domingo, abril 29, 2007

Françoise Mézières (1909-1991)


"A saúde é o resultado da forma perfeita"

F. Mézières

Tendências

A cifose


A lordose


A bela forma

Mézières é morfologia

Muito mais do que um método mais ou menos licenciado e/ou registado, o método Mézières constitui uma outra forma de ver o corpo. E, dentro desta componente avaliativa, é preciso atender a que o método original/tradicional tem como principal ponto de partida o modelo de “morfologia perfeita”, a “bela forma”. É, portanto, errado afirmar que se desconhece o modelo de “postura perfeita”, visto que os mézièristas estabeleceram como “ideal” a aproximação ao número de ouro (raiz quadrada de cinco mais ou menos um meio), a proporção de um David clássico.
A morfologia é, portanto, o ponto fulminante de avaliação mézièrista, muito mais do que o modelo de avaliação da flexibilidade das cadeias musculares (avaliação numérica da flexibilidade).
À forma “sã” ou “perfeita” contrapõe-se a dismorfia, tendo uma qualquer origem numa lordose patológica, centrada de forma mais ou menos dinâmica no “trilho” da cadeia muscular lordosante.

domingo, abril 22, 2007

Reconstrução Postural. Tradução do Vídeo “The Postural Reconstruction: a innovative kinesitherapy”

O texto que se apresenta seguidamente corresponde a uma tradução realizada a partir do vídeo com o título acima indicado, presente no site http://www.reconstruction-posturale.com/. É sobretudo a base teorética do método mais científico e integral da reeducação postural: a Reconstrução Postural. É preciso atender à possibilidade de existência de alguns “espaços” de tradução mais livre, assim como ao acrescento de notas entre [ ].
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A Reconstrução Postural constitui um método de fisioterapia único que emergiu em 1992. Foi desenvolvido a partir do trabalho de Françoise Mézières, a famosa fisioterapeuta francesa que morreu em 1991. Este método consiste num sistema de técnicas desenhadas para normalizar a tonicidade muscular inerente às mudanças musculares. As modificações musculares e de alinhamento biomecânico são tratadas por um método baseado na evidência...
Similarmente a qualquer outra forma de reabilitação, o objectivo da Reconstrução Postural consiste no alívio da dor do sistema músculo-esquelético e na restauração da função. Desde 1992, a Reconstrução Postural tem tido um longo percurso de trabalho teorético e clínico/prático. O famoso método Mézières, um método fundamentalmente empírico e marginal, tornou-se num trabalho de utilização corrente. O trabalho de Mézières, os seus fundamentos da teoria biomecânica e a sua personalidade carismática contribuíram para atrair milhares de fisioterapeutas de todo o mundo interessados em aprender sobre o método controverso e ousado a partir da própria criadora (Françoise Mézières).
Dez anos depois da morte de Mézières, um observador/estudioso do método da Reconstrução Postural só pode encontrar nele nada mais do que alguns traços do método Mézières. A Reconstrução Postural é actualmente um método autónomo, com técnicas e tácticas próprias, para além de possuir uma independente identidade conceptual.
A Reconstrução Postural: O que é?
Há vários séculos que os “terapeutas” têm tentado entender a origem e o mecanismo das deformações do corpo humano e do seu sofrimento. Os métodos de tratamento costumam ser escolhidos a partir da orientação do terapeuta e da forma como este avalia o alinhamento biomecânico do doente. Assim como algumas pessoas olham para “as montanhas e picos” que naturalmente atraem o olhar, é também verdade que o terapeuta olha de maneira análoga para o conjunto do corpo humano. Ou seja, os terapeutas [e outros profissionais de saúde] têm uma maior tendência para perspectivar os escarpins e as cifoses do corpo antes de olharem para as lordoses. Consequentemente, qualquer tentativa para imaginar o mecanismo responsável pela deformação mecânica presente no corpo do paciente leva a que o observador tenha em consideração o factor gravítico e a inabilidade dos músculos de se contraírem para contrariar a força da gravidade. De facto, todas as técnicas e terapias que se baseiam nesta interpretação das deformações [ou seja, as deformidades com causa em músculos fracos que não conseguem contrariar a força gravítica] tendem a valorizar o papel do “fortalecimento” de certos músculos, como o ‘erector da espinha’. Estas técnicas, todas elas promovem o fortalecimento muscular enquanto estratégia de tratamento da dor e disfunção.
A partir do momento em que os terapeutas passam a concentrar-se no papel das ‘lordoses’ ou concavidades do corpo, o aspecto dominante do corpo que acaba por sobressair consiste num encurtamento muscular que provoca o achatamento destas depressões. O conjunto das lordoses cervical e lombar estão na origem de uma outra zona – dita de transição – que possui o aspecto de uma cifose (dorsal).
Existem inúmeras técnicas de stretching muscular que estão já de acordo com esta forma de ver as deformidades mecânicas. Ainda que muitas dessas técnicas sejam realizadas de uma forma “global”, elas não permitem a correcção manual e individual do terapeuta [portanto, não permitem a correcção das compensações] e o trabalho num sistema neuro-músculo-esquelético visto como um todo. O trabalho de reeducação postural não pode ser feito como se o corpo fosse meramente um elástico gigante.
É preciso entender que os músculos que estão envolvidos nas deformidades posturais possuem uma organização em “cadeias musculares”, o que quer dizer que estão unidos entre si como se fossem “trilhos”. Há quatro cadeias musculares no corpo humano: a longa cadeia posterior, a cadeia anterior da coluna cervical, a cadeia anterior da zona lombar e a cadeia braquial.
Desde há uns tempos para cá que diversos estudos electromiográficos têm demonstrado que o equilíbrio é mantido por contracções musculares constantes e mínimas. Consequentemente, pode perceber-se que as deformidades biomecânicas não são provocadas por fraqueza muscular, assim como as técnicas de reeducação postural não podem partir do fortalecimento muscular.
Nos seres humanos, a posição de pé é controlada pelo tónus muscular, resultando de um controle central inconsciente e involuntário. A Reconstrução Postural baseia-se no pressuposto de que as deformidades biomecânicas e posturais têm origem em desequilíbrios do tónus muscular. Assim sendo, uma terapia, para ser bem sucedida na correcção das deformidades posturais, tem de se basear em técnicas de normalização do tónus muscular postural.
Outros métodos que seguem um modelo semelhante, diferentes da Reconstrução Postural, como o PNF, visam a correcção de desequilíbrios tónicos posturais. Nestes métodos, são utilizadas técnicas de evocação e/ou facilitação da função de modo a induzir respostas distais evocadas. Apesar de a “resposta evocada” ser produzida por uma “indução” específica, ela pode ser generalizada a outros locais...
Em termos de tratamento, as respostas evocadas mais interessantes são aquelas que estão relacionadas com o exacerbar de uma hipertonicidade preexistente, respostas que podem surgir num ponto muito distante do estímulo inicial. Por exemplo, num determinado movimento dos tornozelos do doente [na postura de alongamento da cadeia posterior com o doente deitado em decúbito dorsal e com os membros inferiores elevados, contacto manual do terapeuta nos pés do doente], o terapeuta pode estar a influenciar a posição da cabeça [através do jogo de compensações próprias do corpo], procurando “forçar” a reacção compensatória, agravando-a de propósito, até que surja um novo estímulo capaz de produzir uma resposta correctiva final. Nas imagens [do vídeo], pode ser verificada uma primeira reacção de rotação e flexão lateral da cabeça [como resposta a um estímulo dado no tornozelo]. Este primeiro “estádio” consiste na indução de uma resposta evocada que resulta no exacerbar da deformidade. O segundo estádio consiste na provocação de um estado de exaustão da resposta de hipertonicidade [a tal resposta na forma do acréscimo da deformidade], sendo que se pode observar o regresso da cabeça a uma posição neutra; a manutenção desta posição de neutralidade por vários minutos ira esgotar a reacção patológica de hipertonicidade, assegurando a estabilidade da nova reacção correctora. À semelhança do que acontece com a “terminologia biomecânica”, a distância entre o ponto onde o terapeuta induz a resposta [que podíamos muito bem de apelidar de “ponto-chave de controle”... por motivos lógicos de quem conhece minimamente o método Bobath] e o ponto onde a resposta surge corresponde ao “braço da potência”. Quanto maior o braço de alavanca referido, ou seja, quanto maior a distância entre o ponto de evocação da resposta e o ponto onde esta surge, mais efectivo é o processo de congestão da hipertonicidade e, portanto, de produção de uma resposta correctiva.
O tratamento pela Reconstrução Postural
Depois de ter sido obtido o historial médico do doente, o tratamento pela Reconstrução Postural inicia-se com um sistema completo de avaliação. A avaliação inclui a análise da dinâmica dos desequilíbrios tónicos musculares existentes, assim como se estende à estratificação de estratégias de tratamento com o doente em causa. Por razões que estão relacionadas com a “fiabilidade da avaliação”, esta é realizada sempre com o doente na mesma posição, ou seja, com o doente completamente encostado a uma parede; de resto, toda a avaliação tende a ser feita em posições “naturais”. Nenhumas instruções são dadas, nenhumas correcções são realizadas. O reconstrutor avalia meticulosamente todas as deformações, sendo que o doente é avaliado em quatro posições: anterior, posterior, direita e esquerda. E depois, numa posição especificamente determinada, o doente é avaliado com a posição de flexão à frente com as mãos a tocarem no chão. E, finalmente, o doente é avaliado na posição de decúbito dorsal.
Posteriormente, é realizada a avaliação dinâmica das compensações. Para isso, o reconstrutor faz uso de um conjunto de movimentos fisiológicos estereotipados na mais “fechada” das amplitudes. Estes movimentos exacerbem as deformidades existentes, permitindo a avaliação dos problemas da Estática. Por exemplo, durante a elevação da perna esticada [semelhante ao Straight Leg Raising], a cadeia posterior vai estirar até ao nível da pélvis, comportando-se como uma polia. Isto vai aumentar a tensão e respectiva deformidade na parte superior da cadeia posterior [cervical], permitindo confirmar a existência de um problema de retraimento muscular.
Continuando com a avaliação dinâmica, o reconstrutor conduz o doente através de movimentos fisiológicos específicos, avaliando a intensidade das respostas e a simetria corporal. Estas respostas irão variar de indivíduo para indivíduo. Um exemplo: a flexão lateral esquerda da cervical produz, no doente, a elevação do hemi-tórax direito. Já a flexão lateral direita da cervical produz, para além da elevação do hemi-tórax esquerdo, uma reacção mais distal (uma resposta evocada distal) – a abdução do membro inferior direito. O mesmo movimento de base poderá levar a respostas diferentes em diferentes doentes. Por exemplo, numa outra doente, a “mesma” flexão lateral da cabeça para a direita produz movimentos involuntários no membro superior esquerdo. Já a rotação da cabeça para a esquerda produz, nesta doente, uma elevação do hemi-tórax direito e uma elevação da hemi-pélvis esquerda. Seria de esperar que, nesta doente, a rotação da cervical para a direita produzisse os mesmos efeitos mas em espelho que os produzidos no caso anterior (ou seja, a elevação do hemi-tórax esquerdo e da hemi-pélvis direita). Mas não é exactamente isso que acontece. Com a rotação cervical direita surge uma elevação do hemi-tórax esquerdo maior do que a que se tinha produzido no outro lado, e uma concavidade na zona lateral esquerda baixa do tronco (não se produzindo qualquer reacção na bacia ou membro inferior à direita) [significando isto, portanto, que o corpo tem realmente um comportamento assimétrico].
A avaliação inclui igualmente a palpação. Pode ser utilizada para avaliar as deformidades cervicais, assim como os resultados de determinada manobra terapêutica.
As deformidades surgem nos doentes com diferentes intensidades, dependendo em muito da posição de manifestação das mesmas. Toda a deformidade irá partir da dupla lordose cervical – lombar, como se tudo dependesse de duas forças: uma que passa de trás para a frente e de baixo para cima na lombar, e outra que passa na cervical de trás para a frente e de cima para baixo. A progressão destas curvaturas pode dar a impressão de existir uma curvatura de natureza dorsal aumentada [a cifose é portanto uma mera aparência]. A aparência da hipercifose tem dado azo a que muitos terapeutas tentem tratar as deformidades com o fortalecimento da musculatura dorsal [tratamento tradicional]... Ora, para o reconstrutor [e para qualquer mézièrista] a zona de transição dorsal é consequente de uma outra zona (lordose).
É preciso também acrescentar que a zona de “protuberância posterior” é quase sempre maior à direita da linha média [está associado à nossa escoliose “natural”], na região dorsal, havendo uma zona de concavidade direita lombar; as forças passam nesta zona “lordótica”, assim como numa zona de lordose acima da dorsal (outra concavidade direita), e vão remeter para a zona do hemi-tórax esquerdo, fazendo com que exista tendência para a sua elevação [o que explica a grande prevalência da citada deformidade nas pessoas hiperlordóticas e escolióticas]. A citada deformidade pode remeter para o aumento da lordose global posterior e para a elevação do tórax, sempre com assimetria; todas estas observações são fundamentais para a intervenção do reconstrutor.
Como já foi dito, a manobra do reconstrutor tende a agravar inicialmente a deformidade, pelo que a deformidade tem de ser bem conhecida. A escolha das posturas e dos movimentos a realizar depende muito da natureza das deformidades existentes. A manobra será considerada mais efectiva se produzir mais facilmente a deformidade a um nível distal. O trabalho deve também ser acompanhado de um treino respiratório constante. O reconstrutor adapta o trabalho de respiração a cada doente e insiste nesse trabalho ao longo das sessões.
[Como já foi dito], a fase de agravamento da deformidade tem de ser seguida de uma fase de exaustão da tonicidade, de modo a haver correcção. A correcção marca o fim da manobra. Para além da “capacidade deformante” do movimento ou postura correctora, é preciso também atender ao tamanho do braço de alavanca, sendo que será tanto mais eficiente a correcção quanto maior o citado, razão pela qual o reconstrutor sistematicamente trabalha à maior distância possível da zona a corrigir. O sucesso da sessão de tratamento depende também da capacidade que o doente tem para manter a indução pelo tempo suficiente até que surja uma resposta protectora de co-contração.
[Explicação da importância da avaliação por fotografia e radiografia]
Por vezes, a intensidade das respostas induzidas pelos estímulos do tratamento levam a que existam respostas tónicas excessivas como o clónus. Quanto maior a quantidade de reacções de tonicidade excessiva maior é a necessidade de realizar mais sessões de tratamento. Inclusivamente, um programa de exercícios para casa é normalmente necessário. O prosseguimento de um programa de trabalho de Reconstrução Postural implica um estado imprescindível de motivação.
As contra-indicações da Reconstrução Postural incluem: infecção, caso recente de cancro, e gravidez de alto risco.
De muitas maneiras, a Reconstrução Postural pode ser considerada uma quebra da tradição do trabalho de Mézières. Mas, à semelhança de muitos outros métodos, a Reconstrução Postural pode ser considerada como uma evolução do original.
[Informações sobre a formação em Reconstrução Postural na Universidade Louis Pasteur].

segunda-feira, abril 16, 2007

Mentalidade dos fisioterapeutas portugueses

Podemos dizer que os fisioterapeutas do nosso país compreendem uma classe em franca expansão. A identidade da nossa classe não está ainda completamente firmada, apesar de existirem resquícios de um certo firmamento identitário. A meu ver, a classe de fisioterapeutas divide-se sobretudo em duas expressões: a antiga e a moderna. A “antiga classe” compreende os diversos fisioterapeutas que espelham os quadros dos hospitais e os grandes lugares da Associação Portuguesa de Fisioterapeutas. Esta “antiga classe” inclui alguns dos melhores profissionais que a nossa área alguma vez conhecerá. Inclui profissionais com dignidade, com apetrechos de desenvolvimento autónomo e científico; mas ainda assim não deixam de ser profissionais agraciados por um contexto sócio-laboral completamente diferente do contexto actual. Quero com isto dizer que se estes antigos profissionais constituem o cerne da grande evolução da Fisioterapia em Portugal, isso deve-se em muito ao facto de, no seu tempo, a Fisioterapia não ter tido uma expressão científica e laboral relevante, fazendo com que fosse fácil singrar neste “mundo”. Eles eram tão poucos! E tão pouco estava feito! Não era assim tão difícil progredir...
Já o mesmo não pode ser dito do contexto moderno. Somos imensos fisioterapeutas, com necessidades de trabalho num mercado “cheio” de profissionais. Não temos poder para fazer girar a situação, por mais que tentemos... E por mais formação que possuamos nunca é suficiente para as necessidades “académicas”, mas é sempre demais para as necessidades “laborais”.
Para além disso, os novos fisioterapeutas ainda são pouco reconhecidos pelos colegas mais velhos. Ainda há pouco um fisioterapeuta da “velha classe” me criticava dizendo que eu tinha, tal como todos os outros, de “fazer o caminho da pedra”. Que grande “caminho da pedra” que ele deve ter feito!!!... Numa época em que era tão fácil arranjar emprego no seio da Fisioterapia (como era há alguns anos atrás), não acredito que existisse assim tanta “pedra para bater”. Hipócritas destes há muitos na nossa classe! Tantos quantos aqueles que criticam a identidade do Fisiatra enquanto profissional... A avaliar pelas qualidades de alguns fisioterapeutas da “velha classe”, não deixo de compreender o pouco respeito que a classe médica tem pelos fisioterapeutas. Pois, é preciso perceber que o respeito dos médicos, e em especial dos fisiatras, não é uma condição pré-definida, ele tem de ser conquistado com trabalho e formação. E, na minha pouca experiência, os médicos, tanto aqueles com que trabalho como aqueles que avaliam os meus artigos científicos, têm reconhecido melhor o meu esforço científico e curricular do que os próprios colegas. Dentro do mundo da Fisioterapia, a inveja é regra e não excepção. Já vi muitos fisioterapeutas criticarem um colega pelo simples facto de estar a fazer mestrado. Há pouco tempo ouvi fisioterapeutas a chamarem “pedante” ao prof. Raúl Oliveira pelo simples facto de ser professor e ter evoluído. E quantos não riem do Paulo Araújo, chamando-o maluco pelas suas “inovações”, ou do prof. António Manuel Fernandes Lopes (“E até o tratam por Doutor” – como me dizia há pouco uma colega), pela sua invejável posição no mundo da Fisioterapia. À presidente da nossa APF chamam muitas vezes de “Tia”. E ainda há uns dois anos atrás, determinado chefe de serviço dizia-me que “a Isabel de Sousa Guerra está a levar nas lonas no Egas Moniz com o novo sistema hospitalar”... E a Prof. Doutora Gomes da Silva que se dá ao luxo de utilizar o título de “Professora Doutora”... “É por isso que estamos como estamos” – dizia-me outro chefe de serviço.
É verdade! Há muita intriga no meio da nossa classe. Muita inveja dos que ainda vão fazendo alguma coisa. É verdade que a APF constitui uma elite, mas mil vezes a elite inteligente, que vai tentando fazer alguma coisa por nós, do que aqueles pacóvios invejosos que enchem os serviços dos hospitais ou os outros fisioterapeutas hipócritas que são, por exemplo, directores de serviços.
Saiba-se que o futuro da fisioterapia pertence aos jovens e inteligentes fisioterapeutas da actualidade... refiro-me, claro, aos que ainda vão tendo a dignidade de percorrer determinado percurso científico e laboral, sem aceitar qualquer contexto de trabalho e desenvolvimento. Dentro da “nova classe” temos fisioterapeutas bem formados, mas com grandes dificuldades de inserção profissional. É de reparar que, dentro da “velha classe”, são muitos os fisioterapeutas desactualizados e sem grande maturidade intelectual e académica. Refiro-me não aos fisioterapeutas que fizeram a Fisioterapia singrar, mas a todos aqueles que se sentaram à sombra da bananeira, aqueles que só dizem mal dos velhos colegas que se mexem e dos novos que são promissores.
E não me venham com a conversa da Experiência. E com o argumento de que “o velho é que é bom”. O bom fisioterapeuta não pode ter muita experiência, pois, no nosso país, quanto mais experiência se possui mais se chafurda (e por mais tempo) no que a Fisioterapia tem de mau. É preciso ser-se profissional de várias experiências, não necessariamente de muitos anos, mas sim de diversos contextos. O fisioterapeuta experiente não é aquele que se mantém no mercado por mais tempo. É sim aquele que luta durante mais tempo por um lugar onde pode ser um fisioterapeuta digno!!! E aquele que vive mais a experiência que possui. Aquele que investiga, aquele que lê, que estuda, que “pensa”, que luta sem medo daqueles que se acham “donos do sistema”. O bom fisioterapeuta será sempre um ser inconformado, como o foram os grandes mestres da humanidade. Mas, no nosso país, tende a barrar-se o caminho aos inconformados, chamando-os de pedantes e criticando a sua experiência, e acusando-os de lançar o ódio à classe.
O meu blog tem sido mais criticado e atacado do que perspectivado com optimismo. Por vontade de muitos colegas, eu não escreveria o que escrevo. Também por vontade de muitos colegas eu não tinha publicado metade do que já publiquei. Lembro-me que há uns anos atrás umas “especialistas” em neurologia, fisioterapeutas experientes, acusavam-me de não saber o que dizia acerca das minhas críticas ao sistema de Bobath. As mesmas senhoras alegaram que era impossível constituir um artigo sobre a intervenção do fisioterapeuta na espasticidade. Aquilo que alguns fisioterapeutas do Hospital de São José e outros do CMR Alcoitão consideraram impossível de se fazer foi conseguido por mim e outros co-autores num artigo que agora está publicado na revista Sinapse. E nós não somos especialistas!...
E podia contar muitas outras histórias, como aquela em que certa fisioterapeuta chorou no dia em que falei dos “rolos de reeducação postural” no meu blog. Que mal ter desmistificado determinada prática!... Para os fisioterapeutas da “velha classe”, ou nada se faz ou se fez de mais... Não se pode é chamar a atenção. Arriscamo-nos a ser engolidos pelo sistema!...

(Dedico este texto a todos os fisioterapeutas que, à minha semelhança, têm sofrido com o jugo de poder e inveja de muitos dos nossos colegas – e isto inclui velhos e novos profissionais. O pior inimigo do Fisioterapeuta é o próprio fisioterapeuta, disso não tenhamos dúvidas... Os que tentam “progredir” vêem os seus esforços ser diluídos num mar de desilusões!!!)

quinta-feira, abril 12, 2007

Morfoanálise e algumas reflexões

Se é justo considerar o método Mézières como a “psicanálise do corpo”, visto que é esse o método que constitui o veículo de intervenção global ao nível da arquitectura e arqueologia corporal, não é de espantar que exista um método mézièrista denominado de “morfoanálise”. De certa maneira, é o nome mais adaptado àquilo que fazemos em Reeducação Postural: uma contínua análise da postura, associado ao necessário e consequente Reajuste Postural.
À semelhança de certos métodos grupais como a Antiginástica e o método Corpo e Consciência, a morfoanálise desenvolveu-se sobretudo como método psicossomático. Aliás, o seu axioma corresponde ao seguinte: “O bom equilíbrio está directamente ligado ao desenvolvimento da sensibilidade física e emocional”. É, portanto, mais um dos variados métodos que propugnam a indecomponível ligação corpo-mente.
Elaborado por Serge Peyrot, não parece constituir mais do que uma outra interpretação das variadas cambiantes do método Mézières. Aliás, tal como todos os outros métodos mézièristas, o terapeuta morfoanalista trata um ser total, uma unidade corpo-mente, favorecendo o trabalho da sensibilidade proprioceptiva e a reequilibração do tónus.
É, como tal, semelhante à Reconstrução Postural, com a desvantagem de ser mais teoria do que ciência.
Mas a propósito da grande generatividade do método Mézières, não posso deixar de reflectir sobre algo que todos os métodos mézièristas têm em comum, que é a “lentidão” do processo de trabalho terapêutico. Ou seja, tal como a psicanálise auxilia na “reconstrução” e “reinterpretação” psíquica do sujeito ao longo de vários e longos anos, também os métodos de reeducação postural actuam longa e lentamente, o que pode originar diversas dúvidas ou questões de ordem ética e metodológica.
Refiro-me àquela persistente dúvida que o terapeuta guarda no seu mais íntimo ser que é a seguinte: “Vale a pena todo este trabalho?”. Ora, é verdade que a intervenção em reeducação postural demora tempo, muito tempo. Por vezes, o mero trabalho de redução da tensão sem originar compensações leva vários meses. Por exemplo, tenho uma doente com uma escoliose, que possui tal tensão muscular a nível de toda a cadeia posterior que passo grande parte do tratamento a tentar reduzir a tensão da nuca e restante porção superior da cadeia posterior. Não vejo, portanto, a hora de conseguir “desfazer” a retracção que origina a escoliose. Vejo-me tentado a afirmar que o trabalho de reeducação postural sério precisa de ser realizado com uma temporalidade superior àquela que tem sido defendida. Ou seja, se muitos teóricos têm defendido que o trabalho de Mézières é para ser feito no máximo uma vez por semana, eu diria que não há razões verdadeiras para que o trabalho de alongamento global não se faça pelo menos uma vez por dia, todos os dias sem excepção!!! Refiro a minha experiência pessoal: se há um ano atrás possuía franco encurtamento da minha cadeia posterior, um trabalho persistente e diário de treino de posturas de alongamento global fez com que eu progredisse mais de 20 cm no teste “sit and reach”. Mas ainda assim, num ano de trabalho, com tal progresso da minha flexibilidade, apesar de ter melhorado da minha tendência cifótica dorsal, certos caracteres posturais (como os meus joelhos valgos) não se modificaram por aí além. Não quer isto significar que não conseguirei ter outro género de progressos com mais tempo ainda de trabalho postural.
Mas vejamos bem o tempo que é necessário para conseguir resultados... E com intervenção diária! Será que as minhas classes de “ginástica postural” ou os meus tratamentos mézièristas semanais não serão uma espécie de “engodo” para os meus doentes?... Não será minha obrigação explicar-lhes que o trabalho de reeducação postural é extremamente prolongado e moroso, e que resultados consideráveis só poderão ser conseguidos com a utilização de tempo e dinheiro de uma quantidade inacessível a muitos?... E questão ainda mais importante!... Será que vale a pena ser um terapeuta de “reeducação postural”? Não será mais “realista” para todos se for um terapeuta de tratamento sintomático, daqueles que resolvem as coisas rapidamente, apesar de nunca chegarem às causas dos problemas?... De qualquer maneira, a intervenção causal pode demorar toda uma vida a dar resultados concretos...
Que fazer quanto às dúvidas? Serei um bom terapeuta se começar a duvidar dos meios que estão ao meu dispor? Será que vale a pena continuar pelo o mesmo caminho? Ou será que vale sempre a pena lutar pela Verdade, por mais longínqua que ela se situe???...
Tantas dúvidas, tantas questões... E tão poucos são aqueles que reflectem nestes aspectos... Vale ou não a pena?... Ser ou não ser?... Eis a questão... Questão aporética, que muitos respondem com o que acreditam e não com a lógica da resposta madura...

segunda-feira, abril 09, 2007

Global Fisio e afins – é esta a nossa situação!

Lá porque escrevo neste blog e trato de assuntos que dizem respeito à fisioterapia especializada nem por isso deixo de ser um fisioterapeuta que trabalha somente em Part Time e que, como tal, busca mais tempo de trabalho. Na passada quinta-feira recebi um telefonema segundo o qual teria de estar presente numa entrevista segunda-feira às 09h30 na sede da Global Fisio em Telheiras. Esperava encontrar uma Clínica ou um escritório, onde pudesse ser entrevistado com tempo e condições, mas o que encontrei foi uma sala de formação já com diversos outros fisioterapeutas lá dentro, todos eles apanhados na mesma “ratoeira”. É que, ao contrário do que se podia esperar, ao invés de uma entrevista, fomos todos reunidos num grupo e fomos sujeitos a uma boa dose de “formação” acerca dos valores e objectivos da empresa. Mais tarde apresentámos oralmente um resumo dos nossos currículos (não sei bem para quê visto que a empresa já possuía os nossos currículos escritos). E depois de toda esta “farsa” percebi finalmente por que estávamos ali todos presentes. Aconteceu que foi-nos pedido para escrever numa folha de papel o nosso nome, dentro do qual deveríamos referir a importância pela qual desejávamos ser pagos. Muito interessante este sistema de selecção. As coisas chegaram a um ponto que as empresas deixaram de estabelecer um determinado preço, passaram antes a “comprar” o profissional mais barato. E a prova estava à vista: quando foi feita a “filtragem” de profissionais, ficaram três “sortudas” (será???) que não eram de forma alguma as três pessoas que, segundo o que pudemos constatar, apresentavam o melhor currículo. As pessoas que trabalhavam há mais tempo ou aquelas que estavam a fazer mestrado e outros cursos não passaram na “filtragem”... Então qual foi o critério de selecção? Claro que só pode ter sido a “quantidade” de dinheiro que os fisioterapeutas pediram. Pois é bom que saibamos que a nossa profissão não é mais uma profissão em que valha a pena ter bom currículo. As capacidades do profissional de nada lhe valem. Somente a capacidade para ser explorado! Estamos a caminho do FIM!

quarta-feira, abril 04, 2007

Educação e Fisioterapia em Portugal

A discussão acerca da formação dos profissionais de saúde portugueses assume-se como um tema de estrita actualidade e necessária provocação discursiva, com base numa necessidade urgente de análise psicossociológica abrangente. É certo que o número de escolas superiores de enfermagem e de tecnologias de saúde aumenta de forma exponencial, mas menos incontroversa é a questão relativa à qualidade da formação gerida nessas mesmas instituições.
Num país em pleno crescimento como o nosso, não é irrealista considerar que a educação constitui a base do crescimento sócio-económico e cultural das empresas e instituições. Uma boa educação é e será sempre a base fundamental da cristalização de uma cultura fecunda e da morigeração de uma sociedade. Mas ainda assim, não podemos deixar de considerar o conjunto das necessidades recursivas e de mercado da sociedade ou sistema em questão (admitindo, claro, que essas mesmas necessidades variam consoante as modificações sofridas pela estrutura funcional do tecido social).
Ora, acontece que, por qualquer razão difícil de compreender, o discurso educacional do nosso país parece ancorar na estandardização imoral e na anquilose visionária; isto no sentido em que as nossas Instituições “vendem” um discurso apelativo à Educação, nomeadamente à realização de formação superior, sem que sejam tidas em conta as necessidades reais dos cidadãos especificamente formados. Simplificando, deve ficar bem explícito que o número de cursos superiores (e respectivas vagas de funcionamento), seja em universidades públicas seja em universidades privadas, é bastante superior às necessidades profissionais do mercado português. Claro que pode sempre ser afirmado que o que tem de mudar é o mercado e não o paradigma educacional, mas eu diria que a mudança do mercado exige a prescrição de mudanças sociais extremamente lentas (por mais dinâmico que seja determinado Governo), não assimiláveis pelo “crescimento numérico” das vagas do ensino superior.
É importante ter em conta que, desde o 25 de Abril, as universidades têm vivido um momento especial, em busca de ampliar a sua relevância social. Se as universidades eram muito respeitadas no Estado Novo, é certo que o seu papel social não era bem compreendido e que as necessidades universitárias não correspondiam às necessidades de mercado. Por outro lado, com a entrada na democracia, houve uma revolução nas “ciências da educação” e no modo de perspectivar as Universidades de tal modo célere e agigantada que rapidamente chegámos a um estado de caos no mundo da informação e da formação superior. Aliás, é importante atender ao facto de que muitos cursos médios passaram a constituir cursos superiores, com a democratização do sistema. Muitas escolas passaram a universidades. E as universidades cresceram a olhos vistos. E, claro, estando o sistema liberalizado, as universidades particulares multiplicaram-se sem controlo.
Infelizmente, no decorrer de todo este processo “histórico”, nunca foi criada legislação palpável acerca do número de vagas passíveis de serem criadas para os diversos cursos superiores, assim como nunca foi criado um sistema exigente e coercivo de regras de delimitação da criação de novos cursos nas diversas universidades.
Enquanto fisioterapeuta que sou, posso testemunhar o exemplo da educação em Fisioterapia, enquanto “modelo” da tendência sócio-histórica anteriormente referida. Lembro-me perfeitamente que no final da década de 1990, estava a iniciar o curso de Fisioterapia, o qual era considerado como sendo de “saídas fáceis” e de acessível inserção numa carreira do Serviço Público. Por esta altura, existiam, a nível nacional, cinco escolas de Fisioterapia: a Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSA), a instituição mais antiga e de referência incontornável, as três escolas superiores de tecnologias de saúde (Lisboa, Coimbra e Porto) e uma escola num Instituto Piaget no norte. Posso garantir que, por esta altura, a Fisioterapia ainda estava ao nível do bacharelato e a única escola que possuía um corpo técnico especializado e de referência era a ESSA. Mesmo nesta escola, a grande maioria dos professores não possuía formação para além da CESE ou da DESE. E aproveito para dizer que, apesar de ser uma instituição privada, a ESSA possuía um nível de exigência de ensino notório, com uma educação do tipo “universitário”, mas com uma exigência superior à de muitas universidades (e públicas). Falo tanto como fisioterapeuta como alguém que realizou outras formações noutras universidades.
Por volta de finais de 2003 já estava no término do curso. Mas, em poucos anos, as coisas mudaram muito significativamente, e a realidade agora era outra. A Fisioterapia era agora uma licenciatura (do tipo bietápico), o que fez, em termos práticos com que diminuísse a carga horária de trabalho e com que as aulas teóricas passassem a ser de presença facultativa. A exigência geral do curso diminuiu, ao invés de aumentar. E muitos professores de referência “fugiram” para outras escolas... Outras escolas... Agora vem a grande “evolução”!... As escolas de ensino da Fisioterapia passaram de cinco para dezassete. E vem depois toda a panóplia de consequências...
Como é possível tantas escolas terem sido tão rapidamente aprovadas e legitimadas, com corpos docentes formados muitas vezes com fisioterapeutas sem qualquer tipo de competência académica?... É impossível perceber! Ora, é certo que o número de pessoas que necessitam de Fisioterapia é enorme, mas também é certo que a grande maioria dessas pessoas compreende uma classe idosa e dependente do Serviço Nacional de Saúde, o que faz com que sejam mais facilmente tratadas em “massa” e, muitas vezes, somente por auxiliares. Se a isto acrescentarmos o lógico aumento do número de fisioterapeutas, então podemos perceber que a Fisioterapia deixou de ser considerada uma “profissão de futuro”.
Sejamos concretos! O número actual de fisioterapeutas é superior a 4000. Há cinco anos era inferior a 3000. E a Associação Portuguesa de Fisioterapeutas prevê um aumento do número de fisioterapeutas para um número próximo de 7000 até 2010. Como tal, todos aqueles que entram com notas de 16 e 17 nos cursos de Fisioterapia e que sonham com uma carreira de sucesso podem contar com a existência de uma profissão destinada ao desemprego. É claro que as coisas podem mudar. Um programa eficaz de crescimento dos cuidados de saúde primários e continuados pode ajudar a empregar muitos fisioterapeutas. Mas, ainda assim, é necessário haver um “corte” de raiz ao nível do número de vagas e do número de cursos. A entrada no processo de Bolonha poderia e deveria ajudar a aplicar o “golpe” necessário, através da criação de novas exigências de formação por parte dos corpos docentes. Porém, estamos a assistir a um contínuo adiamento do processo de aditamento dos princípios de Bolonha, sendo que se tem permitido a “evolução” académica do ensino dito politécnico (no qual se inclui grandemente a Fisioterapia), com a desvantagem de serem criadas as condições de legitimação das diversas instituições (e bem sabemos que é cada vez mais fácil fazer um mestrado ou um doutoramento...).
Como iremos mudar as coisas? Apenas com frieza! E muito rigor. É tempo de deixarmos de permitir a irracionalidade. É tempo de protegermos os nossos formandos, os jovens que mais tarde quererão trabalhar e viver de forma autónoma.
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Publicado parcialmente no boletim da APF de Setembro 2007
Publicado na revista 'Medicina e Saúde' de Fevereiro 2008