domingo, janeiro 28, 2007

O manifesto anti-desportivo ou a revolução na metodologia do treino?

(Texto completo; publicado parcialmente na revista SportLife, Fev. 2007)

Nunca a prática consistente de actividade física e/ou desportiva exerceu um fascínio tão grande nas pessoas como na actualidade. Nos tempos modernos, destros na avaliação social com base no aspecto físico, é cada vez mais comum a prática globalizada e mantida de exercício físico. Os ginásios enchem-se de pessoas, seres assaz narcisistas, ou eventualmente padecedores de uma qualquer maleita, clientes imbricados na actividade maquinista do trabalho muscular fadigoso. E como se não bastasse o número crescente e exponencial de clientes, as actividades desportivas proliferam e reinventam-se numa série de laborações comerciais, dos quais certos estrangeirismos como stretching, step, cycling, body sculpt, powerfit, body pump, body push, body defense, totalfitness, new balance, entre muitos outros, constituem marcante exemplo. Para além deste número exacerbado de práticas físicas aparentemente dissemelhantes, as práticas ditas holísticas têm conseguido marcar o seu lugar de destaque dentro deste “conflito de escolhas”. Assim sendo, temos o Pilates, o Yoga, o hold-relax, e até as mais alternativas como o Chi-Kung ou o Tai Chi Chuan. Há também quem prefira as misturas, os nomes complexos, as miscelâneas de diferentes nomenclaturas que permeiam o vácuo das mentes curiosas. Daí o sucesso do PNF-chi ou do YogiPilates. Mas este texto não é sobre o maquinismo comercial existente neste mundo cada vez mais intrincado que é o do fitness ou o do fitwell. Este texto pretende arraigar o mundo desportivo na sua globalidade, desde os desportos mais clássicos. Este texto pretende argumentar que todos os desportos, desde os mais antigos até às primorosas (re)invenções da actualidade apresentam no seu conjunto uma poderosa limitação, relacionada com o funcionamento do sistema músculo-esquelético. Eis que urge a necessidade de esclarecer as pessoas de que, no ponto de vista articular, não há praticamente qualquer modalidade desportiva que se apresente como saudável ou recomendável, independentemente de o desporto ser ou não realizado dentro de água. Falo, volto a repetir, da perspectiva da saúde das nossas estruturas músculo-esqueléticas. Outras (des)vantagens potenciais dos desportos não são objecto deste texto. É preciso entender que o mais importante factor que expressa a saúde futura das nossas articulações, e potenciais reumatismos, consiste na nossa postura. Quando me refiro à postura corporal falo do conjunto dos eixos que expressam determinado alinhamento articular. Não me refiro só à coluna e às suas cifoses, lordoses ou escolioses. Refiro-me ao alinhamento de todas as estruturas segmentárias do corpo, incluindo a existência de valgismo ou varismo, flexum ou recurvatum, dos cotovelos, punhos, ancas, joelhos, pés e dedos. Estas idiossincrasias de alinhamento corporal estão dependentes de inúmeros factores, uns aparentemente menos modificáveis e outros potencialmente adquiridos com a evolução e/ou maturação corpórea. Mas, indubitavelmente, são os músculos que irão desempenhar o principal papel de escultores do equilíbrio postural. São os músculos que, agindo como tirantes mecânicos, puxam para fora ou para dentro, para trás ou para a frente determinadas estruturas ósseas onde se inserem, dependendo da dispersão de forças que os movem (e para além dos músculos, são talvez ainda mais às fáscias e os tendões resistentes que exercem o seu papel de escultores posturais). Ora, nesta batalha de forças musculares, o alinhamento postural das articulações tende a estar dependente sobretudo de um tipo de força que é exercida de forma constante sobre as estruturas ósseas, ou seja, da contracção da musculatura tónica ou postural (e não tanto da musculatura fásica relacionada com o movimento). Acontece que a quase totalidade dos desportos ou actividades físicas existentes têm por objecto a chegada a determinado fim ou a criação de determinado trabalho muscular dinâmico, sem ter em conta a existência do citado conjunto de forças de equilíbrio. Por outro lado, apesar de o trabalho muscular da maioria dos desportos existentes ser do tipo dinâmico, não deixa a musculatura tónica ou estática de ser continuamente recrutada, chamada para um trabalho constante, sem qualquer tipo de atenção ao tipo de equilíbrio de forças que se está a gerar. Assim sendo, quase todos os desportos existentes, principalmente as actividades que fazem uso de pesos ou outras resistências, imprimem no corpo um conjunto de desequilíbrios musculares muitas vezes difíceis de destrinçar. E quanto mais séria ou competitiva for a prática desportiva, ou quanto mais assimétrica for essa mesma actividade, maior a probabilidade desse desporto gravar no corpo dos seus praticantes um conjunto oneroso de distúrbios posturais, associados em muito à tendência que essas actividades têm para fazer incrementar os desequilíbrios previamente existentes. Por outro lado, não podemos deixar de atender à maleita que constitui a realização do movimento num corpo consternado por desequilíbrios do alinhamento. Se, por exemplo, um determinado indivíduo possui um joelho excessivamente varo, isso significa que a região interna da articulação do joelho que une fémur com tíbia está sujeita a uma pressão acrescida. Se este mesmo sujeito realizar uma simples actividade como andar rapidamente, ele estará a utilizar a articulação do joelho desalinhada numa série constante de movimentos. Para o indivíduo mais velho, o desgaste associado a tal desequilíbrio segmentário poderá significar uma patologia degenerativa (artrose). E neste mesmo caso, estará errado o profissional que recomendar a este mesmo idoso que ande muito, de modo a libertar a articulação. Para quê movimentar determinada estrutura articular se não houve um prévio realinhamento dos segmentos? Qualquer actividade física realizada numa articulação não alinhada irá somente aumentar o nível de desgaste de natureza viciosa dessa mesma articulação. Imaginemos agora toda esta mesma história mas para actividades físicas mais vigorosas do que o simples andar.Eis, então, que surge o momento de explicar onde reside a potencial solução para estes mesmos desequilíbrios do alinhamento articular. Ora, se a contracção concêntrica das estruturas (em que assenta a maioria dos desportos praticados) leva ao encurtamento dos músculos, as actividades de alongamento muscular libertam estas mesmas estruturas musculares que se relacionam e inserem nos segmentos ósseos. Ou seja, somente a actividade de alongamento muscular poderá permitir refrear o conjunto de forças musculares que, de forma poderosa, impõe determinado alinhamento articular. Apenas o estiramento muscular eficaz poderá permitir deformar as estruturas moles que puxam os tirantes mecânicos do corpo. Assim sendo, é fundamental realizar alongamentos durante e após qualquer actividade desportiva, de modo a diminuir a tendência que o conjunto de forças que se despertaram na actividade exerceram de modo a criar desalinhamento segmentar. Mas aqui a revolução desportiva que proponho não existe, pois já é comum realizar alongamentos durante e, sobretudo, após a actividade desportiva. No entanto, já não se poderá dizer que essa prática de alongamentos seja correcta ou ajustada às necessidades plenas de cada indivíduo. Ora, é indubitável a necessidade de que cada desportista realize os alongamentos mais caros ao conjunto das suas necessidades de (re)alinhamento corporal. E esse mesmo alongamento não deve ser analítico, como é típico na actividade desportiva. O alongamento deve ser realizado da forma mais global possível, de modo a estirar cadeias musculares ao invés de músculos isolados. Uma modificação postural significativa implica a realização congruente de estiramentos globais das cadeias musculares, insistindo particularmente na secção mais convergente ou retraída dessa cadeia. Não pode deixar de ser dito que quase todos os desportos existentes à face do planeta constituem uma súmula de esforços perniciosos para o sistema músculo-esquelético. É impossível continuar a negar a evidência que muitas teorias fundamentais, assim como uma certa investigação, têm vindo a colocar à superfície. O trabalho realizado na maioria das actividades físicas, centrado fundamentalmente na força muscular, alimenta os desequilíbrios e acentua a tensão nas cadeias musculares. E qualquer esforço, por maior que seja, de compensar esses esforços com a realização de alongamentos não deixará de constituir um acto de compensação minoritária. Dar “uma no cravo e outra na ferradura” fará com que o equilíbrio corporal se mantenha praticamente inalterado. Assim sendo, aquilo que verdadeiramente se recomenda é a realização de uma prática física não competitiva, isenta de grandes esforços, plena de diversos movimentos, mais centrada na actividade cardiovascular ou na resistência aeróbia. E essas mesmas actividades aeróbias devem ser o mais variadas possíveis, sendo que não deve ser mantida a prática constante de exactamente a mesma actividade, com os mesmos movimentos, durante tempos muito prolongados. A força muscular está dependente sobretudo da qualidade de funcionamento da articulação. Uma articulação bem alinhada e funcionante será sempre provida de um músculo forte. E essa estrutura articular manter-se-á funcional. Aliás, é sempre de função que tudo se trata. Devemos ter em vista a realização de actividades que permitam melhorar a nossa funcionalidade do dia a dia. Ter muita força ou massa muscular não servirá de nada, a não ser para submeter o corpo a uma tensão excessiva. No caso de ser necessário realizar actividades mais duras, o corpo poderá ser inclusive ensinado a trabalhar com mais eficácia, de modo a fazer mais e melhor com menos esforço, como é apanágio de certos métodos terapêuticos como a técnica Alexander e o método de Feldenkrais, praticamente desconhecidos do mundo do fitness. Ainda assim, qualquer actividade física, por mais variada ou ligeira que seja, irá ser perniciosa se for realizada em estruturas articulares não alinhadas. Para além de que qualquer treino de actividade muscular realizado em estruturas não alongadas irá, provavelmente, criar tensão sobre tensão. Ora, eis então a principal premissa daquilo que entendo constituir uma revolução na metodologia do treino: antes de se realizar qualquer actividade física, o corpo deverá ser prévia e globalmente alongado, a frio, por longos períodos de tempo. Ou seja, estruturas não preparadas deverão ser sujeitas a uma tensão de estiramento global, mantida por um certo período de tempo, sem força excessiva (esta só alimenta as compensações, para além de que pode constituir perigo para a saúde das estruturas em alongamento). O alongamento deverá ser global, proporcionando o (re)alinhamento articular com base no trabalho centrado nas cadeias musculares. Só depois de se ter dedicado parte do tempo de treino ao alongamento é que se pode incorrer no trabalho dinâmico. Este far-se-á num corpo em que as articulações já foram previamente libertadas; este far-se-á num corpo em que a musculatura já possui um comprimento singelo, facilitador do trabalho muscular; este far-se-á num corpo previamente descomprimido, liberto da tensão excessiva, sendo que assim não estamos a aumentar a tensão num corpo já tenso. As premissas e alguns postulados do que aqui afirmo partem inicialmente do conceito das cadeias musculares de Mézières, mas têm sido colocados no terreno da escrita fundamentalmente por Ph. E. Souchard nos seus livros dedicados à Reeducação Postural Global e ao Stretching Global Activo. Por tudo o que aqui ficou dito, não é de estranhar que os escritos mais importantes de Françoise Mézières se tenham intitulado “revolução na ginástica ortopédica”, assim como o método da sua discípula Bertherat, assente na consciencialização e no relaxamento, tenha tomado o nome de antiginástica...
Estes métodos podem fornecer tantas inovações ao mundo do desporto, assim como podem contribuir para gerar o conceito de “uma nova cultura física”.
É pena que a maioria dos instrutores de fitness não conheça estes sistemas de trabalho terapêutico, e não procure saber mais acerca do alongamento global. Também não admira, se tivermos por exemplo em conta que a obra de Bertherat “Le corps a ses raisons” (traduzida tristemente para português para o título “Dê saúde ao seu corpo: a saúde pela antiginástica”, editora Europa-América), muito reveladora acerca dos princípios atrás enunciados, encontra-se esquecida e perdida algures no passado. Por outro lado, a compreensão procedente destes conceitos implica a formação especializada dos instrutores, o que parece existir cada vez menos, visto que muitos instrutores de fitness não possuem uma formação de base superior na área do sistema locomotor. A meu ver, o mundo do fitness e o mundo da saúde são inseparáveis, pelo que a formação especializada dos profissionais e a aceitação mínima de uma nova forma de ver o desporto e a actividade muscular constituem um requisito fundamental ao respeito pela fisiologia normal do desportista.

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