sábado, setembro 09, 2006

Oito de Setembro: dia mundial da Fisioterapia

Dentro desse prolífico mundo que é o sistema de saúde, a questão relativa aos cuidados de fisioterapia e reabilitação física em geral tem sido permanentemente negligenciada. Agora que se celebra o dia mundial da Fisioterapia, um dia em que diversos profissionais da reabilitação e até mesmo doentes desenvolvem uma série de actividades de divulgação da prática, surge a excelente oportunidade para traçar o perfil de um tipo eterna e progressivamente desprezado de cuidados.
A Fisioterapia constitui muito mais do que uma simples actividade profissional. É a arte do tratamento por meios fundamentalmente naturais. E é uma ciência da postura e da motricidade, fonte inegável de conhecimentos da fisiologia do aparelho locomotor.
Por ter em conta as necessidades pessoais de cada doente em particular, assim como uma visão holística e bio-psico-social do utente, a fisioterapia não é, em termos da sua filosofia basilar de tratamento, muito diferente das medicinas menos convencionais como a osteopatia ou a quiroprática. Entre as diversas “medicinas físicas” vigoram diferenças relacionadas mais com o significante do que com o significado, no sentido da apresentação mais ou menos comercial ou mais ou menos esotérica das diferentes práticas. Na prática propriamente dita, nos seus ditames conteudísticos, as diferenças entre os dissemelhantes cuidados citados são pequenas, talvez com a diferença primária centrada nos aspectos históricos e com as distintas práticas e atitudes relativas à investigação.
Por ser de natureza holística, e pelo facto de o corpo constituir um ente indivisível em si mesmo e com a mente, a prática da fisioterapia não pode ser realizada por partes ou divisões, numa relação fragmentada entre diferentes profissionais de saúde. Acontece que o sistema de saúde, para além dos diferentes subsistemas, pressupõe a realização de tratamentos de fisioterapia como se de um catálogo de vendas se tratasse. Os tratamentos têm nomes específicos, códigos determinados e tarifas regulamentadas. Os aspectos decisórios relativos ao que é ou não realizado no doente pertencem oficialmente ao médico fisiatra e não ao fisioterapeuta. Assim sendo, após uma consulta médica da especialidade, o doente vem “rotulado” com uma prescrição de tratamentos como se os actos de fisioterapia fossem divisíveis como diferentes comprimidos com diferentes objectivos. Negligencia-se, portanto, a natureza indivisível da arte terapêutica, constituída por uma série de actos que são, no fundo, um só acto, assim como as diferentes notas musicais são melodia e esta constitui um todo indissociável, constituído por muito mais do que a soma das notas musicais que o compõem.
Assim sendo, a fisioterapia só pode constituir um acto de eclectismo fundamental, baseado na ciência da reabilitação, assim como esta assenta numa combinação sempre complexa de diferentes técnicas e métodos terapêuticos, muitas vezes extremamente semelháveis entre si. Por outro lado, certos métodos, como a reeducação postural, que partem das consequências para as causas dos sintomas, e permitem a análise e reeducação da base corpórea e postural da qual deriva e decorre a maioria dos problemas reumáticos do doente, constituem uma verdadeira terapia de base funcionante, um pouco como a psicanálise da ciência/arte da mente.
Como prescrever medicamente este tipo de actividade terapêutica? Como “ordenar” um tipo de actividade que compõe um acto de escultura corporal? É obviamente impossível fazê-lo! Mas, de qualquer maneira, a questão pode até nem ser muito relevante, pois este tipo de actividade de fisioterapia especializada só está à mercê de uma minoria de fisioterapeutas (estes sim, os verdadeiros escultores, e como tal, os verdadeiros decisores), que possuem o tempo, disponibilidade, interesse e dinheiro suficientes para adquirirem a formação pós-graduada requerida. Por outro lado, quem, nos tempos que correm, se interessa por uma prática terapêutica de efeitos lentos apesar de globais? E será que interessa às clínicas privadas de fisioterapia que por aí abundam a realização de uma prática morosa centrada num só doente, que ainda por cima terá como efeitos a prevenção da totalidade dos problemas músculo-esqueléticos do mesmo, levando à redução da necessidade dos diferentes cuidados continuados de fisioterapia?...
Eis que começam a emergir as questões sócio-políticas da fisioterapia e da saúde em geral. Usualmente, os utentes de cuidados de fisioterapia demoram-se semanas a meses a tratar muitas vezes disfunções que poderiam ser resolvidas em poucos dias. Isso acontece não só por descuidos no diagnóstico e pela fraca formação de muitos fisioterapeutas, mas também pelo facto de os doentes serem comummente sujeitos a regimes esgotantes de sessões de fisioterapia que parecem não ter fim. Os doentes são tratados muitas vezes com técnicas medíocres, por auxiliares de fisioterapia com pouca formação. Na altura de serem tratados por fisioterapeutas, os doentes tendem a deparar-se com um profissional cheio de trabalho, esgotado pelas exigências do regime de trabalho a que se encontra vinculado. Se o doente realiza fisioterapia com uma credencial da “Caixa da Previdência” terá direito ao menos possível e será provavelmente tratado em conjunto com muitos outros doentes (pena que o Governo não valorize a importância da fisioterapia; talvez pense que não deve investir dinheiro e recursos na população majoritária na utilização dos cuidados de saúde: os idosos). Se estamos a falar de um doente de um bom seguro as coisas melhoram para ele. E se estamos a falar de um doente particular, aí é provável que o mesmo já tenha direito às tais técnicas de fisioterapia global e especializada (mas, mesmo assim, o que pode ser feito em quatro sessões é feito em oito ou doze, para que o rendimento seja maior).
É tudo uma questão relativa à relação custo-benefício. Apenas o bom profissional, com uma formação ética imaculada, poderá fazer a diferença no seio das constrições do sistema! Mas são precisamente estes profissionais, e todos os outros com formação mais abrangente, que começam a constituir a excepção e não a regra neste país. Afinal de contas, a competição entre as crescentes escolas de fisioterapia é enorme, e a mesma só pode ser balizada pela criação de cedências, ao invés de se promover a exigência. Por outro lado, muitas das clínicas particulares de que falamos não estão interessadas num profissional de qualidade, pois este pode colocar em risco os necessários percursos de pactuação com o sistema. Preferem um profissional menos formado que tenha grandes capacidades de tratamento célere do maior número possível de doentes.
Assim sendo, e acrescentando o crescente número da oferta de fisioterapeutas em relação à procura, a profissão vai decrescendo em termos de qualidade e aperfeiçoamento. Tendo em conta a contextura de um crescente número de profissionais, deveria ser valorizado o profissional eficiente, com mais formação científica e especializada. Ou seja, deverá acabar a filosofia do “mais um fisioterapeuta”, trabalhador manual que faz o que outro poderia fazer, para ser arreigada a filosofia do “fisioterapeuta especializado e dedicado”, profissional conhecedor de eleição, capaz de realizar o que muitos outros não têm ainda capacidade para fazer.
As carências de reconhecimento profissional, a falta de investimento tecnológico, a existência de falsos fisioterapeutas a trabalhar, as fracas condições de trabalho, as parcas remunerações e todo um outro conjunto de questões implicariam uma defesa oficiosa da classe por parte de uma Ordem profissional. Mas ainda estamos longe desse passo, pois os fisioterapeutas nem são reconhecidos como profissionais autónomos, antes como parte de um rótulo de “profissionais de diagnóstico e terapêutica”. Pena é que sejam os doentes que mais percam com todas estas deficiências!...

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