quinta-feira, agosto 02, 2007

A indústria do fitness: a falácia da nova medicina

Em primeiro lugar, é preciso salientar que, aparte esse tão usado e reciclado estrangeirismo (“fitness”), também as palavras “nova” e “medicina” deveriam vir acompanhadas de aspas, porventura incontáveis aspas e reticências; isto porque não só a prática gímnica não constitui verdadeira “nova arte”, como o termo “medicina” se refere a uma actividade profissional de cambiantes constituintes extremamente complexas e multidimensionais. Mas este texto não pretende definir conceitos. Este é mais um texto de alerta, de um “alerta” que desfalece, que desprimora, que raramente ousa tocar os augúrios conteudísticos da comunicação social ou da opinião pública. E falo de um alerta relevante: falo do perigo da prática gímnica, tal como preconizada actualmente na nossa sociedade.
Desde tempos imemoriais que a prática física tem acompanhado o evoluir da sociedade, em inúmeros aspectos mais ou menos formais. Por exemplo, com o surgimento das cidades-estados na antiguidade do século VIII a.C., os jogos tornaram-se uma actividade comum e importante da vida em sociedade. Chamados para a guerra a qualquer momento, os cidadãos das cidades-estados guerreiras procuravam sobreviver através de uma boa preparação física e coragem. Por outro lado, os Gregos tinham uma unidade de língua e cultura que celebravam com festivais abrilhantados por competições de atletismo, sendo que o mais importante tinha lugar em Olímpia, principal templo de Zeus.
Durante milénios, a prática física perpetuou-se, estando sempre mais ou menos associada à prática de um ou mais desportos específicos, actividades físicas de certo modo sincopadas segundo um código determinado. Mais recentemente, a prática física tem sido vista sobretudo enquanto prática motora, sendo que o conceito de Educação física tem sido preterido a favor do conceito de “ciência da motricidade”, com origem em Merleau-Ponty e continuidade nacional em Manuel Sérgio. Nos seus livros sobre “epistemologia da motricidade humana”, Manuel Sérgio reforça o carácter holístico da pragmática desportiva, vista como prática multimodal e multi-existencial.
Independentemente de ter sido ou não bem sucedido o esforço de alguns de transformar a “prática desportiva” numa arte da condição humana, é inegável que a realização de desportos tem influenciado marcadamente a evolução da nossa sociedade.
Acontece que nunca e em tempo algum se realizou um esforço tão grande como o actual para estudar e divulgar os efeitos e benefícios do desporto sobre a saúde humana. É talvez por isso que certas especialidades médicas começam a proliferar – como a medicina desportiva – e certos cursos de “ciências da motricidade” começam a virar-se para a dimensão da saúde e do bem estar. É talvez agora relevante sublinhar que jamais um desporto foi concebido em termos das suas potencialidades para a saúde do Homem. Todos os desportos ditos “clássicos” possuem uma história própria que não passa, de forma alguma, pela estruturação de um conjunto de gestos com vista à saúde do sistema esquelético do Homem.
É, portanto, aqui que começa a problemática da tão aspirada síntese entre desporto e saúde. A saúde não pode ser conseguida somente pela prática suave de determinados desportos, pois, efectivamente, não há, em termos biomecânicos e cinesiológicos, um desporto que possa ser considerado como uma actividade perfeita (em termos fundamentais de saúde esquelética do Homem). Para além disso, também é frustre a pretensão de se querer que um instrutor de “fitness” constitua um profissional de saúde. O desporto possui inúmeros benefícios, mas esses mesmos benefícios só são conseguidos pela prática arraigada de componentes específicas e bem estudadas de treino desportivo. E ainda devemos considerar que a obtenção de saúde num plano do corpo (ex. cardiovascular) acarrete prejuízo de outro plano corpóreo (ex. músculo-esquelético)...
Muito mais grave que a prática mais ou menos formal de um desporto é a massificação do treino dito de “fitness”. Refiro-me à musculação e a todos os variados ingredientes de uma massa acrítica de actos embrutecidos (com nomes todos eles o mais estrangeiros possíveis). Com gravidade muitas vezes não valorizada, o utente dos ginásios é atendido e seguido por um instrutor muitas vezes sem formação superior, num ritual de treino profundamente desmesurado. Todos os dias observo, nos meus próprios treinos físicos, o erro e a palermice de tantos e tantos exercícios “prescritos” ao desportista. São os exercícios de “fortalecimento das costas” (forçando a obtenção de posturas anormais e claramente patológicas), os alongamentos feitos rapidamente e sem controlo do alinhamento, os movimentos não fisiológicos, os gestos forçados e repetitivos sem qualquer razão de ser, para não citar mais coisas... Pelo que tenho visto, e pela minha avaliação de fisioterapeuta, a grande maioria das actividades realizadas no contexto de ginásio são impróprias para a saúde humana.
Mas, ao mesmo tempo que ocorre a massificação da prática desportiva, com quase meio milhão de portugueses a praticar uma qualquer actividade e com milhares de ginásios abertos ao público, a medicina dita “clássica”, aquela que se preocupa com a fisiologia normal e não tanto com o corpo “condicionado”, perde uma já longa e polémica batalha. Os atestados médicos, indispensáveis desde 1999 para quem queria inscrever-se num ginásio, deixaram de ser obrigatórios, cabendo ao cliente responsabilizar-se pelo seu estado saudável, uma medida que, logicamente, os proprietários das academias desportivas aplaudem.
Ora, é preciso entender que ao retirar por completo a responsabilidade do médico à actividade desportiva do utente, estamos a promover o abandono da sua saúde e a sua perda nos meandros da máquina confrangedora do “fitness” e seus “profissionais”. Estamos, portanto, a entregar um potencial doente cardíaco às mãos de um instrutor não licenciado ou fracamente licenciado que subordina o cliente a correr numa passadeira sem controlo adequado de determinados parâmetros. Estamos a entregar uma doente com uma artrose dos membros inferiores aos famosos “saltinhos” daqueles estúpidos mini-trampolins de VivaFits e companhia. Estamos a entregar um indivíduo com perturbações posturais a um “personal trainer” ou outro instrutor que pensa que reeducação postural consiste em endireitar à força o seu cliente (como tantas vezes tenho visto em aulas de Yoga ou de Pilates). E assim por diante...
Temos, portanto, o mundo do “fitness” ao serviço incrédulo da saúde dos portugueses. E ao que parece os portugueses gostam destas actividades, pois não pára de crescer o número de clientes das academias desportivas. O que muitas destas “vítimas” não sabem é que a indústria do “fitness” é extremamente agressiva. E não possui a mínima vergonha da forma como trata os seus clientes. A meu ver, é impossível separar o mundo do desporto do mundo da saúde. Para mim, que sou profissional de saúde e motricidade, não consigo ver as coisas sem a perspectiva da motricidade e da postura ao serviço da saúde humana. Não corro pelo condicionamento, como ninguém deveria correr ou fazer correr. Corro pela saúde das pessoas e pelo respeito às suas capacidades.
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Publicado no Jornal Público, dia 23 de Agosto de 2007

6 comentários:

Anónimo disse...

e novidades...?

Anónimo disse...

ò sr. anonimo frustrado, novidade ou não ao menos este gajo dá a cara e escreve alguma coisa... sempre prefiro ler novidades e opinioes de ft em portugues sem ter que esperar pelo boletim da apf de julho que so vem em agosto... ao menos alguem faz alguma coisa !

Anónimo disse...

e novidades...?

Anónimo disse...

Meus caros amigos anónimos, em vez de estarem para ai a mandar "bocas" parvas um ao outro que tal informarem-se bem sobre as acusações que este sr. faz a todos os profissionais do Fitness e que são na sua maioria falsas....
Para exemplo, reforço que planos corporais são: sagital, frontal e transversal e não cardiovascular e musculó-esquelético como o sr. "sabe tudo" refere no seu artigo.
Este artigo é unica e exclusivamente uma ofensa à classe médica, à classe fisioterapeuta e aos profissionais do Desporto, por isso, eu como liceinciada em Desporto e Fitness sinto-me profundamente ofendida quando este sr. sita: "Estamos, portanto, a entregar um potencial doente cardíaco às mãos de um instrutor não licenciado ou fracamente licenciado que subordina o cliente...".
Boa pesquisa para quem se quizer informar melhor sobre este asunto.

Anónimo disse...

Cara profissional de desporto e fitness,

Gostei muito da sua reflexão acerca do artigo do senhor sabe tudo! ele também é DIVINO, acrescento eu.

A medida disciplinar aplicada aos "bocas" também é muito lúcida. Boa!!!

Já agora, o termo "liceinciada" é claramente uma gralha! Motivada talvez pelo calor da emoção!? Espero que não seja um estrangeirismo trazido para o papel, lá à moda do norte! Não levem a mal os compatriotas do norte, afinal são mais endinheirados, não se pode ter tudo...

Outra! que não é gralha de certeza! é o termo "sita" que se escreve "cita", significa: acto de citar ou fazer referência a... em suma o termo deveria ser "afirma".

Isto só revela que ninguém sabe tudo, tem a razão toda, blá blá blá que epifania...

Portanto, continuem a medir sei lá o quê, eu já me diverti bastante com vocês... não parem de o fazer por favor!

Mas atenção! o senhor sabe tudo vai na frente! destacadíssimo e com camisola amarela, ai isso é que vai!

Já agora ó divino! Se o anónimo escreve e afirma textos contraditórios é o quê? Num desses livros de que é admirador diz o quê?
Sugestão: publique uma recensão crítica apoiada em Piaget, Chomsky e Gibson. Mas deixe o Prof. Dr. Manuel Sérgio de fora. Se ele sabe que o cita para estas coisas é capaz de se zangar e publicar lá na "Episteme" a dar-lhe um grande tautau! (será que escrevi bem?)

Espero sinceramente que o espírito deste blog seja a blague.Ops! Mais um estrangeirismo, mas de origem francófona! Sempre é diferente! Pode ser ó divino sabe tudo tudo?

Ah! blague, neste caso quer dizer que dá prazer e motiva o riso.

Abraços, beijos e parabéns, adorei, vocês são demais, uns queridos, como se diz em certos círculos de sociedade, aqueles ditos de bem, tão a ver?!

Assinado
O meu nome? Fica para a próxima, tá? Estou com uma crise de coragem, não se pode ter tudo eu avisei!

Anónimo disse...

Acho uma certa piada ao facto de um profissional que se tem em tao boa conta vir denegrir publicamente o trabalho de outros profissionais. Só quem nao sabe é que vem dizer que os profissionais de fitness sao mal preparados e "fracamente licenciados". Como em todo o lado ha pessoas e pessoas e cursos e cursos, mas se formos por esse lado tambem temos muitos fisioterapeutas que tem cursos profissionais, nao chegam a ser licenciados e exercem como fisioterapeutas. Portanto antes de atacar a industria do fitness informe-se e veja que ha muitos "instrutores" de fitness com mais habilitaçoes academicas ao nivel da biomecanica,cinesiologia e fisiologia do que voçe.
Obrigado pelo tempo de antena.