É bem provável que nos tempos próximos, dados ao manifesto crescente de um constructo de conhecimentos acerca dos princípios éticos, de gestão e organização dos serviços de saúde, a sociologia da saúde venha a conhecer um desenvolvimento notável, muito maior do que aquele que tem vindo a relevar-se nas últimas décadas. A questão das hierarquias e dos poderes, da distribuição mais ou menos equitativa dos recursos, dos conflitos de poder e das lutas variadas pela autonomia profissional, marcam o processo normal do funcionamento das organizações de saúde, em geral, e hospitalares, em particular.
Por uma questão de receio social de certas autoridades, as questões relativas à delegação de poderes e responsabilidades em saúde têm conhecido polémicas e contendas acentuadas, apesar de nem sempre reconhecíveis pelo mundo dos leigos da matéria. Em especial, o conflito ideológico existente entre medicinas convencionais e medicinas tradicionais tem marcado lugar na cena social, muito mais do que as disputas entre médicos e outros profissionais de saúde como enfermeiros e fisioterapeutas.
Uma possível jornada pelo mundo específico das medicinas não convencionais só poderá provocar no profissional consciente e reflexivo a maior de todas as angústias. Recentemente, a exposição “Viver Saúde” da Feira Internacional de Lisboa permitiu a muitos curiosos a visita a postos de divulgação das práticas terapêuticas menos convencionais. Nesta mesma exposição ou feira estavam presentes representantes de práticas como a fitoterapia, a acupunctura, a medicina tradicional chinesa, a osteopatia, a massagem desportiva, a quiroprática e a homeopatia. Em diversos stands, podíamos ter acesso a informações diversas acerca da prática dessas diferentes medicinas. Mas estas mesmas informações e actos de divulgação só poderão mesmo levar o curioso à intranquilidade de espírito, principalmente se se trata de um profissional de saúde, cuja formação é altamente do tipo Evidence Based Practice.
Acontece que estas mesmas medicinas não convencionais encontram-se incluídas numa miscelânea de métodos e técnicas com filosofias muito dissemelhantes, histórias muito próprias, e diferentes níveis de seriedade, o que pode deturpar a realidade de quem observa de fora o funcionamento destas práxis clínicas. Por exemplo, o nível de seriedade da osteopatia pode ser comparável ao nível de seriedade da fitoterapia, mas está muito para além do nível de seriedade da homeopatia e de um número interminável de pseudo-métodos. E para complicar ainda mais as coisas, é possível atender ao facto de que não há uma osteopatia, há várias osteopatias, várias escolas de osteopatia. E há também diferentes escolas de Yoga, Tai-chi e quiroprática: umas mais sérias e científicas e outras menos sérias e idóneas. No fim, pagam os justos pelos pecadores e restamos nós os confusos.
Não me restam dúvidas de que há algo de interessante para se perceber e estudar em diversos métodos de intervenção. Algumas escolas de osteopatia possuem realmente certas técnicas de tratamento do sistema somático particularmente interessantes. Pena é que essas mesmas técnicas continuem por explorar, em termos científicos. Por outro lado, não pode ser ignorado o facto de os osteopatas serem, regra geral, profissionais de fraca formação académica, para além de manterem o espírito assombrado pela sensação de inferioridade face aos fisioterapeutas no que respeita à aceitação oficial por parte do Serviço Nacional de Saúde. Também a quiroprática possui algo de interessante em termos das suas técnicas de intervenção; porém, ainda não conseguiram especificar cientificamente de que forma é que é possível modificar os estados de corpo através da manipulação do sistema nervoso. Igualmente a acupunctura necessita de traduzir para uma linguagem científica toda aquela nomenclatura de pontos acupuncturais e de meridianos nervosos. Não entendo como ainda não o fizeram, tendo em conta a oficial aceitação da existência de um complexo sistema nervoso que nos integra.
E assim poderia continuar eternamente a especificar que aquilo que falta às medicinas não convencionais é precisamente o escrutínio científico. Até agora, os profissionais das medicinas não convencionais só têm conseguido passar um discurso do tipo “banha da cobra”. Parecem-se com autênticos charlatões, confundem-se com eles e chegam mesmo a sê-lo. Por outro lado, este mesmo discurso de nível esotérico parece resultar às mil maravilhas com as pessoas, principalmente todas aquelas que permanecem desiludidas com as medicinas ditas ortodoxas. Referimo-nos a um efeito psicológico e de placebo que acaba por ser de especial valia para que estas mesmas terapias surtam resultados.
No meio de todas estas terapêuticas, as que mais dificilmente se aceitam são aquelas que estão ligadas à Medicina Tradicional Chinesa. É difícil levar a sério um discurso tão obsessivamente dominado por “energias”, “chakras” e “auras”; um discurso puramente maniqueísta, dominado pela barganha da conversa das forças do “bem” e do “mal”. E pior ainda é conseguir dominar o elevadíssimo número de terapias e métodos que vão surgindo e dominando as mentes daqueles que não resistem à perversidade do marketing. Temos o Shiatsu, a massagem Tuina, as pedras quentes e as pedras frias, os magnetismos, a acupunctura sem agulhas, o Tai-chi, o Chi Kung, e, ainda mais incrível, as terapias de vidas passadas, a cristaloterapia, e outras “rodas da fortuna”.
E tudo isto surge envolto numa aura de sensações, numa rodilha de bem-estar permanente, acompanhado da promessa de intervenção verdadeiramente holística (e todas se dizem melhores e mais holísticas do que as outras), e num espírito de prazer constante. E quando vão os proponentes destas terapias perceber que o verdadeiro crescimento espiritual passa por formas legítimas e obrigatórias de sofrimento? E que o sofrimento é necessário ao crescimento? E que o crescimento depende de uma consciencialização lenta, para a qual estas terapias só poderão dar um parco contributo? Quando vão as pessoas perceber que o mais importante no “efeito placebo” não é o conteúdo da própria terapia, mas sim a qualidade da relação que estabelecem com o profissional? E que a qualidade dessa relação depende da honestidade intelectual?...
Em suma, ao invés de se apresentarem como a panaceia absoluta para todos os males, como a cura magnífica, virá o tempo em que os sérios utilizadores destas terapias serão capazes de assumir que não são milagreiros e que não têm de mexer com tudo, que eventualmente só conseguem mexer com uma parte da pessoa. E que têm de existir obrigatoriamente diferentes paradigmas de intervenção, e que estes têm de ser necessariamente limitativos a determinada dimensão do ser humano. Virá o tempo em que assumiremos que a necessidade de sermos um pouco de tudo, sem limites paradigmáticos, advém de uma desordem interior, de uma necessidade de preenchimento de uma insegurança primária. Virá o tempo em que a lei da parcimónia nos fará ver que muitas das terapias existentes divergem em pouco mais do que a nomenclatura e certos aspectos teoréticos irrelevantes.
Cabe ao profissional sério assumir aos outros e a ele mesmo que é apenas um homem e que não mexe com nada que ultrapasse a própria pessoa. E que não a curará, apenas a apoiará nesse caminho sempre incompleto. E que, enfim, Jesus Cristo já só existe nas nossas cabeças.
Por uma questão de receio social de certas autoridades, as questões relativas à delegação de poderes e responsabilidades em saúde têm conhecido polémicas e contendas acentuadas, apesar de nem sempre reconhecíveis pelo mundo dos leigos da matéria. Em especial, o conflito ideológico existente entre medicinas convencionais e medicinas tradicionais tem marcado lugar na cena social, muito mais do que as disputas entre médicos e outros profissionais de saúde como enfermeiros e fisioterapeutas.
Uma possível jornada pelo mundo específico das medicinas não convencionais só poderá provocar no profissional consciente e reflexivo a maior de todas as angústias. Recentemente, a exposição “Viver Saúde” da Feira Internacional de Lisboa permitiu a muitos curiosos a visita a postos de divulgação das práticas terapêuticas menos convencionais. Nesta mesma exposição ou feira estavam presentes representantes de práticas como a fitoterapia, a acupunctura, a medicina tradicional chinesa, a osteopatia, a massagem desportiva, a quiroprática e a homeopatia. Em diversos stands, podíamos ter acesso a informações diversas acerca da prática dessas diferentes medicinas. Mas estas mesmas informações e actos de divulgação só poderão mesmo levar o curioso à intranquilidade de espírito, principalmente se se trata de um profissional de saúde, cuja formação é altamente do tipo Evidence Based Practice.
Acontece que estas mesmas medicinas não convencionais encontram-se incluídas numa miscelânea de métodos e técnicas com filosofias muito dissemelhantes, histórias muito próprias, e diferentes níveis de seriedade, o que pode deturpar a realidade de quem observa de fora o funcionamento destas práxis clínicas. Por exemplo, o nível de seriedade da osteopatia pode ser comparável ao nível de seriedade da fitoterapia, mas está muito para além do nível de seriedade da homeopatia e de um número interminável de pseudo-métodos. E para complicar ainda mais as coisas, é possível atender ao facto de que não há uma osteopatia, há várias osteopatias, várias escolas de osteopatia. E há também diferentes escolas de Yoga, Tai-chi e quiroprática: umas mais sérias e científicas e outras menos sérias e idóneas. No fim, pagam os justos pelos pecadores e restamos nós os confusos.
Não me restam dúvidas de que há algo de interessante para se perceber e estudar em diversos métodos de intervenção. Algumas escolas de osteopatia possuem realmente certas técnicas de tratamento do sistema somático particularmente interessantes. Pena é que essas mesmas técnicas continuem por explorar, em termos científicos. Por outro lado, não pode ser ignorado o facto de os osteopatas serem, regra geral, profissionais de fraca formação académica, para além de manterem o espírito assombrado pela sensação de inferioridade face aos fisioterapeutas no que respeita à aceitação oficial por parte do Serviço Nacional de Saúde. Também a quiroprática possui algo de interessante em termos das suas técnicas de intervenção; porém, ainda não conseguiram especificar cientificamente de que forma é que é possível modificar os estados de corpo através da manipulação do sistema nervoso. Igualmente a acupunctura necessita de traduzir para uma linguagem científica toda aquela nomenclatura de pontos acupuncturais e de meridianos nervosos. Não entendo como ainda não o fizeram, tendo em conta a oficial aceitação da existência de um complexo sistema nervoso que nos integra.
E assim poderia continuar eternamente a especificar que aquilo que falta às medicinas não convencionais é precisamente o escrutínio científico. Até agora, os profissionais das medicinas não convencionais só têm conseguido passar um discurso do tipo “banha da cobra”. Parecem-se com autênticos charlatões, confundem-se com eles e chegam mesmo a sê-lo. Por outro lado, este mesmo discurso de nível esotérico parece resultar às mil maravilhas com as pessoas, principalmente todas aquelas que permanecem desiludidas com as medicinas ditas ortodoxas. Referimo-nos a um efeito psicológico e de placebo que acaba por ser de especial valia para que estas mesmas terapias surtam resultados.
No meio de todas estas terapêuticas, as que mais dificilmente se aceitam são aquelas que estão ligadas à Medicina Tradicional Chinesa. É difícil levar a sério um discurso tão obsessivamente dominado por “energias”, “chakras” e “auras”; um discurso puramente maniqueísta, dominado pela barganha da conversa das forças do “bem” e do “mal”. E pior ainda é conseguir dominar o elevadíssimo número de terapias e métodos que vão surgindo e dominando as mentes daqueles que não resistem à perversidade do marketing. Temos o Shiatsu, a massagem Tuina, as pedras quentes e as pedras frias, os magnetismos, a acupunctura sem agulhas, o Tai-chi, o Chi Kung, e, ainda mais incrível, as terapias de vidas passadas, a cristaloterapia, e outras “rodas da fortuna”.
E tudo isto surge envolto numa aura de sensações, numa rodilha de bem-estar permanente, acompanhado da promessa de intervenção verdadeiramente holística (e todas se dizem melhores e mais holísticas do que as outras), e num espírito de prazer constante. E quando vão os proponentes destas terapias perceber que o verdadeiro crescimento espiritual passa por formas legítimas e obrigatórias de sofrimento? E que o sofrimento é necessário ao crescimento? E que o crescimento depende de uma consciencialização lenta, para a qual estas terapias só poderão dar um parco contributo? Quando vão as pessoas perceber que o mais importante no “efeito placebo” não é o conteúdo da própria terapia, mas sim a qualidade da relação que estabelecem com o profissional? E que a qualidade dessa relação depende da honestidade intelectual?...
Em suma, ao invés de se apresentarem como a panaceia absoluta para todos os males, como a cura magnífica, virá o tempo em que os sérios utilizadores destas terapias serão capazes de assumir que não são milagreiros e que não têm de mexer com tudo, que eventualmente só conseguem mexer com uma parte da pessoa. E que têm de existir obrigatoriamente diferentes paradigmas de intervenção, e que estes têm de ser necessariamente limitativos a determinada dimensão do ser humano. Virá o tempo em que assumiremos que a necessidade de sermos um pouco de tudo, sem limites paradigmáticos, advém de uma desordem interior, de uma necessidade de preenchimento de uma insegurança primária. Virá o tempo em que a lei da parcimónia nos fará ver que muitas das terapias existentes divergem em pouco mais do que a nomenclatura e certos aspectos teoréticos irrelevantes.
Cabe ao profissional sério assumir aos outros e a ele mesmo que é apenas um homem e que não mexe com nada que ultrapasse a própria pessoa. E que não a curará, apenas a apoiará nesse caminho sempre incompleto. E que, enfim, Jesus Cristo já só existe nas nossas cabeças.
1 comentário:
Acho que não deves falar da maneira que falas das medicinas tradicionais. Em primeiro lugar, não se encontram todas no mesmo saco, em segundo lugar, o grau de formação das diversas medicinas tradicionais é bastante diverso. Dou-te o exemplo da osteopatia, tirei um curso de duração de cinco anos, e que só poderia ser frequentado por fisioterapeutas, logo não me parece que sejam "profissionais de fraca formação académica". Por outro lado, na prática clinica, os resultados da osteopatia são bastante evidentes para quem trabalha com esta medicina. É verdade que no meio disto tudo existem bastantes "charlatões", mas não pode ser considerada uma regra.
Para finalizar gostava de te felicitar pelo excelente espaço que aqui tens, continua assim. abraço
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