisso que tanto o mito quanto a religião
exotérica se fundem numa proximidade de "eterno regresso" (uma
neurose, no sentido psicopatológico), senão até de um mal maior que é a eterna
manutenção na infância (a alienação da psicose). É certo que é uma requerida
"atemporalidade", mas quer-se igualmente o momento da realização
integral, que, no sentido terreno (portanto, do "quaternário
inferior"), é o Homem superior (quiçá o Super-Homem) capaz de criar ele
mesmo o seu Arché, e portanto de ser criador, Pai Demiurgo.
Não
obstante a ligação das antigas terapias ao princípio espiritual da libertação
(incluindo, com obviedade, a meditação) - subjacente, muitas vezes, a um trabalho
feito no sentido Superior > Inferior - dificilmente podemos considerar que a
Psicanálise e a Fisioterapia reeducativa ultrapassam o elemento
"alma" do quaternário inferior. O excesso de materialismo que as
consome (porque surgidas institucionalmente na época moderna) leva-as a ousar,
na melhor das hipóteses, a criação do Demiurgo no próprio paciente. O que não
invalida que elas não devam ser o mais "holísticas" e totalizantes
que for possível. Coisa que, no contexto da medicina e fisioterapia convencionais,
ainda está longe de se verificar.
A
Psicanálise e a Fisioterapia verdadeiramente holísticas (que, no caso da
última, é uma raridade, não obstante aquilo que se advoga) podem ser vistas,
então, como uma reactualização da Alquimia, se bem que, considerando que se
mantêm ao nível da "manifestação humana", não deverão ir para além da
mera "purificação mercurial" (ou seja, o retorno à matéria prima).
Assumindo que o ser encarnado está
inextrincavelmente ligado a uma "condição humana" de determinação,
não posso deixar de conceber que, mais do que a libertação (no seu sentido
literal), o homem somente conseguirá, no melhor dos casos (portanto, na
condição de homem completo), escalar até ao topo da montanha de
Consciencialização (quiçá, alcançando uma sensação de completude, não desejará
sequer a suposta "libertação" face à Totalidade, pois que já se sente
como Total, narcisicamente compensado, um Sísifo pacificado...). O que
significa a obtenção de uma adequado nível de Noésis, mas jamais a verdadeira
Totalização do Ser.
O
ouro alquímico não é, então, o desiderato das modernas terapias e psicanálises.
Terá sido o objecto de outros tempos, anteriores à corrupção da idade mítica
pela temporalidade da modernidade liberal. Poderá vir, igualmente, a ser o
objecto da pós-modernidade, aquela que acredito vir a criar a derradeira
redenção da Espiritualidade esotérica (será possível acreditar que ainda actualmente,
no tempo hipermoderno, existem no nosso Portugal profundo pessoas que acreditam
ser a maçonaria, a alquimia, o rosa-crucianismo ou a teosofia obra do Diabo?...
Se for obra o Diabo, é somente porque os níveis saturninos são a rampa de
lançamento da iniciação. Talvez ainda possamos encontrar nessas terras alguns
rituais mistéricos, e ainda mais provavelmente "crentes"
"ortodoxos" com uma atracção pelo fogo... E não é tudo isto a
maravilha das trevas medievas, aquelas a que ainda se associa a suposta origem
"recente" da Alquimia?).
Claro
que a obtenção do "Ouro" tem como pré-requisito a progressiva
consciencialização e "libertação" face ao condicionamento relativista
associado ao velo da carnalidade. O que significa que há, de algum modo, uma
relação de proporcionalidade directa entre a consciencialização, a libertação,
a subtilização (em que o corpo começa, de algum modo, a deixar de o ser) e a
lentificação gradual do tempo. No estado final, obtém-se a Totalidade, que é
como abandonar a escala da materialidade (ou seja, a condição humana) e abraçar
a escala quântica da Energia imanifesta. Que é como tornar-nos Deus, ou
simplesmente pertencer ao Divino, que é o Éter que tudo É e atravessa, que em
tudo jaz e tudo controla; é o Testemunho e portanto a Totipotência; ou será
simplesmente o Nada, Não Ser Total sem consciência ou livre arbítrio (apesar de
possuir pura Liberdade)?
Será
certamente a ausência de "antes e depois", de atrito, de sofrimento,
de devir, e também de individualidade, de separatividade, de subjectividade; e
é por isso que alguns psicanalistas antipatizam com o objecto da
Espiritualidade: preferem a felicidade do Eu na Terra, de um Eu pacificado,
quiçá Demiurgo ou Super-Homem (Nietzsche), mas desprezam maioritariamente o
ensejo do esvaziamento egóico, do sacrifício ético, da perda da consciência
própria em nome de uma Totalidade indiferenciada. Alguma vez no contexto da
teoria clássica de Freud poderia ser concebido o "andrógino" ou o "Hermafrodita"
enquanto ser "psicanaliticamente acabado", ainda mais quando o
período "final" do seu "desenvolvimento psicossexual" é o
da diferenciação genital?
A
esta perspectiva podemos assomar a interpretação psicanalítica da
"construção Espiritual" que, valha-nos o elemento meramente
interpretativo, poderia ser o objecto crucial da Psicanálise Jungiana. Porque
em Jung, tanto o Arquétipo como o Inconsciente Colectivo podem ser
materialisticamente interpretados como uma Consciência Civilizacional/Colectiva
no contexto do qual as construções religioso-espirituais dos diferentes povos
teriam origem no mero facto de possuírem genéticas comuns e também relações
comparáveis com o seu ambiente exterior. Será isto suficiente para explicar
tamanhas similitudes entre construções espirituais de diferentes religiões,
mesmo entre aquelas que dificilmente poderão ter sido culturalmente
miscigenadas?
Esta
é uma interpretação materialista que tem sido muitas vezes apresentada, e que
assomada ao facto de muitas construções supostamente esotéricas terem resvalado
para o lado da fraude, coloca muitas vezes a Espiritualidade numa situação de
alguma delicada reputabilidade (temos de admitir que a impossibilidade de
podermos utilizar um qualquer critério falsificabilista de modo a distinguir o
"verosimilhante" do "não verosimilhante" na matéria
pertencente ao domínio da Noésis pode levar a alguns excessos e, sobretudo, ao
engano dos mais desavisados ou nescientes... Isto é também a fraqueza de uma
apregoada "não cientificidade" do método pós-moderno, incluindo a
possibilidade de um certo "relativismo interpretativo" com intenções
parciais e não cunháveis com a Ética criar o "mau dogma" e a dominação
a partir daquilo que seria no máximo um "bom dogma" do Espírito, o
que nos rememora o objectivo do critério falsificabilista de Popper e dos
"liberais"). Como convencer as pessoas, as massas presas à
carnalidade, da "obviedade" das construções do Idealismo enquanto
Obra maior da Sophia (pelo menos para os "destinados" ou
"eleitos" a uma compreensão do que pode ser visto como reminiscência
platónica)? Não será talvez por isso que, em tempos passados, um certo
secretismo mistérico permitia o acesso dos saberes profundos somente aos
eleitos, aos mais preparados e já mais desalienados?
Mantendo
a visão da crítica materialista, é possível afirmar que, de algum modo, uma
certa perspectiva psicanalítica poderá advogar que a Espiritualidade é somente
o resultado da generalização do Inferior mental individual para o Superior
Civilizacional e Supergóico. Desse modo, o Arché é como a Origem do ser (o
útero, o nascimento ou o início da consciência), o Paraíso é a casa dos pais,
Deus é o Pai, e as fases da vida individual podem ser os inúmeros ciclos a que
já me referi, ou simplesmente os inúmeros processos reencarnativos; o eterno
retorno corresponde ao regresso constante aos nossos fantasmas infantis e que
preludia o neuroticismo da vida, assim como a evolução corresponde ao
crescimento individual, e a obtenção do próprio Arché, ou seja, a chegada ao
topo da montanha (o mercúrio alquímico enquanto matéria impoluta), pode ser a sensação
de completude da maturidade ou, antes disso, o momento de o homem se tornar ele
mesmo Pai de um ser vindouro (coisa não facilmente alcançável pelo ser que não
se redimiu a si mesmo no confronto com os fantasmas impregnados pela fixação
arquetípica e que podem ser a angústia de uma prisão de recalcamentos). A lógica
das analogias podia ser requerida eternamente, e se o materialismo vai sempre
advogar que é o homem que fez Deus à sua imagem, o Espiritualismo vai sempre
defender que Deus é que fez o homem à sua imagem, para que o verdadeiro sábio
não queira sequer importar-se muito com estas questões (e divisões) e prefira
somente viver simbolicamente os processos, e crescer, libertando-se, ou ter a
sensação de descondicionamento (esta liberta, mesmo sendo nominalmente uma
ilusão, porque uma certa dependência arquetípica, a ligação à condição animal,
se mantém na persistência da materialidade). Também poderíamos entender a
questão da Totalidade ética e do Eterno Presente como o resultado normal do ser
pacificado, porque libertado do processo de Eterno Retorno. Livre da neurose e
da vivência contínua do passado, o ser
vive finalmente pacificado no presente, capaz de amar porque se sente amado e
securizado (segurança obviamente dependente do encontro, fixação decisiva e
redenção do Arché infantil enquanto pré-requisito da Estrutura própria, aquela que
dará ao ser uma sensação de
"firmeza" suficientemente grande para aniquilar o excesso de defesas
sublimatórias ou mesmo destrutivas e maleficentes e igualmente de modo a
permitir tolerar melhor a diferença relativamente ao outro, ao Grupo e a uma
Sociedade que rebola eternamente na intenção de controlo supergóico de uma
"liberdade individual" potencialmente diluidora da estabilidade e da
previsibilidade, senão da intenção político-económica de dominação maquiavélica
alienadora; tudo isto significa que o ser
não poderá ser pacificado na relação com o outro e fusão com o Todo, sem que
primeiro aceite a sua própria condição relativa e se perdoe a si mesmo no
abaulamento das defesas primitivas, as mesmas que são constantemente recrutadas
no mais pequeno gesto ou relação do Eu com os acontecimentos diários e que
repercutem a condição de uma determinação que visa a "libertação para
trás" num plano sequencial em que a obtenção da "matéria prima"
deve antecipar a superação do próprio corpo e em que a frustração do processo
pela tentativa precipitada de "calar o corpo" reitera a "fuga
para a frente" que, mais a mais, ajudará, de certo modo, a perpetuar a
neurose do "eterno retorno" [entretanto, e saindo da analogia
"microscópica", devo acrescentar que também a própria Espiritualidade
entende a eterna manutenção na manifestação à imagem do ideal da Psicanálise
também como eterno retorno....... o que nos leva a encarar a possibilidade de a
Psicanálise ver no Superego civilizacional a defesa - no sentido psicodinâmico -
de um processo evolutivo na carne, da mesma maneira que a Espiritualidade vê no
adiamento da libertação uma "defesa" para a não evolução na
Globalidade....... dito de outra maneira, a Liberdade do Eu, na verdade
condição do filósofo e do Super-Homem, é a meta da Psicanálise mas o meio-termo
da Espiritualidade, enquanto que a Liberdade do Todo é a meta da
Espiritualidade e, de algum modo, o sufoco castrador da Psicanálise, obviamente
mais no aspecto de uma religiosidade exotérica edipianamente protectora - até
porque esta acaba mesmo por perder o nível ético do Espírito para abraçar o
apriosionamento do "Grande Inquisidor" (Dostoiévski) - do que no
aspecto da Espiritualidade esotérica, se bem que mesmo esta pode ser vista nos
termos de um objecto Civilizacional que, na perspectiva de Freud, é supra causa
da "neurose de várias épocas culturais"]).
Será
o esoterismo uma construção simbolicamente velada relativa à vida do homem
singular? Ou será que isto existe desta maneira por causa da lei das analogias,
porque "Atman é Brahman e Brahman é Atman" ou porque "O que está
em cima é como o que está em baixo, o que está em baixo é como o que está em
cima"?...
Parece-me,
no entanto, que não deixa a perspectiva materialista de se conceber como
eventualmente perigosa, isto no prisma da Ética e do comportamento moral.
Aceitar simultaneamente que todo o altruísmo é unicamente o resultado final de
uma injecção hormonal prazenteira e ego-maníaca, que a moral se resume a uma construção
relativa ao tempo, lugar ou até mesmo à classe (Nietzsche) e que o Espírito é
somente o produto de uma mente conturbada, tudo isto importa menos pela sua
potencial verdade nominal do que pela sua latente consequência na desconstrução
do Arquétipo/Pater moralizador, sem o qual o ser deixa de encerrar uma força de
contenção supergóica requerida à abolição da própria empresa de imoralidade.
Obviamente, que, apelando mais uma vez à perspectiva analógica, não é muito
difícil ver os efeitos de uma certa relativização radical no mundo moderno: não
é só Deus que morreu, é também a consciência da importância dos Valores, do
Cânone, das Estruturas. A Pátria e a Família passaram a ser "verbos de
encher", o que não é particularmente perigoso para a nossa visão de homens
feitos e minimamente morais. Mas que consequências terá isso na
"Consciência moral" da Humanidade futura? E não poderá ser encontrada
nesta desestruturação dos pilares sócio-familiares do Princípio infantil, assim
como na excessiva relativização dos novos tempos em que nada se mantém ou perdura
e tudo é instável, inseguro e efémero, um dos grandes fundamentos do
exponencial crescimento da psicopatologia das neuroses e
"depressões", já para não referir a clássica "loucura da
normalidade" (Arno Gruen)?...
A
Psicanálise advoga a importância da evolução, mas, por vezes, abusa na
"ideologia" do descondicionamento. Pretende muitas vezes esvaziar o ser de todo o sentimento de culpa, o que
não é coisa perigosa se efectivado num ser com uma forte "angústia de
separação", mas, tornando-se "moda", pode ajudar a criar - como
já está a acontecer - seres desprovidos de barreiras, e por isso mesmo,
incapazes de se auto-civilizarem e amputados do processo de evolução no
verdadeiro sentido do termo.
A
amputação do Espírito tem o resultado que se vê: a criação de uma Sociedade em
que não existe a consciência do "outro" (coisa que, como já vimos,
não é a consequência obrigatória da actividade do divã). Todos se sentem
Super-Homens, e jazem já numa luta contínua pela supremacia. O neoliberalismo é
apenas um sinal clínico deste mundo em que a Hiper-modernidade toma o aspecto
de um vírus, altamente contagioso, que infecta o próprio cérebro das suas
vítimas e que não levou muito tempo a manifestar-se numa pandemia globalizada
(lembremos que somente um tiro no cérebro é capaz de "matar" o
morto-vivo, com esta "morte" a possibilitar a eventualidade platónica
de uma verdadeira vida).
Nas
mãos da modernidade viral, a própria ciência e o saber podem adquirir um pendor
fáustico, verdadeiramente destrutivo. E, perante isso, a engenharia genética,
que poderia parecer a "Obra mercurial", e a Física quântica, que poderia
ser o prelúdio do Ouro da "Obra ao Vermelho", perdem tal estatuto,
porque, ao invés de nos conduzirem à merecida Totalidade diluidora do
sofrimento, mais rapidamente nos conduzem à destruição diluviana.
Ora,
este é apenas um dos resultados mais visíveis da dessacralização da Ciência. Ao
fragmentar e dividir os saberes, esvaziando-os do seu conteúdo Espiritual, os
corpus científicos da modernidade prometem criar uma espécie de Admirável Mundo
Novo em que somente uns poucos terão acesso à Utopia, relegando para muitos a
parca fatia da realidade de sofrimento. Para além disso, parece-me que os
poucos que terão atingido a "libertação" não terão provavelmente essa
qualidade de ajuda a todos os outros que estão "no caminho" e que o "Buda
Dharma" tanto apregoa no formato da Compaixão.
A
própria Bioética surgiu com o intuito de criar alguma consciencialização nas
matérias da Vida, incluindo as várias medicinas, coisa que não faria sequer
sentido no antigo tempo milenar, especialmente no Oriente, onde a divisão entre
os saberes não integrava o tecido cognitivo daqueles povos.
Esta
divisão pode parecer a "normalidade" dos nossos tempos, mas isso não
significa que estejamos perante o ideal de sanidade. Há uma diferença muito
grande entre as três qualidades "normal", "são" e
"moral" e vislumbra-se um paradigma de "normalidade" que
poderá atrasar indefinidamente a entrada no mais "são" e
"moral" paradigma civilizacional da Nova Era.
É
triste notar que os novos profissionais de saúde já não concebem a sabedoria
plena enquanto encontro não mediado com o Outro e a sua arte.
A
obsessão pela Cientificidade parece ser a regra e o afastamento da realidade do
próprio paciente aumenta exponencialmente. Pretende-se trocar o terreno
supostamente imensurável do Paciente Uno pelo terreno enganadoramente
mensurável do Grupo, tal como reificado pelos estudos
estatístico-probabilísticos a que a nova geração presta culto (estudos que, não
obstante a "evidência" dos erros e da fraude, não deixam de espoletar
uma certa forma de dogma científico).
Vende-se
massivamente a noção de "bem estar", no plano de uma espécie de
eudaimonia endorfínica, advogando a suposta holisticidade de métodos
psico-corporais, perpetrando a noção de uma falsa espiritualidade e os aspectos
embriagadores e alienantes de uma suposta mística, e criando a ilusão de que o
Esoterismo é este acerbo de feitiços mercantilistas (como se a ignorância
relativamente à palavra não fosse já monstruosa...).
Cria-se
a fantasia de que o caminho para o "Ser" passa somente pelo exercício
do auto-encontro, repleto de "boas sensações" e de "iluminações
pacificantes", quando, na verdade se há "alguém" em específico
que se sente iluminado então é porque não está definitivamente na Iluminação.
Ilusão agravada pela noção de que as necessidades de um Ego carente são uma
prioridade, como se o "caminho" não implicasse necessariamente o
desígnio ético. Caminho do peregrino, via da pedra, do deserto ou da floresta,
de uma Gnose subterrâneo-filosófica (ou, se preferirmos, inferno-espiritual)
que quase sempre aduz o "sofrimento" como ingrediente inevitável
(lembremos que o "caos" sofredor é um pré-requisito obrigatório, se
bem que insuficiente, para a concepção do filósofo; como obter o nascimento do
Espírito sem as necessárias dores de parto?... as mesmas que agora se pretendem
suprimir a todo o custo, substituindo-as pela quimera de um produto
"final" nem por sonhos finalizado).
A
terapia verdadeiramente holística não é como os feitiços da mediania que vão
ajudando a viver no "eterno retorno" de uma infância castrada e
alienada, "medicada" para a perpetuação da doença de um sofrimento
meramente atenuado. O terapeuta que age como "paliativo" ou
"placebo" não é um verdadeiro terapeuta, é mais como o fraudulento de
um certo "esoterismo" que não é verdadeiramente
"esoterismo". Uma terapia que não busca o retorno conciliatório com
as Origens não tem direito a denominar-se de "Terapia", e uma
Psicanálise que pretende evitar o sofrimento a todo o custo não é decerto uma
Psicanálise no verdadeiro e Total sentido do termo. É certo que a rapidez de
resultados e o fogo de artifício da quimera de terapias atraentes atrai mais o
paciente que quase deseja ser alienado (até porque o peso da Realidade pode ser
esmagador, e é nesse sentido que uma cuidadosa e lenta revelação deve antecipar
um ainda mais lento desvelar, não vá a Luz fazer cegar ou enlouquecer o
"iniciado"...) e o terapeuta que deseja prosperar no negócio. Mas o
caso é que tanto o Espírito como até a Mãe Natureza sempre requereram grandes
períodos de tempo para se efectivarem como Obras (quase) plenamente firmadas.
Quem deseja o Eterno Presente não deve ambicionar o rápido futuro. Arrisca
manter-se eternamente no passado.
A
medicina afecta ao paradigma "científico-liberal" é, de algum modo, o
mal necessário à estruturação cognitiva dos saberes. Mas assumir que um médico,
e sobretudo um terapeuta, não conseguiu transpor e desconstruir o Verão das
"disciplinas" para alcançar o Outono da Totalidade de um Corpo visto
como entidade bio-psico-espiritual é, no mínimo, preocupante. Obviamente a
esmagadora maioria dos profissionais não consegue reificar tal desconstrução e
a moda do "holístico" passa por ser mais publicitada do que
genuinamente exercitada e integralmente compreendida. Pudera!... Com um
aparelho educativo (na verdade, doutrinador) comprometido com a cientificidade
"dianóica" do saber, para além da obsessão pelas categorizações e
classificações, não admira que a "normalidade" social maioritária
pareça cada vez mais "louca" (se bem que, para eles, somos nós os
loucos). A ciência moderna parece agradar mais ao Sistema e à Economia que as
matérias "inúteis" da Filosofia e da Espiritualidade... com estas a
representarem até um potencial inimigo da "ordem social"...
O
Sistema nutre um compromisso dominante nas sociedades modernas: medicina,
ciência, indústria e tecnologia. A medicina/terapia trata de manter os actores
sociais (se preferirem, os proletários) "activos" e "funcionais"
para que possam produzir a "indústria", auxiliada pela tecnologia que
a ciência "pensou"; por outro lado, a ciência precisa da tecnologia
para ser "praticada" e a indústria necessita de "actores
sociais" funcionais e ricos para consumirem. E o que é que os actores
sociais tanto consomem agora? Tecnologias e medicinas (nos formatos dominantes
de "bem estar", terapias e Fitness). Por outro lado, também a
medicina precisa da Tecnologia para ser praticada e da ciência para se
legitimar. E visto que o "esgotamento" do modelo keynesiano está a
liberalizar cada vez mais a medicina, importa que a mesma seja cada vez mais
"produtora de resultados", coisa em que a ciência médica materialista
domina, principalmente por meio da utilização das tecnologias, as mesmas que a
ciência pensou e que requereram as tecnologias para as ter pensado. Os
resultados surgem, o cliente fica satisfeito, a engrenagem do Sistema mantém o
seu alimento, e ninguém precisa de se preocupar com as consequências a longo
prazo do processo, seja para o corpo em que muitas vezes são alienadas as
verdadeiras causas da doença ou disfunção, seja para o Sistema em que a
engrenagem acabará, mais cedo ou mais tarde, por entrar em falência, por efeito
da já referida temporalidade entrópica (associada ao ciclo vicioso acrescido
pelo "efeito borboleta" afecto à Sistémica da referida engrenagem).
Este sistema está feito para que o paciente se mantenha enquanto tal
eternamente, o que também significa que se mantém perpetuamente cliente da
medicina e da sua indústria, legitimados pela mesma ciência que não assume tal
"conluio", até porque "o método científico é cego a
intenções".
Mas
é precisamente porque o novo espírito liberal "racionalizou"
(cuidado, muito cuidado com este termo) a ciência que ela se tornou cega à
intenção Ética e Espiritual. E é também porque a medicina se cientificou que
ela perdeu o contacto com a psique, e sobretudo com a Psique Divina. Se Sujeito
e Objecto não são um único elo porquê a preocupação ético-moral da medicina
científica ou por que há-de a Psicologia/Psicoterapia se inquietar com mais do
que respeita ao bem-estar emocional do seu paciente? Se a medicina científica
possui qualidades de "falsificabilidade" por que há-de retroceder aos
tempos do dogmatismo? Ignora que também o período moderno e a sua
cientificidade acusam dogmatismo. O dogmatismo de quem diz que a Realidade
externa existe "absolutamente" e que é possível aceder-lhe
objectivamente. O mesmo dogmatismo que criou a mesma Psicologia cognitiva que
admite a subjectividade do percepto e não quer muitas vezes assumir a
introdução decisiva do método hermenêutico entre as suas
"metodologias" de investigação científica.
O
mais curioso é que se torna bem notório para quem trabalha em Saúde que não é a
Razão científica aquilo que impera no sistema de avaliação, decisão e
intervenção clínica. O relativismo é que é a regra do funcionamento em saúde, e
isto inclui tanto a complexidade dialéctica de um corpo em contínua metamorfose
(e, portanto, dificilmente compreensível na sua totalidade fenomémica pelo
profissional de saúde, por mais que este seja demiurgicamente sabedor e
experiente "Testemunha"), quanto o lado mais
idealista/"pós-moderno"/psicologista de um profissional de saúde que
constrói e interpreta o seu paciente, na perspectiva de uma complexa matriz
dialéctica interna ao profissional (a mesma que apela ao Espírito, pelo menos
no seu sentido subjectivo) que integra a síntese entre as referências internas
e as referências do Paradigma intervencional que ele advoga (que começa e acaba
também por ser interno). Isto não é obviamente estranho à problemática
discursiva e do Poder, segundo a perspectiva estruturalista de Foucault. E
deveria, a meu ver, ser um foco essencial da reflexão dos profissionais de
saúde, coisa que tende a ser indefinidamente procrastinada pela noção que estes
profissionais têm de que o discurso filosófico-hermenêutico é uma excrescência
inútil e catalizada pelas necessidades de um Sistema (pelo menos o público) que
até aqui sempre ousou tratar o utente como (mais uma) mercadoria, agrilhoada
fatalmente à engrenagem da Indústria do tratamento célere, "eficaz" e
produtivo.
Claro
que a lentidão de um gesto terapêutico único e fenomenologicamente irrepetível
(e, portanto, dificilmente prescrevível ou distantemente vivenciável), tecido
na perspectiva de um acto puro, lento e sagrado com vista ao "Opus"
alquímico (na verdade, um Opus conjunto do paciente, do terapeuta, da Mónada
que os indiferencia, da própria medicina/terapia enquanto projecto de
crescimento na pós-modernidade), parece estar fora de questão nos termos de um
contexto em que o "descartável" é adulado. E, por vezes, até há quem,
"espiritual" se diga, requeira que o corpo não interessa e que é
matéria inerte, como se o Espírito não requeresse a encarnação e o jogo
dialéctico da temporalidade precisamente para propiciar uma possibilidade de
evolução, esculpida dos níveis mais involutivos/saturninos para os níveis mais
"solares", como se a carne não fosse o palco da transposição, da suma
prova cabalística da dualidade polar, do caminho de avanços e retornos (céus e
infernos) do peregrino pelo deserto afoito, da escalada do homem superior no
encalce do topo da montanha, o tecido mental da purificação do mercúrio da
matéria primeira, o nível iniciático da escala com vista ao Ouro da
Indiferencialidade... o Nada da ausência de Eu, e portanto, de sofrimento,
terapeutas, filósofos e de tempo...
Termino
dizendo que o novo paradigma hermenêutico que desejo para as Ciências da Saúde
não deverá, no entanto, rejeitar a realização de estudos científicos segundo a
perspectiva das "tendências estatísticas" (se bem que mesmo para
estes desejo um novo paradigma de rigor, tanto na execução quanto na
publicação), até porque a última coisa que desejo para a Nova Era é que um novo
dogma imbuído de "mau relativismo" intolerante tome a dianteira
(note-se que a fase outonal da Espiritualidade é a síntese das fases mítica e
científico-liberal, requerendo-as e, de algum modo, integrando-as, jamais as
excluindo categoricamente). Desejo, mais do que tudo, o empolar da reflexão, o
respeito pelas Estruturas, a revalorização do Cânone de Valores
filosófico-Espirituais, e o reaproximar fenomenológico do terapeuta ao seu
paciente, do ser ao ser e destes ao Ser, do Eu ao outro, do
Ego ao Espírito, evitando que a Clínica das disciplinas venha dividir o que, de
algum modo, nunca deixou de estar aglutinado numa extensão de impartibilidade
divina.
Publicado em 'Hospital do Futuro': http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blog/show?id=1967198%3ABlogPost%3A40517 e em «A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade» (Edições Mahatma)
Publicado em 'Hospital do Futuro': http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blog/show?id=1967198%3ABlogPost%3A40517 e em «A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualidade» (Edições Mahatma)
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