segunda-feira, setembro 25, 2006

Medicinas não convencionais: o complexo de Jesus Cristo

É bem provável que nos tempos próximos, dados ao manifesto crescente de um constructo de conhecimentos acerca dos princípios éticos, de gestão e organização dos serviços de saúde, a sociologia da saúde venha a conhecer um desenvolvimento notável, muito maior do que aquele que tem vindo a relevar-se nas últimas décadas. A questão das hierarquias e dos poderes, da distribuição mais ou menos equitativa dos recursos, dos conflitos de poder e das lutas variadas pela autonomia profissional, marcam o processo normal do funcionamento das organizações de saúde, em geral, e hospitalares, em particular.
Por uma questão de receio social de certas autoridades, as questões relativas à delegação de poderes e responsabilidades em saúde têm conhecido polémicas e contendas acentuadas, apesar de nem sempre reconhecíveis pelo mundo dos leigos da matéria. Em especial, o conflito ideológico existente entre medicinas convencionais e medicinas tradicionais tem marcado lugar na cena social, muito mais do que as disputas entre médicos e outros profissionais de saúde como enfermeiros e fisioterapeutas.
Uma possível jornada pelo mundo específico das medicinas não convencionais só poderá provocar no profissional consciente e reflexivo a maior de todas as angústias. Recentemente, a exposição “Viver Saúde” da Feira Internacional de Lisboa permitiu a muitos curiosos a visita a postos de divulgação das práticas terapêuticas menos convencionais. Nesta mesma exposição ou feira estavam presentes representantes de práticas como a fitoterapia, a acupunctura, a medicina tradicional chinesa, a osteopatia, a massagem desportiva, a quiroprática e a homeopatia. Em diversos stands, podíamos ter acesso a informações diversas acerca da prática dessas diferentes medicinas. Mas estas mesmas informações e actos de divulgação só poderão mesmo levar o curioso à intranquilidade de espírito, principalmente se se trata de um profissional de saúde, cuja formação é altamente do tipo Evidence Based Practice.
Acontece que estas mesmas medicinas não convencionais encontram-se incluídas numa miscelânea de métodos e técnicas com filosofias muito dissemelhantes, histórias muito próprias, e diferentes níveis de seriedade, o que pode deturpar a realidade de quem observa de fora o funcionamento destas práxis clínicas. Por exemplo, o nível de seriedade da osteopatia pode ser comparável ao nível de seriedade da fitoterapia, mas está muito para além do nível de seriedade da homeopatia e de um número interminável de pseudo-métodos. E para complicar ainda mais as coisas, é possível atender ao facto de que não há uma osteopatia, há várias osteopatias, várias escolas de osteopatia. E há também diferentes escolas de Yoga, Tai-chi e quiroprática: umas mais sérias e científicas e outras menos sérias e idóneas. No fim, pagam os justos pelos pecadores e restamos nós os confusos.
Não me restam dúvidas de que há algo de interessante para se perceber e estudar em diversos métodos de intervenção. Algumas escolas de osteopatia possuem realmente certas técnicas de tratamento do sistema somático particularmente interessantes. Pena é que essas mesmas técnicas continuem por explorar, em termos científicos. Por outro lado, não pode ser ignorado o facto de os osteopatas serem, regra geral, profissionais de fraca formação académica, para além de manterem o espírito assombrado pela sensação de inferioridade face aos fisioterapeutas no que respeita à aceitação oficial por parte do Serviço Nacional de Saúde. Também a quiroprática possui algo de interessante em termos das suas técnicas de intervenção; porém, ainda não conseguiram especificar cientificamente de que forma é que é possível modificar os estados de corpo através da manipulação do sistema nervoso. Igualmente a acupunctura necessita de traduzir para uma linguagem científica toda aquela nomenclatura de pontos acupuncturais e de meridianos nervosos. Não entendo como ainda não o fizeram, tendo em conta a oficial aceitação da existência de um complexo sistema nervoso que nos integra.
E assim poderia continuar eternamente a especificar que aquilo que falta às medicinas não convencionais é precisamente o escrutínio científico. Até agora, os profissionais das medicinas não convencionais só têm conseguido passar um discurso do tipo “banha da cobra”. Parecem-se com autênticos charlatões, confundem-se com eles e chegam mesmo a sê-lo. Por outro lado, este mesmo discurso de nível esotérico parece resultar às mil maravilhas com as pessoas, principalmente todas aquelas que permanecem desiludidas com as medicinas ditas ortodoxas. Referimo-nos a um efeito psicológico e de placebo que acaba por ser de especial valia para que estas mesmas terapias surtam resultados.
No meio de todas estas terapêuticas, as que mais dificilmente se aceitam são aquelas que estão ligadas à Medicina Tradicional Chinesa. É difícil levar a sério um discurso tão obsessivamente dominado por “energias”, “chakras” e “auras”; um discurso puramente maniqueísta, dominado pela barganha da conversa das forças do “bem” e do “mal”. E pior ainda é conseguir dominar o elevadíssimo número de terapias e métodos que vão surgindo e dominando as mentes daqueles que não resistem à perversidade do marketing. Temos o Shiatsu, a massagem Tuina, as pedras quentes e as pedras frias, os magnetismos, a acupunctura sem agulhas, o Tai-chi, o Chi Kung, e, ainda mais incrível, as terapias de vidas passadas, a cristaloterapia, e outras “rodas da fortuna”.
E tudo isto surge envolto numa aura de sensações, numa rodilha de bem-estar permanente, acompanhado da promessa de intervenção verdadeiramente holística (e todas se dizem melhores e mais holísticas do que as outras), e num espírito de prazer constante. E quando vão os proponentes destas terapias perceber que o verdadeiro crescimento espiritual passa por formas legítimas e obrigatórias de sofrimento? E que o sofrimento é necessário ao crescimento? E que o crescimento depende de uma consciencialização lenta, para a qual estas terapias só poderão dar um parco contributo? Quando vão as pessoas perceber que o mais importante no “efeito placebo” não é o conteúdo da própria terapia, mas sim a qualidade da relação que estabelecem com o profissional? E que a qualidade dessa relação depende da honestidade intelectual?...
Em suma, ao invés de se apresentarem como a panaceia absoluta para todos os males, como a cura magnífica, virá o tempo em que os sérios utilizadores destas terapias serão capazes de assumir que não são milagreiros e que não têm de mexer com tudo, que eventualmente só conseguem mexer com uma parte da pessoa. E que têm de existir obrigatoriamente diferentes paradigmas de intervenção, e que estes têm de ser necessariamente limitativos a determinada dimensão do ser humano. Virá o tempo em que assumiremos que a necessidade de sermos um pouco de tudo, sem limites paradigmáticos, advém de uma desordem interior, de uma necessidade de preenchimento de uma insegurança primária. Virá o tempo em que a lei da parcimónia nos fará ver que muitas das terapias existentes divergem em pouco mais do que a nomenclatura e certos aspectos teoréticos irrelevantes.
Cabe ao profissional sério assumir aos outros e a ele mesmo que é apenas um homem e que não mexe com nada que ultrapasse a própria pessoa. E que não a curará, apenas a apoiará nesse caminho sempre incompleto. E que, enfim, Jesus Cristo já só existe nas nossas cabeças.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Para o caso de alguém me querer contactar, o meu número de telemóvel é o 963304478. Dou o número, pois, por vezes, há por aí alguém que queira discutir algum assunto ou conhecer algum sistema de intervenção. Mas, sobretudo, o mais importante é a criação de empatias.

domingo, setembro 10, 2006

Mais uma vez o dia mundial da fisioterapia passou sem que existisse qualquer anúncio significativo da sua existência. Por outro lado, fiquei contente com a publicação do meu artigo sobre métodos de Reeducação Postural na revista Saúde Actual. Esperaria ter algum tipo de colaboração mais permanente. É desesperante a ausência de fisioterapeutas a escreverem para revistas de saúde mais ou menos especializadas. Não sei se é por medo, se falta a auto-estima aos nossos profissionais. Por outro lado, a minha compulsão para a escrita e a publicação não deixa de derivar de uma espécie de "desordem interior", uma cabal obsessão. Actualmente, ando com vontade de desenvolver projectos de investigação acerca de várias temáticas: levantamento dos conhecimentos acerca dos métodos de reeducação postural e necessidades de formação nesta área é um exemplo entre muitos dos que poderão ser prosseguidos. Se algum aluno do último ano de fisioterapia quisesse seguir tal projecto, tal seria brilhante para mim no sentido de poder desempenhar o meu papel de orientador específico.

sábado, setembro 09, 2006

Oito de Setembro: dia mundial da Fisioterapia

Dentro desse prolífico mundo que é o sistema de saúde, a questão relativa aos cuidados de fisioterapia e reabilitação física em geral tem sido permanentemente negligenciada. Agora que se celebra o dia mundial da Fisioterapia, um dia em que diversos profissionais da reabilitação e até mesmo doentes desenvolvem uma série de actividades de divulgação da prática, surge a excelente oportunidade para traçar o perfil de um tipo eterna e progressivamente desprezado de cuidados.
A Fisioterapia constitui muito mais do que uma simples actividade profissional. É a arte do tratamento por meios fundamentalmente naturais. E é uma ciência da postura e da motricidade, fonte inegável de conhecimentos da fisiologia do aparelho locomotor.
Por ter em conta as necessidades pessoais de cada doente em particular, assim como uma visão holística e bio-psico-social do utente, a fisioterapia não é, em termos da sua filosofia basilar de tratamento, muito diferente das medicinas menos convencionais como a osteopatia ou a quiroprática. Entre as diversas “medicinas físicas” vigoram diferenças relacionadas mais com o significante do que com o significado, no sentido da apresentação mais ou menos comercial ou mais ou menos esotérica das diferentes práticas. Na prática propriamente dita, nos seus ditames conteudísticos, as diferenças entre os dissemelhantes cuidados citados são pequenas, talvez com a diferença primária centrada nos aspectos históricos e com as distintas práticas e atitudes relativas à investigação.
Por ser de natureza holística, e pelo facto de o corpo constituir um ente indivisível em si mesmo e com a mente, a prática da fisioterapia não pode ser realizada por partes ou divisões, numa relação fragmentada entre diferentes profissionais de saúde. Acontece que o sistema de saúde, para além dos diferentes subsistemas, pressupõe a realização de tratamentos de fisioterapia como se de um catálogo de vendas se tratasse. Os tratamentos têm nomes específicos, códigos determinados e tarifas regulamentadas. Os aspectos decisórios relativos ao que é ou não realizado no doente pertencem oficialmente ao médico fisiatra e não ao fisioterapeuta. Assim sendo, após uma consulta médica da especialidade, o doente vem “rotulado” com uma prescrição de tratamentos como se os actos de fisioterapia fossem divisíveis como diferentes comprimidos com diferentes objectivos. Negligencia-se, portanto, a natureza indivisível da arte terapêutica, constituída por uma série de actos que são, no fundo, um só acto, assim como as diferentes notas musicais são melodia e esta constitui um todo indissociável, constituído por muito mais do que a soma das notas musicais que o compõem.
Assim sendo, a fisioterapia só pode constituir um acto de eclectismo fundamental, baseado na ciência da reabilitação, assim como esta assenta numa combinação sempre complexa de diferentes técnicas e métodos terapêuticos, muitas vezes extremamente semelháveis entre si. Por outro lado, certos métodos, como a reeducação postural, que partem das consequências para as causas dos sintomas, e permitem a análise e reeducação da base corpórea e postural da qual deriva e decorre a maioria dos problemas reumáticos do doente, constituem uma verdadeira terapia de base funcionante, um pouco como a psicanálise da ciência/arte da mente.
Como prescrever medicamente este tipo de actividade terapêutica? Como “ordenar” um tipo de actividade que compõe um acto de escultura corporal? É obviamente impossível fazê-lo! Mas, de qualquer maneira, a questão pode até nem ser muito relevante, pois este tipo de actividade de fisioterapia especializada só está à mercê de uma minoria de fisioterapeutas (estes sim, os verdadeiros escultores, e como tal, os verdadeiros decisores), que possuem o tempo, disponibilidade, interesse e dinheiro suficientes para adquirirem a formação pós-graduada requerida. Por outro lado, quem, nos tempos que correm, se interessa por uma prática terapêutica de efeitos lentos apesar de globais? E será que interessa às clínicas privadas de fisioterapia que por aí abundam a realização de uma prática morosa centrada num só doente, que ainda por cima terá como efeitos a prevenção da totalidade dos problemas músculo-esqueléticos do mesmo, levando à redução da necessidade dos diferentes cuidados continuados de fisioterapia?...
Eis que começam a emergir as questões sócio-políticas da fisioterapia e da saúde em geral. Usualmente, os utentes de cuidados de fisioterapia demoram-se semanas a meses a tratar muitas vezes disfunções que poderiam ser resolvidas em poucos dias. Isso acontece não só por descuidos no diagnóstico e pela fraca formação de muitos fisioterapeutas, mas também pelo facto de os doentes serem comummente sujeitos a regimes esgotantes de sessões de fisioterapia que parecem não ter fim. Os doentes são tratados muitas vezes com técnicas medíocres, por auxiliares de fisioterapia com pouca formação. Na altura de serem tratados por fisioterapeutas, os doentes tendem a deparar-se com um profissional cheio de trabalho, esgotado pelas exigências do regime de trabalho a que se encontra vinculado. Se o doente realiza fisioterapia com uma credencial da “Caixa da Previdência” terá direito ao menos possível e será provavelmente tratado em conjunto com muitos outros doentes (pena que o Governo não valorize a importância da fisioterapia; talvez pense que não deve investir dinheiro e recursos na população majoritária na utilização dos cuidados de saúde: os idosos). Se estamos a falar de um doente de um bom seguro as coisas melhoram para ele. E se estamos a falar de um doente particular, aí é provável que o mesmo já tenha direito às tais técnicas de fisioterapia global e especializada (mas, mesmo assim, o que pode ser feito em quatro sessões é feito em oito ou doze, para que o rendimento seja maior).
É tudo uma questão relativa à relação custo-benefício. Apenas o bom profissional, com uma formação ética imaculada, poderá fazer a diferença no seio das constrições do sistema! Mas são precisamente estes profissionais, e todos os outros com formação mais abrangente, que começam a constituir a excepção e não a regra neste país. Afinal de contas, a competição entre as crescentes escolas de fisioterapia é enorme, e a mesma só pode ser balizada pela criação de cedências, ao invés de se promover a exigência. Por outro lado, muitas das clínicas particulares de que falamos não estão interessadas num profissional de qualidade, pois este pode colocar em risco os necessários percursos de pactuação com o sistema. Preferem um profissional menos formado que tenha grandes capacidades de tratamento célere do maior número possível de doentes.
Assim sendo, e acrescentando o crescente número da oferta de fisioterapeutas em relação à procura, a profissão vai decrescendo em termos de qualidade e aperfeiçoamento. Tendo em conta a contextura de um crescente número de profissionais, deveria ser valorizado o profissional eficiente, com mais formação científica e especializada. Ou seja, deverá acabar a filosofia do “mais um fisioterapeuta”, trabalhador manual que faz o que outro poderia fazer, para ser arreigada a filosofia do “fisioterapeuta especializado e dedicado”, profissional conhecedor de eleição, capaz de realizar o que muitos outros não têm ainda capacidade para fazer.
As carências de reconhecimento profissional, a falta de investimento tecnológico, a existência de falsos fisioterapeutas a trabalhar, as fracas condições de trabalho, as parcas remunerações e todo um outro conjunto de questões implicariam uma defesa oficiosa da classe por parte de uma Ordem profissional. Mas ainda estamos longe desse passo, pois os fisioterapeutas nem são reconhecidos como profissionais autónomos, antes como parte de um rótulo de “profissionais de diagnóstico e terapêutica”. Pena é que sejam os doentes que mais percam com todas estas deficiências!...

sexta-feira, setembro 01, 2006

E a reabilitação física? Os cuidados de saúde eternamente desprezados

Texto escrito há alguns meses que nunca foi publicado:


O sistema de saúde é, em grande medida, o espelho dos valores dominantes de cada país, reflectindo o seu contexto social, cultural e económico. Como valor fundamental, a saúde da população (física, psicológica e social) reflecte o estado da arte da prestação funcional do povo, em termos laborais, culturais e familiares. O desenvolvimento de um país depende, em larga escala, da qualidade dos serviços que atestam as nossas capacidades físicas e mentais, que o mesmo será dizer que o funcionamento do Sistema de Saúde constitui um dos principais indicadores do estado de maturação social da nação.
Assim sendo, preocupa correntemente os actores sociais o estado da arte da saúde em Portugal. Preocupa muito especialmente os órgãos de comunicação social, sendo que comummente os mesmos se vêem submersos por todo um conjunto de questões polémicas e sensíveis à opinião pública: as listas de espera cirúrgicas, a política do medicamento, os deficientes cuidados de hospitalização, o défice de médicos nos centros de saúde, entre outras.
Por vezes, a comunicação social vê-se inclusivamente preocupada com questões de saúde indubitavelmente mais relevantes, como é o caso da nova política dos cuidados continuados, sobrepujando a minimalista visão da saúde como compreendendo um sistema que integra unicamente os cuidados primários e os cuidados hospitalares.
Porém, eis que chega o momento de reflectirmos sobre um tipo específico de assistência em saúde, esta sim num decrescendo de importância relativamente ao tratamento mediático: a reabilitação física.
Tendo em conta a evolução da cronicidade de inúmeras patologias e disfunções, é provável que a maioria da população venha a necessitar, em algum dia das suas vidas, de um ou mais tratamentos de fisioterapia. O futuro da capacidade laboral e da qualidade de vida dessa mesma população está claramente dependente da qualidade dos cuidados prestados, pelo que é importante que o cidadão tenha acesso à mais qualificada intervenção com o mais qualificado dos profissionais.
Assim sendo, é indubitável a necessidade de conceber um atendimento o mais personalizado que for exequível, com um profissional o mais credenciado possível e tratamentos especializados e qualificados para a concepção da melhoria da qualidade de vida a curto, médio e longo prazo. O tratamento dos utentes deverá ter em conta certos princípios e valores, como a equidade e universalidade de acesso aos tratamentos, não esquecendo a indissolúvel componente humana.
Tendo em atenção toda a cientificidade e complexidade envolvida na esquemática dos tratamentos de fisioterapia, desde as técnicas de acção clínica analítica até aos mais abrangentes paradigmas teoréticos de intervenção terapêutica, a diferença na qualidade dos tratamentos residirá, em grande parte, na qualidade e formação do fisioterapeuta e na organização e condições dos cuidados prestados, assim como nas necessárias condições de autonomia da profissão, exercida com o máximo de rigor e cuidado, tendo sempre em conta a efectuação de uma intervenção adequada à avaliação previamente realizada.
Pura ilusão a dos que pensam que algo do que ficou dito corresponde à realidade! Puro engano de alma, no sentido mais camoniano da expressão. Neste país, o avanço dos cuidados de medicina e da própria sociedade está longe de ser acompanhado pelo desenvolvimento dos cuidados de fisioterapia. E este atraso, esta anquilose tem por base, sobretudo, o tipo de tratamento que o sistema de saúde tem dado e continua a dar aos cuidados de reabilitação física.
Ao invés de ser visto como um todo, o doente dos serviços de fisioterapia é repartido em bocados pelo sistema de saúde, sendo que não há uma intervenção global mas sim um conjunto de modalidades de fisioterapia. Estas mesmas valências terapêuticas aparecem ignominiosamente “prescritas” por um médico fisiatra no papel, sendo que aquilo que deveria ser uma visão holística do doente se transforma num conjunto de ordens de trabalho manual e sectário, ordeiramente obedecidas pelo profissional que não quer perder o seu emprego (e só isso evita toda a possibilidade de dissonância cognitiva).
Às modalidades prescritas em papel correspondem quase sempre técnicas de execução rápida e pouco técnica, com efeito imediato e a curto prazo. Tal deve-se não só à falta de conhecimento de muitas das mais especiais técnicas de tratamento por parte dos médicos fisiatras (comummente envolvidos em questões burocráticas, muitas vezes pouco preocupados com os próprios doentes) como também à inviabilidade financeira da execução de técnicas especiais com doentes que não chegarão a render...
Acontece que os pagamentos feitos pelo Serviço Nacional de Saúde relativamente às modalidades de fisioterapia são uma verdadeira miséria (estão ao nível dos cêntimos), fazendo com que um doente do SNS não constitua fonte de rendimento para uma clínica. Na realidade, um doente do SNS não chega sequer a ser tratado por um fisioterapeuta credenciado, sendo que passa apenas pelas mãos de auxiliares sub-formados, menos bem pagos que os fisioterapeutas.
Por outro lado, atendendo à submersão do mercado por tão grande número de fisioterapeutas (formados nas novas escolas que nasceram e proliferaram como cogumelos), não restará muito tempo para que os próprios fisioterapeutas venham a fazer o trabalho espúrio dos auxiliares, com um pagamento igualmente espúrio e uma respeitabilidade diminuta.
A realidade não é muito diferente se tivermos em conta os diferentes subsistemas de saúde, quase todos relegando os cuidados de fisioterapia para um plano verdadeiramente secundário, valorizando somente os tratamentos sintomáticos e esquecendo a importância da prevenção secundária e terciária.
O resultado será a contínua depreciação dos cuidados de fisioterapia e do próprio fisioterapeuta, a insatisfação do profissional com o consequente crescimento das suas ignomínia e inépcia baseadas na falta de prática de uma avaliação/intervenção coerentes, e a insatisfação do próprio cidadão, principalmente aquele que não quis (ou não pode) apostar financeiramente nos cuidados de fisioterapia. A insatisfação do cidadão, transformada em descrença na fisioterapia, levará a que o mesmo procure opções menos credíveis, quase sempre no seio de um mercado paralelo e ilegal.Agora que o Governo estabeleceu o novo projecto das redes de cuidados continuados, talvez se venham a lembrar das necessidades de reabilitação física de um povo progressivamente incapacitado.

É difícil ser-se fisioterapeuta! Mas mais difícil ainda é a sensação constante de nos sentirmos diferentes. Quando me refiro à minha diferença estou a falar da minha tendência para ser perfeccionista, para fazer as coisas tal como elas devem ser feitas, segundo o máximo que sabemos para ajudar as pessoas. Porém, todos os dias vão surgindo obstáculos: doentes difíceis, médicos fisiatras que pretendem sempre embotar a nossa criatividade, etc. Mas pior que tudo é o desrespeito! Chegamos ao ponto de que auxiliares de fisioterapia, sem qualquer formação superior, aliás sem qualquer formação que valha a pena referir, pensam que estão ao nosso nível ou mesmo que mandam em nós. É triste que não sejamos respeitados pelo que conseguimos ser e fazer.