segunda-feira, dezembro 13, 2010

Ciência(s) da educação e o objecto do conhecimento

O domínio conteudístico actual da comunicação mediática, aquela que tem sempre um impacto assaz peculiar na opinião pública, tem sido o do “economês”. Mas, em tempos em que a temática da crise económica não estava tão inflacionada, era o “eduquês” que parecia dominar as discussões dos sábios que propalam a “salvação intelectual” nos programas de debate do horário nobre televisivo. Sabemos que este termo tem sido utilizado com um certo intuito pejorativo, e isto acontece porque a visão peculiar da temática educacional parece ser tão idiossincrática e singular quanto é igualmente a discussão, sempre polémica, da existência de uma ou várias ciências da educação.
Tendo sempre sentido um forte chamamento para a tarefa do ensino (mesmo assumindo que essa acarreta uma certa pretensão de moldagem tirana das consciências do “bom selvagem” à maneira de Rousseau, face às pretensões de um Sistema valorativo politicamente determinado...), foi sempre grande o meu cepticismo acerca da possibilidade de “ensinar a ensinar”, pois sempre senti que um talento natural não pode ser criado artificialmente. Daí que tenha sempre esculpido um olhar desconfiado sobre a “pedagogia” dos peritos do ensino, assim como achei sempre perdulária a discussão daquilo que se pode designar como o “fundamento epistemológico da pedagogia”.
Este último respeita ao carácter mais ou menos científico de uma suposta “ciência pedagógica” que alguns ainda não reconhecem como ente autonómico, sendo que, ao invés de nos acercarmos de uma “ciência da educação”, muitos autores preferem falar de um conjunto de ciências que arquitectam o pensar da Pedagogia. Mialaret, em “As ciências da educação” (1980), organiza as referidas em três conjuntos: 1. Ciências que estudam as condições gerais e locais da instituição escolar (História da educação, Sociologia escolar, Demografia escolar, Economia da educação, Educação comparada); 2. Ciências que estudam a relação pedagógica e o próprio acto educativo (Ciências que estudam as condições imediatas do acto educativo: Fisiologia da educação, Psicologia da educação, Psicossociologia dos pequenos grupos, Ciências da comunicação; Ciências da didáctica das diferentes disciplinas; Ciências dos métodos e técnicas; Ciências da avaliação); e 3. Ciências da reflexão e da evolução (Filosofia da educação e Planificação da educação e teoria dos modelos).
A falta de “estatuto científico” relativo à tarefa dos pedagogos é também, em certa medida, intensificada pela dificuldade que há em objectivar os resultados do ensino e o objecto de aprendizagem. E, como bem sabemos, os números nem sempre reflectem a realidade real. E esta pode ser percepcionada de muitas maneiras...
Penso que há dois fenómenos paralelos que estão a ocorrer no mundo da Educação, sendo que pretendo assumir o risco de acreditar que existe um correlato entre ambos. O primeiro fenómeno diz respeito às novas atitudes pedagógicas, bem visíveis nos diversos graus de ensino, secundário incluído. Estas revelam a preferência pelo “ensino global”, as quais premeiam obstinadamente as novas teorias da educação humanistas e existencialistas, focadas num ensino em que a psicologização e a pedagogização superam a necessidade de aumentar o próprio objecto do conhecimento. É verdade que este tipo de ensino é mais ético, menos intrusivo e mais respeitante da própria etimologia da palavra “educar”, mas também é verdade que ele tem acarretado a infantilização do próprio saber. Se a “educação emocional” é essencial, também é verdade que a escola não pode desvirtuar o objecto dos saberes científicos e literários em nome de uma tarefa que deveria pertencer ao domínio preferencial da família. O segundo fenómeno diz respeito ao facto notório da estupidificação compulsiva das novas massas de educandos. Pois é bem sabido que, a par da diminuição da exigência do ensino, os jovens sabem cada vez menos e são cada vez mais acríticos e nescientes.
A polémica relativa às aulas de Português no básico e secundário expressa bem a infantilização a que me refiro lá em cima. É certo que, segundo uma certa “ciência pedagógica”, parece ser mais eficaz a aprendizagem da língua por meio das leituras de jornais do que por meio da leitura de Camões, Camilo ou do Eça, mas também é certo que desvirtuando a leitura dos clássicos é toda uma cultura e todo um mundo de conhecimento e arte que tendem para a desaparição. É preciso saber escrever, mas também é preciso contactar com o verdadeiro objecto do saber, o qual não pode deixar de ser classicista, defendendo eu que este exercício acabará por ter resultados finais mais expressivos em termos do saber, mesmo que erroneamente expressos em números.
E o que mais assusta é que esta mesma cultura da ignomínia e do facilitismo, magnificamente parodiada pelo “Novas Oportunidades”, já perpassou também para o mundo das Universidades. Nestas, o “eduquês” também já faz vítimas, e as práticas de ensino infantilizado, tão bem exemplificadas pelo recurso aos slides coloridos e aos efeitos de circo do PowerPoint, associadas à epidemia das sebentas e dos resumos, contribuem para desvitalizar o próprio objecto do conhecimento “universal”.
Não quero de forma alguma atirar pedras aos pedagogos, educólogos e psicólogos, mas há dias em que o antigo ensino tradicional e magistrocêntrico, reforçado pelas visitas às bibliotecas poeirentas e enformado pelo exercício de um conhecimento puro e absoluto dos antigos mestres, provoca uma certa “eterna” saudade.

O fim da economia e o primeiro homem

No último texto que aqui publiquei, criei uma associação, que de qualquer modo não deixa margem para grandes dúvidas, entre a ciência económica e o neoliberalismo. Mesmo sem ser grande apoiante do capitalismo liberal, reconheço que a ciência de Adam Smith, David Ricardo ou Thomas Malthus se revê com precisão verdadeiramente falsificável (e verosimilhança de metodologia) no neoliberalismo da escola de Chicago; o mesmo que, segundo o autor de “O caminho para a servidão” (Hayek, 1944), esboça o verdadeiro caminho para a democracia. É, de resto, maioritariamente aceite, segundo uma certa ciência clássica e utilitarista, que a ciência económica consubstancia o caminho necessário da teoria política, visão tornada flagrantemente reiterada por tudo e por todos, principalmente desde que uma certa eloquência anticomunista considerou o socialismo morto com a queda da União Soviética nos anos 80 do século passado.
É certo que o socialismo tem mais a ver com política do que com economia. E também é certo que, mais do que um caminho que pretende o desenvolvimento económico-financeiro, o socialismo tem sobretudo a aspiração a uma forma de Bem que poucos compreendem. De certo modo, o socialismo tem pouco a ver com ciência económica, mas é precisamente aí que reside o grande erro atitudinal relativamente à teoria socialista: é que, apesar do trabalho de Marx, principalmente em “O Capital”, incluir uma poderosa análise económica, segundo (como sabemos) os padrões hegelianos do materialismo histórico, o socialismo é mais uma teoria da consciencialização histórica e da revolução do bem-estar global do que uma teoria que se pretende científica. Claro que o próprio Marx pretendia que o socialismo era “científico”, mas, segundo o que já temos dito aqui sobre a temática epistemológica, e à visão de uma filosofia contemporânea do pragmatismo, o socialismo só poderá ser considerado científico se enquadrado na dimensão de uma ciência “pós-moderna”.
Um pouco mais próximo de uma visão científica tradicional, mas sem possuir o mesmo grau de rigor metodológico que o neoliberalismo, o capitalismo keynesiano enquadra-se numa espécie de meio-termo entre o Socialismo e o Capitalismo (daí a relevância do termo “economia mista”, cujas “diatribes” históricas são analisadas por Paul Mattick na obra “Marx and Keynes”, 1955). Mas desenganem-se os socialistas, pois Keynes era um conservador e era um verdadeiro capitalista. O seu “socialismo” não deixa de ser um “socialismo de mercado”. Aliás, como pode ser lido nas obras de Tony Judt (principalmente no recente “Tratado sobre os nossos actuais descontentamentos”, 2010, Edições 70), o próprio conceito de Estado-providência foi criado por conservadores. E diga-se em boa verdade que tanto o keynesianismo como a teoria da “social-democracia” (que, como sabemos, propugna a importância do Estado-providência) surgem historicamente ligados a uma reacção às crises provocadas pela banca e pelos excessos dos grandes grupos económicos afectos ao neoliberalismo mais radical.
Sabemos que a crise actual tem propiciado reacções de todos os tipos. Os neoliberais dizem que o mercado tem capacidade de auto-regulação. Os comunistas dizem que afinal a utopia socialista nunca esteve tão perto. E os proponentes da social-democracia continuam a achar que a crise actual não é uma crise do Estado-providência. (E, na verdade, a meu ver, não é mesmo uma crise do Estado-providência, pois o défice - e a falta de recursos - advém mais dos excessos de Governos incompetentes e corruptos do que propriamente da própria “falência” do Estado-providência, requerendo-se, portanto, uma maior competência na gestão e na liderança, incluindo a consumação de um Orçamento que não seja feito ao jeito dos grandes interesses económicos).
Falemos do socialismo radical ou do socialismo de mercado, contrariando um certo tipo de desenvolvimento económico-financeiro radicado na teoria do “livre-arbítrio” e numa certa propensão de animalidade egotista e competitiva, a esquerda continua a ser o único lado que consubstancia o ser humano como falível e objecto de um certo determinismo epigenético e sócio-cultural (é aqui que reside o erro da “meritocracia” neoliberal, pois esta esquece que as capacidades de cada um reproduzem as desigualdades sociais previamente existentes; de certo modo o neoliberalismo pressupõe a perpetuação das mesmas desigualdades que enformam a sociedade de classes).
Mesmo não constituindo uma ciência no sentido tradicional, e estando mais próximo da teoria política do que da ciência económica propriamente dita (subentendendo uma “epistemis-processos” a destronar uma “epistemis-produto”), o advento do socialismo é determinante no sentido ético e humanístico, detendo como mensagem principal que “os meios são mais importantes que os fins”. Se isto dá ao socialismo o estatuto de uma “sociologia pós-moderna” (passe-se o potencial pleonasmo!...) pouco rigorosa e muito criticável, então prefiro correr o risco de me aglutinar com a realidade real, dando a primazia ao ser humano na sua globalidade psicossocial e trans-histórica.

sábado, outubro 23, 2010

"Mézières’ method and muscular chains’ theory: from postural re-education’s physiotherapy to anti-fitness concept"

Um novo artigo foi publicado na Acta Reumatológica Portuguesa. Desta vez em inglês...para facilitar a "internacionalização" do conceito de Reeducação Postural. E escrevo isto aqui na Terceira, Açores, a caminho do último dia do I Congresso Internacional de Desporto e Actividade Física de Angra do Heroísmo. A cidade é maravilhosa, assim como têm sido dias interessantes, incluindo a amizade e sapiência do Prof. Paulo Araújo e do seu PNF-Chi.
Mas, entretanto, deixo-vos com o link do artigo intitulado "Mézières’ method and muscular chains’ theory: from postural re-education’s physiotherapy to anti-fitness concept": http://www.spreumatologia.pt/sites/spreumatologia.pt/files/publications/articles/27._LE_-_Mezieres_ARP2010.78LE.pdf.

domingo, outubro 17, 2010

A doutrina económica enquanto ciência pós-moderna

Em tempos fiz, no espaço deste jornal, a defesa do neo-liberalismo enquanto modelo de salvação da crise portuguesa e, em geral, do Modelo Social Europeu. Estaria enformado pela ideia de um profissional de saúde que trata o enfermo segundo as manifestações clínicas presentes: em linguagem económica, servir-se-ia o keynesianismo a países fortemente neo-liberais (é o caso de Obama nos EUA) e servir-se-ia o neo-liberalismo a países fortemente keynesianos (como os países da Europa do sul). Daí “receitar” o neo-liberalismo a Portugal e à dormente função pública portuguesa. Também fiz a defesa de que esse mesmo modelo de Hayek é que constituiria a verdadeira ciência no sentido em que é entendido por Popper e muitos dos que preenchem os quadros académicos da London School of Economics. Mas, à semelhança daquilo que tenho feito nos diversos textos deste jornal – o esboçar do pretenso conflito entre uma ciência “exacta” propriamente dita e uma ciência “pós-moderna” por muitos entendida por pseudociência – pretendo dar agora a outra face da moeda.
Pois se é certo que a ciência económica propriamente dita parece mais de acordo com as análises doutrinárias “clássicas” do liberalismo iniciadas pelos fisiocratas e essencialmente por Adam Smith, o pai do capitalismo, e seus “associados” (como David Ricardo e Thomas Malthus), e com o contemporâneo neo-liberalismo, também é certo que essa mesma “ciência propriamente dita” só o é enquanto “método” ou “produto”, esbarrando contra a parede da Ética no momento de falarmos dos “processos” ou do “caminho”. A verdade é que não podemos simplesmente ignorar a realidade histórica e não podemos ignorar que a história das doutrinas económicas inclui reacções proteccionistas e intervencionistas do Estado, incluindo a teoria socialista, que é, em última análise, a mais determinante teoria económica que alguma vez se constituiu.
Sabemos que, tal como defendido por muitos liberais, o socialismo não é científico, não obstante a beleza da sua conteudística humanista. Mas também sabemos que a Verdade verdadeira e real pode, eventualmente, estar naquilo que uma medição científica não quantifica: a estética do “caminho” e a beatitude dos processos humanos envolvidos na teoria do socialismo.
Enquanto fisioterapeuta que sou, defensor da teoria mézièrista das Cadeias musculares e da Reeducação Postural, que acarreta implicações que contrariam a ciência fisioterapêutica partilhada por mais de 99% dos profissionais da área, sempre pensei que é possível que estas “maiorias científicas” da imprensa que advogam a morte do Socialismo e da utopia colectivista estivessem errados, porque potencialmente enfermos da doença da “ciência clássica”. Estando bem patente em mim a contradição de quem já muito defendeu Popper e o falsificacionismo de demarcação entre ciência e pós-ciência, e não deixando nunca de admirar e de admitir a pragmática positiva e utilitária da obra do autor de “A pobreza do historicismo”, não posso deixar de pensar que a Verdade real pode eventualmente estar na ciência dita historicista, pós-moderna e relativista, que é, na Economia, representada, no seu máximo expoente, pela visão marxista.
Sabendo que o socialismo não é feito só de Marx e Engels (sendo que há outros nomes importantes na história do socialismo como Saint-Simon, Robert Owen, Charles Fourier, Louis Blanc ou Proudhon), sabendo também que a obra de Marx tem sido mal interpretada, e admitindo que existe uma via mais contemporânea de socialismo que se denomina de “socialismo de mercado”, “social-democracia” ou “terceira via” (Anthony Giddens), não podemos deixar de ter em conta o humanismo de uma teoria que esboça a importância do ser humano enquanto verdadeiro “alvo” do capital.
É certo que esse humanismo esboça uma ética exigente que, para ser construída, fez (e faz) uso de muitos sistemas totalitários. É também certo que o socialismo parece ser considerado, pelas tais “maiorias científicas”, como morto, pelo menos desde a queda da “cortina de ferro”. Mas também é certo que, mesmo admitindo a falência do Modelo Social Europeu e a necessidade da criação de um novo modelo de gestão dos Estados Sociais (que nunca deverão perder este cunho), o advento do socialismo de mercado continua a parecer o mais aceitável, se é que queremos respeitar as verdadeiras características falibilistas do ser humano.
É que, ao preconizar o “cada um por si” e a premiação do mérito e das capacidades individuais de cada um, o neo-liberalismo esquece um facto importante: as desigualdades de mérito e capacidades reproduzem as desigualdades sociais; e estas são função de um certo determinismo genealógico e histórico-social. Mesmo a Educação universal e gratuita não pode produzir a igualdade social, pois as crianças levam para as escolas as culturas familiares e intelectuais de que são basilarmente vítimas. A educação e o insucesso escolar é vítima das desigualdades sociais, e o contrário é menos verdade.
Ora, mesmo assumindo que o socialismo radical produziu resultados medíocres ou mesmo antitéticos, não posso deixar de assumir que o “socialismo científico”, mesmo que de “científico” tenha pouco (e de pós-moderno tenha eventualmente muito), possui uma mensagem determinante para a humanidade: é que os meios continuam a ser mais importantes que os fins.

A propósito da crise e da ciência económica

Parece que já tudo foi dito sobre a crise e a situação económico-financeira desta nossa pobre nação. Todos vituperam e todos receitam soluções. E, não bastasse a Economia ser uma temática de tão complexos detalhes e inumeráveis explicações do tipo “ciclo vicioso”, também as ciências política e sociológica parecem com aquela ter inumeráveis ligações difíceis de descortinar. É pena que a teoria subjacente à “Intelligentsia económica” tenha estado a ser tão pouco aludida e tão descaradamente negligenciada pelos profissionais e intelectuais da área.
Há coisas do campo da epistemologia científica que importam ao reino da Economia. Importa, por exemplo, clarificar se a ciência económica é do tipo “exacta”, com uma capacidade mínima de previsão, ou se, à semelhança da História e de uma certa sociologia, é do tipo “social”, onde pode abundar o conjunto de imprecisões capazes, em última instância, de uma aproximação a um certo tipo de relativismo pós-moderno.
A julgar pelos diálogos entre os economistas a propósito da crise portuguesa e da crise internacional, mais parece que a ciência económica parece indissolúvel do “Caos” financeiro dos mercados. Este “relativismo” é visível até na forma como as “ideologias económicas” são defendidas. Por exemplo, com a crise internacional de 2008, houve, nesse mesmo ano, quem defendesse o keynesianismo como a solução para a crise do capitalismo anglo-saxónico. Os liberalistas, entretanto, defenderam-se com a “teoria dos ciclos económicos”. Com a resolução parcial da crise americana e o agravamento da crise europeia, parece que volta a haver uma defesa do neo-liberalismo e uma regressão defensiva das teorias de Keynes e dos “excessos” do Modelo Social Europeu...
A questão das ideologias remete-nos para o campo do dogmatismo e este para o terreno do relativismo e do acientificismo. Por exemplo, os teóricos da London School of Economics foram grandes críticos das “falsas” ideologias, perigosas por se confundirem com a ‘Verdade’ das ciências. Popper critica o ‘socialismo científico’ do marxismo e Hayek, o pai do neo-liberalismo, apresenta o “planeamento central” e a “estatização” como males basilares dos colectivismos ditatoriais, tanto o socialismo como o fascismo (este outra forma de “socialismo”...). Em particular o autor de “O caminho para a servidão”, em conjunto com outros liberais, como Milton Friedman, os quais viriam a ser conhecidos como a “escola de Chicago”, advoga como caminho para a democracia o mercado de livre iniciativa, a competitividade e a privatização. Este viria a ser até anunciado como a nova forma de democracia, pendente enquanto “fim da história” (Fukuyama), com a queda do socialismo enquanto sistema, em finais dos anos 80.
Ora, tendo necessariamente em conta certos critérios como princípios de “demarcação científico – não científico” (Popper), necessários à aproximação da Economia à categoria de verdadeira ciência (e ao afastamento relativamente às ideologias dogmáticas e pré-científicas) – sendo esta uma condição da edificação de fórmulas bem sucedidas de “bem estar económico” das civilizações e da diminuição do grau de “incerteza” relativista que permite a corrupção e a libertinagem de políticos mal intencionados –, é certo que a ciência económica propriamente dita parece mais próxima do pragmatismo neo-liberal do que do keynesianismo ou da ideologia socialista (ou mesmo do “socialismo de mercado” ou da “terceira via” de Anthony Giddens). Segundo Guy Sorman, mesmo fazendo uso de meios mais cruéis, os resultados do neo-liberalismo apontam este “capitalismo” de “mercado livre” como solução para a crise financeira e para a criação de um Estado mínimo (subjacente à ideia de que é impossível haver saúde, educação e segurança social acessíveis às classes sem haver riqueza).
Por mim, acredito que, em específico, certos luxos do Estado Social português, como as mordomias da Função Pública, não se coadunam com o Estado mínimo. Aliás, enquanto alguns ganham ordenados milionários e têm direito a subsídios de férias e de Natal, enquanto que outros não possuem quaisquer direitos, é impossível falar de igualdade e é impossível continuar a falar por muito mais tempo, por exemplo, de Educação gratuita ou da sustentação de um Serviço Nacional de Saúde.
Mesmo constituindo o pesadelo da “esquerda”, e admitindo a necessária mudança estrutural do paradigma cultural e psicanalítico de Portugal e do seu povo (o que inclui o aumento do espírito de combatividade e de autonomia e a perda do espírito do “coitadinho”, todos estes dependentes de uma evolução assaz prolongada na matriz da estrutura educacional e intelectual dos portugueses), acredito que só um conjunto de estratégias verdadeiramente neo-liberais (incluindo o ganho de vencimentos variáveis segundo a produtividade), desde que éticas e centradas na qualidade de vida da Pessoa (não queremos o capital pelo capital), pode salvar o nosso país e manter a mínima (porque “absoluta” é impossível) “igualdade de oportunidades”: educação obrigatória, saúde básica, qualidade de vida básica e segurança social tendencialmente gratuitas para os escalões economicamente mais baixos da sociedade classista portuguesa.

Publicado no jornal 'As Artes Entre As Letras', dia 15/12/2011

quarta-feira, outubro 13, 2010

A propósito da Fisioterapia em Portugal... para brasileiros

Tenho absoluta consciência de que, desde a sua criação, o meu blogue tem sido visitado sobretudo pela população brasileira. Não é difícil perceber porquê, visto que o blogue é sobre ‘Reeducação Postural’ e especificamente a ‘Reeducação Postural Global’ está (há muito tempo) inflacionada no Brasil enquanto tema dominante, e visto também o meu blogue ser “internacional”, por pertencer ao ‘Google’. Devo dizer que tenho, à custa das visitas dos colegas brasileiros, esboçado muitos conhecimentos, assim como tenho feito amigos e companheiros de ‘MSN’. E já no passado publiquei aqui um texto em que falava um pouco sobre o meu conceito de Fisioterapia no Brasil, o qual é bastante positivo; na realidade, a Fisioterapia no Brasil apresenta um nível de desenvolvimento científico, tecnológico, interdisciplinar, académico (incluindo a existência de ‘especializações’, as quais não existem em Portugal) e social muito superior ao de Portugal.
Tudo isto vem a propósito de uma questão que me é feita muitas vezes pelos fisioterapeutas brasileiros: a situação da profissão e da formação em Fisioterapia em Portugal. O objectivo – claro – é o de alguns dos colegas do “país irmão” visitarem Portugal e, eventualmente, trabalharem cá. Ora, pretendo, neste texto, responder precisamente aos colegas brasileiros que têm essa pretensão...
Na realidade, nada me dá mais prazer do que receber colegas de profissão aqui no nosso pais. Mas, não querendo de forma alguma ter quaisquer segundas intenções ou frustrar a vinda dos colegas, devo desde já dizer que, a cada segundo que passa, merece cada vez menos a pena visitar Portugal.
Há uns anos atrás, arranjar emprego em Fisioterapia em Portugal era relativamente fácil, mas, precisamente porque havia grande oferta de empregos, e também devido à falta de legislação associada a múltiplos corporativismos, o número de escolas de Fisioterapia passou de quatro ou cinco para 17. Ora, isto fez com que, em poucos anos, o número de fisioterapeutas aumentasse exponencialmente. Temos, efectivamente, no tempo presente, fisioterapeutas a mais para as necessidades actuais do mercado português (e este evolui à velocidade da tartaruga...). E, acrescentando a isso a emergente crise económica do nosso país e a consequente desvalorização monetária e social da Fisioterapia (e das suas tabelas financeiras), a profissão é cada vez mais mal paga. Para além disso, a situação da maioria dos fisioterapeutas portugueses é precária, com entradas para a Função Pública há muito congeladas.
Mas os males da Fisioterapia em Portugal não se ficam por aqui. Por exemplo, o curso de Fisioterapia ainda está ao nível do politécnico (apesar de já existirem muitos mestrados e doutoramentos universitários na área), sem especializações, e com um investimento conceptual e tecnológico pobre. Em tudo, ou quase tudo, a Fisioterapia brasileira está mais evoluída que a portuguesa, incluindo o facto de áreas como a ergonomia, a osteopatia e a quiroprática serem, como acredito que devem ser, especialidades da Fisioterapia no Brasil, enquanto que aqui são profissões autónomas, que advogam uma pretensa autonomia profissional e também teorética e metodológica. Posso acrescentar também que, aqui em Portugal, os cursos são crescentemente mal dirigidos (como todos os cursos de outras áreas), com recurso cada vez maior ao facilitismo, incluindo professores sem qualquer “obra académica”.
Poderia acrescentar que os fisioterapeutas portugueses são mal reconhecidos e mal representados socialmente na mente dos próprios portugueses, e que a profissão não possui Ordem ou qualquer tipo de influência política ou corporativa. Nos Hospitais, por exemplo, a Fisioterapia não costuma ter Serviço próprio, é apenas um Departamento integrado num Serviço de ‘Medicina Física e de Reabilitação’.
Ora, a realidade actual é precisamente a de que os fisioterapeutas são muitos e mal pagos, mal respeitados apesar de crescentemente sabedores e capacitados, e que o precário desenvolvimento económico do país não promete o crescimento do mercado e a mudança de mentalidades.
Por outro lado, na minha visão, a Fisioterapia no Brasil possui mais respeitabilidade, mais áreas de intervenção, mais coerência académica e disciplinar, e até mais suporte tecnológico e político-administrativo. É verdade que, à semelhança de Portugal, os fisioterapeutas brasileiros são muitos e que o mercado não absorve todos os que existem, existindo um desemprego pandémico entre os fisioterapeutas brasileiros. Mas essa mesma situação já está praticamente igualada em Portugal (ou para lá rapidamente caminha), com muitos fisioterapeutas portugueses a escolherem emigrar para a França, a Itália, a Suíça ou o Luxemburgo, locais onde as coisas correm aparentemente melhor.
É certo que o Brasil possui um mercado muito esgotado. Mas também é certo que, apesar de muitos brasileiros não o sentirem, a economia brasileira está a expandir-se de tal modo que é provável que a situação no Brasil venha a mudar muito nos próximos anos. Já a crise económica portuguesa não tem perspectivas de melhoras (actualmente até vivemos numa aproximação “virtual” à bancarrota e à implosão dos mercados financeiros nacionais e internacionais), e, portanto, a ideia de que “o mercado é que tem de mudar” não passa disso mesmo...de uma ideia.
Por tudo o que deixo dito, devo então concluir que, apesar de serem – pelo menos por mim – bem vindos a Portugal, é possível que alguns dos fisioterapeutas brasileiros não consigam ter sucesso neste nosso país em crise estrutural profunda. É sempre bom conhecer um país do velho Continente, até porque Portugal tem um lindo património histórico-cultural, mas as perspectivas de encontrar emprego ou boas formações em Portugal é pequena. E a perspectiva de se fazer uma pós-graduação em Portugal parece ‘positiva’, mas não me consigo lembrar de nenhuma área de intervenção da Fisioterapia portuguesa em que os brasileiros não estejam mais desenvolvidos; penso que a diferença poderá residir na própria ‘Reeducação Postural’, com métodos como a base do “Método Mézières” a terem formação em Portugal e sem formação no Brasil.
Por tudo o que fica dito, não posso, no entanto, deixar de desejar ‘Boa sorte’ a quem vem (e também a quem “lá” fica) e ainda mais a quem resolver visitar outros países europeus. Da minha parte, manter-se-ão sempre o apoio e as informações.

(Entretanto, outros aspectos sobre a Fisioterapia portuguesa estão incluídos no meu "Manifesto sobre a emergência de uma fisioterapia pós-moderna", consultável aqui no blog ou em  http://www.hospitaldofuturo.com/profiles/blogs/manifesto-sobre-a-emerg-ncia-de-uma-fisioterapia-p-s-moderna?xg_source=msg_appr_blogpost, texto incluído no meu último livro, «A Clínica do Sagrado (...)»: http://reeducacaopostural.blogspot.pt/2014/02/a-clinica-do-sagrado.html) 

quarta-feira, outubro 06, 2010

Novo artigo "Os efeitos da 'Reeducação Postural Global': uma revisão sistemática da literatura"

O meu novo artigo, intitulado "Os efeitos da 'Reeducação Postural Global': uma revisão sistemática da literatura", encontra-se publicado no nº IV do TDTonline. Pode ser consultado em http://www.tdtonline.org/articles.php?id=magazine&mode=view_news#visualizacao. Espero que este artigo seja o primeiro de muitos mais estudos originais e meta-análises que se façam em redor da temática da Reeducação Postural, pois, neste mundo "reeducativo" ainda faltam os estudos transversais de qualidade (e as revisões sistemáticas respeitantes aos mesmos) que ajudem a defender a Reeducação Postural como método legítimo de intervenção, centrado em "Evidenced Based Practice". 

sábado, setembro 18, 2010

Congresso Internacional de Desporto e Actividade Física de Angra do Heroísmo

De 21 a 23 de Outubro irá decorrer o I Congresso Internacional de Desporto e Actividade Física de Angra do Heroísmo, com presença de vários oradores, incluindo eu próprio e o icónico Prof. Paulo Araújo.
Prevê-se que a minha conferência se intitulará "Reeducação Postural e a teoria das Cadeias Musculares: Implicações para a prática desportiva" e se irá realizar dia 21. No dia 23 será a vez de se realizar um workshop intitulado "Reeducação Postural e Cadeias Musculares: fundamentos". Estes dados ainda são novos e vão ter mais desenvolvimentos.
As primeiras informações sobre o Congresso e o alojamento poderão ser encontradas no site http://www.cidafah.com/, sendo que há ainda vagas para a participação (as datas limite de inscrição foram adiadas).

sábado, agosto 21, 2010

O mau jornalismo

A frase “A culpa é da comunicação social” aparece no artigo assinado por Henrique Monteiro no Expresso de 14/08/10. Com minha grande satisfação, Henrique Monteiro admite no seu texto que existe aquilo que podemos designar de um ‘mau jornalismo’. E não é precisamente esse mesmo ‘mau jornalismo’ que tem constituído o bode expiatório de tantos criminosos e governantes?... Não é precisamente também o ‘mau jornalismo’ que tem sido catapultado pelos governos como justificação para a censura ou simplesmente o ‘controlo prévio’ de informação?...
Penso que a temática tem sido pouco desenvolvida entre os leitores dos jornais e, principalmente, entre os próprios jornalistas. É que, a meu ver, o jornalismo é e será sempre a ‘pedra filosofal’ que permitirá o verdadeiro alcance da verdade, tanto em termos epistemológicos, como em termos pragmaticamente políticos e sociológicos. O jornalismo é verdadeiramente o instrumento das autênticas democracias e de uma certa justiça com verdadeiro sentido de ser. E, não tenho dúvidas, de que os jornalistas de hoje são os historiadores do amanhã.
Infelizmente, ou porque falta um verdadeiro sentido de ética, ou porque faltam critérios científicos de prática jornalística (não obstante a existência dos estatutos editoriais...), a grande maioria dos jornais, tanto da imprensa escrita como da televisão e outros media, pecam pelo absurdo, pela prática de um ‘jornalismo’ de sensações, caindo na armadilha da mentira, do exagero e, sobretudo, do desenquadramento lógico das notícias. Por exemplo, várias vezes tenho criticado o jornalismo por empolar um estudo polémico (portanto, mediático), ignorando centenas de outros estudos sérios que desmentem esse estudo isolado.
O jornalismo não pode ser espectáculo. O espectáculo não passa de entretenimento. O jornalismo não pode ser mero conjunto de ‘fait-divers’. O jornalismo não pode ser pura imagética ao serviço da lógica mercantilista. Mas, sendo-o na sua maioria, é necessário que os poucos jornais de qualidade ainda existentes continuem não só a expressar a sua qualidade, como deverão, mais do que têm feito, dar lugar à reflexão ética e voz objectiva e não censurada aos leitores e provedores do leitor. Defendo a criação e exposição dos critérios de prática do jornalismo do jornal em causa. Defendo também que os textos dos jornalistas e também dos leitores sejam sujeitos a critérios de qualidade que passem mais pela objectividade do que pela lógica editorial do jornal.

Publicado na Carta da Semana no Expresso de 21/08/10

sábado, julho 24, 2010

Mariano Gago e o realismo ingénuo

O artigo do Expresso de 17 de Junho de 2010 intitulado “Muitas vagas, pouco emprego” termina com a referência ao ministro Mariano Gago, relativa à necessidade – segundo o próprio – de termos dois milhões de licenciados em Portugal e relativo ao facto de que “quem completa uma formação superior tem mais facilidade em encontrar trabalho, fica menos tempo no desemprego e ganha bem mais do que quem tem habilitações inferiores”. Ora, tendo em conta a realidade com que todos os dias me deparo, questiono tanto a coerência quanto a lucidez mental de Mariano Gago.
Realmente é certo que os outros países europeus possuem 20% de licenciados, enquanto que nós nos mantemos pela metade dessa quota. Mas, também esses mesmos países possuem a capacidade para fomentar a criação de necessidades de mercado ao nível do número de licenciados. Ora, visto que o nosso país tem uma qualidade débil na criação de projectos e de novos postos de trabalho, e visto que o empreendedorismo é totalmente parco neste nosso país onde todos se encostam, perguntaria como é possível afirmar aquilo que Gago afirma. É que pouco interessa estar a formar licenciados ao nível dos outros países europeus, se as necessidades de mercado não acompanharem também a evolução económica desses mesmos outros países da Europa.
Tendo em conta que a evolução do mercado em Portugal se faz com uma lentidão sem paralelo, também a criação de vagas no ensino superior – assim como a criação de novos cursos – se deveria fazer com a mesma lentidão. Mas, na realidade, as vagas e os cursos criados, principalmente os do ensino privado, obedecem a uma lógica de corporativismo, sendo que os interesses existentes – em grande parte económicos – fazem com que os cursos estejam criados mais para os professores e as instituições do que para os alunos.
Falta rigor! Falta transparência! Falta imparcialidade na avaliação dos novos cursos! Falta, sobretudo, o realismo relativo aos milhares de licenciados no desemprego (lá vão fazendo os seus mestrados e doutoramentos, muitas vezes alimentando-se financeiramente à custa de bolsas atrás de bolsas) e relativo à recusa de emprego por “excesso de habilitações”. E falta termos um ministro que veja o país “real” que temos, e que não permaneça incompetentemente a falar de um “over the rainbow” que só o Governo consegue ver.

Publicado em "A carta da semana", no 'Expresso' de 24/07/2010

sexta-feira, julho 16, 2010

O mundo do wellness: indústria da alienação

Mais uma vez, o novo artigo que se apresenta também não possui grandes novidades para os seguidores do blog. Publico-o, por constituir um artigo publicado a 16/07/2010 no Jornal 'i'.
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Na inclusão das denominadas “indústrias do corpo”, o wellness adquiriu um lugar um tanto ou quanto privilegiado no seio do tecido social ocidental, levando a que um certo conceito de “saúde” ganhe contornos de verdadeira abrangência, infelizmente incluindo essa “indústria do bem-estar”, assaz “indústria cultural” (segundo a teoria dos filósofos da escola de Frankfurt), que se revela enquanto placebo psicológico e ilusório dos tempos modernos.
Esteticistas, massagistas e terapeutas proponentes de imensas “técnicas orientais” têm possibilitado a edificação de um conceito artificial de “saúde”, levando a que o termo perca o seu estatuto em prol de uma certa ideia de “prazer efémero”. E não são poucas as vezes que as pessoas, pobres para o Serviço Nacional de Saúde e as mais variadas terapêuticas do Sistema, demonstram possuir meios para realizarem as suas massagens relaxantes e/ou de emagrecimento (para além das incontáveis depilações, saunas, limpezas de pele, tratamentos anti-celulíticos, spas e outros “feitiços da mente”), assim como as massagens Tui-na ou ayurvédica, ou para receberem os seus toques de Shiatsu e de reflexologia (estas ditas de “massagens terapêuticas”...).
Uma citação de José Gil, da sua obra “Metamorfoses do corpo” resume a essência do epifenómeno “indústria do wellness”: «Assiste-se actualmente, depois do esforço psicanalítico, a uma verdadeira invasão do culto do corpo. Pretende-se fazer falar o corpo, descobre-se a propósito de tudo e de nada “um discurso do corpo”, pretende-se que ele se liberte ou se exprima. Como se o objectivo fosse, neste momento, descobrir uma língua do corpo à qual se subordinaria qualquer terapia ou outra forma de linguagem: artística, literária, teatral ou simplesmente comunitária. Muito estranhamente, na mesma altura em que esta voga testemunha uma sensibilização crescente pelos problemas do corpo tendente a afirmar a sua importância nos mais diversos domínios, retomam-se velhas ideias, velhos esquemas (...): este tornou-se o significante despótico que resolverá tudo, desde o declínio da cultura ocidental até aos menores conflitos intra-individuais. (...) Que corpo é este, em volta do qual se agitam estas terapias? Uma análise superficial revelaria neste campo uma maneira de fazer violência aos corpos – tomando, às vezes, as formas mais nuas de cinismo mercantil.»
O corpo, que deveria ser respeitado enquanto “ente”, segundo o mais complexificado sistema de pensamento fenomenológico-existencialista, vê-se crescentemente desvirtuado; ora é comummente substituído pela quimera da televisão ou da Internet, ora é enganadoramente “vivido”, numa crescente busca da abstracção do mundo concreto que não quer ser verdadeiramente vivido ou experienciado. Resta o adiamento da vivência perceptivo-motora, um dia tornada real por esse esforço diário que alguns profissionais de saúde e “motricidade” arvoram contra o fenómeno da descorporização.

sexta-feira, julho 09, 2010

O mundo do fitness: a grande ilusão

Nota: Este artigo não apresenta grandes novidades para quem segue o blog há algum tempo, mas, visto que foi publicado no Jornal 'i' de 09/07/2010, aqui o apresento, até porque inclui certos melhoramentos conteudísticos.
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É bem sabido, por entre os périplos de um certo “zelo epistemológico”, que nem sempre o que é evidente é real, ou que a verdade é sinónimo de uma certa pretensão (utilitarista) das maiorias. A “questão do fitness”, como lhe poderia chamar, é o exemplo rematado de um fenómeno daqueles em que poucos vêem que o rei vai nu. Pois, se é certo que, a curto prazo, as práticas de fitness são compatíveis com um certo conceito de saúde, a realidade a longo termo demonstra que nem sempre esta “nova medicina” se consubstancia com a verdadeira saúde global.
É certo que, num ponto de vista funcional, estudos com metodologias “transversais” têm demonstrado os benefícios da prática desportiva a curto prazo. Mas também é certo que o conceito de saúde é bastante mais global que aquilo que é preconizado pela maioria dos educadores físicos. Aliás, mesmo a Fisioterapia clássica parece estar toda ela vocacionada para esse curto prazo, adequada e cientificamente “evidenciado”... Mas, como a realidade científica pura e dura acaba por ter mais a ver com a Física dos postulados do que com esses referidos estudos “médicos”, importante será dizer que não deixa a ciência “exacta” de estar mais próxima da verdade de um corpo que, pelas suas leis posturais de controlo anti-gravítico e pelas hegemonias neuromusculares com estas relacionadas, progride no verdadeiro conceito de saúde holística pelo trabalho das actividades físicas de baixo impacto (a eficácia, por exemplo, do Pilates e do Tai-chi assim o comprovam) e, essencialmente, pelo alongamento global segundo os preceitos da teoria das Cadeias musculares.
Eis que a teoria de Françoise Mézières, uma fisioterapeuta francesa que em 1947 viria a conceber uma “révolution en gymnastique orthopédique”, possui implicações únicas na forma de compreender a patologia neuro-músculo-esquelética (sendo que a patologia “especificamente” postural existe, na prática, em todos nós que somos “saudáveis”...), assim como na forma como podemos conceber a prática física, seja no sentido médico, fisioterapêutico ou desportivo.
E, a acreditar nessa “revolução”, as actividades físicas desses ginásios que cultivam a “indústria do corpo” apresentam-se, deveras, como um verdadeiro atentado àquilo que é a real saúde “neuro-mio-fascial”. Em particular, esses ginásios que fazem uso de poderosas e maquiavélicas indústrias de marketing contribuem para reduzir o conceito de saúde músculo-esquelética à mera performance, quando seria mais correcto conceber essa mesma “saúde” enquanto “morfologia” ou “postura”, segundo os preceitos de um longo prazo “psico-neuro-morfo-dinâmico”, tal como concebido pelos fisioterapeutas de reeducação postural.
Não deixemos, todavia, de praticar desporto!... Mas tenhamos em conta que as actividades como as centradas no relaxamento tónico e flexibilidade miofascial, posturalmente “não viciadas”, não só são mais benéficas para a saúde, como são uma forma de imputar essa propensão quimérica de uma certa “indústria cultural” (Theodor Adorno).

terça-feira, julho 06, 2010

O corpo e o pós-modernismo: Michel Foucault

Os profissionais de saúde, nos raros momentos em que discutem os modelos de saúde e doença, e dos paradigmas de intervenção médica versus bio-psico-social (por que se regem), nem se apercebem de que estão, na realidade, a perpassar pelo seio mais íntimo de uma certa tradição filosófica denominada pós-modernismo; nomeadamente, falamos da tradição desse controverso filósofo que foi Michel Foucault (1926-1984).
Pois é certo que, ao longo de anos, o modelo de intervenção médica foi denunciando um conjunto de práticas, ora pré-científicas, ora científicas, que abjuravam o domínio do doente relativamente à sua própria máquina carnal e biomecânica... E foi Foucault quem contribuiu para o estudo dessa redução do “concreto” ao “histórico” e ao “social”...
Continuando, ainda actualmente, na mesma sociedade onde se discute o valor da autonomia, assaz reencontrada com um modelo de saúde veiculado pela presunção da liberdade mais basilar do ser humano e conformado às novas exigências de uma bioética emergente e de um suposto modelo holístico inclusivo de uma coerência profissional transdisciplinar, se verificam diariamente situações em que a decisão do doente é forçosamente “igualada” à decisão do médico ou outro profissional de saúde.
Inicialmente, em várias das suas obras, como “A história da loucura na idade clássica” (1961) ou “A história da sexualidade” (1976 e 1984), Foucault traça, enquanto verdadeiro historicista, um retrato das diferentes formas como o corpo, na sua dimensão sexual, e na sua dimensão patológica, era visto e concebido, assim como manuseado e tratado. A visão de Foucault, enquanto verdadeira visão historicista, concebe a história do corpo e da patologia enquanto conjunto de artefactos, modelados não por um quadro específico de valores relativamente estanques e invariantes, mas por um quadro de valores e práticas assaz cambiantes dos diferentes contextos temporais e socioculturais.
Mas, como já vimos, as diferentes “epistemis” não se resumem a um “modelo” histórico-social, sendo que, independentemente do tempo a que aludimos, as relações profissional de saúde – doente podem, de facto, ser perspectivadas numa ontologia diferente desse suposto “racionalista” raciocínio médico. Não é – e não o vemos todos os dias – real que a medicina que é diariamente praticada depende enormemente duma mera questão de relações (de poder) que se estabelecem entre o médico e o doente? Quantas vezes o diagnóstico médico não depende unicamente da perspectiva e necessidades de um profissional que trata o doente como um objecto de pertença, ignorando que o doente-utente-cidadão é um fim em si?...
Relativamente à “interpretação da patologia” e das já citadas “relações de poder”, Foucault começou por analisar sobretudo a forma como foi interpretado o fenómeno da doença mental e, bastante mais tarde, acabou a falar do “poder psiquiátrico”, e da forma como, em certo tempo, a institucionalização e a patologização serviam as pretensões de um certo poder.
Enquanto fisioterapeuta que sou, reconheço a relevância que o estudo de Foucault tem para a compreensão de qualquer profissão de saúde, tanto no domínio sociológico, como no domínio clínico. Quantos desses enfermeiros e fisioterapeutas licenciados – ou mesmo médicos catedráticos – saberão discutir a filosofia de Foucault?...

domingo, junho 20, 2010

Classes de Reeducação Postural

As pessoas que seguem mais de perto o meu trabalho no CCR sabem que realizo várias classes de Reeducação Postural e Pilates por dia. Este trabalho não possui, obviamente, as mesmas virtudes que sessões necessariamente individuais. Porém, em matéria de motivação, é bastante mais fácil, tanto para mim como para o doente, a manutenção de um “trabalho” longo numa dinâmica grupal.
Esta mesma dinâmica – de grupo – é claramente diferente do trabalho da fisioterapia individual. Num certo sentido, o trabalho de grupo trai um pouco os princípios da Fisioterapia em geral e da Reeducação Postural em particular; por outro lado, atendendo ao trabalho cada vez mais massificado das clínicas, mesmo da Fisioterapia pretensamente individual, diria que prefiro o meu trabalho àquele que muitas vezes observo.
Mas, mantendo-me num certo percurso argumentativo, diria que a forma como trabalho poderá, de algum modo, trair muito do que digo há vários anos sobre Reeducação Postural. Não obstante tal traição, gosto deste meu trabalho e desta minha dinâmica. Mas, não deixa de haver um componente que muitas vezes me frustra: o componente pedagógico. É que as classes são, na realidade, o contexto excelente para a introdução de certas componentes de Ensino em Fisioterapia. Mas a verdade é que muitas das pessoas que participam nestas classes não entendem esse mesmo objectivo pedagógico, não querendo muitas vezes esforçar-se ou implicar-se num trabalho verdadeiramente “educativo”. E é com pena que muitas vezes me apercebo de que tudo aquilo que estive a ensinar entra em “saco roto”... Por outro lado, não deixa de ser algo intrincada esta coisa de realizar um trabalho de “Educação Física” em indivíduos que estão, na sua maioria, pobremente escolarizados...
O trabalho grupal é, num certo ponto de vista, o futuro da Fisioterapia, pois já é praticamente impossível subverter esta evolução – a que assistimos diariamente – da Fisioterapia convencional para um trabalho mais parecido com o Fitness globalizado. Não sei se é suposto resistirmos a esta evolução. Mas de uma coisa estou certo: é preferível fazermos a “diferença” no seio desta evolução, do que simplesmente nos deixarmos vencer. Daí que defendo, como já tanto o fiz, que os fisioterapeutas têm de estar envolvidos nas aulas daquilo que podemos denominar de “actividades de baixo impacto”. E se essas actividades implicarem a compreensão sincrética de uma semelhança no significado das diferentes actividades físicas, então estamos verdadeiramente no caminho do progresso. Veja-se o exemplo do PNF-CHI. Integra modelos aparentemente diferentes, apregoa a actividade motora “facilitatória”, e tudo num contexto de marketing poderosamente bem sucedido. Também o PNF-CHI parece entrar numa dinâmica de “Fitness” que não me agrada. Mas talvez seja este o caminho certo: ao invés de “lutarmos contra”, tentemos uma certa “integração”...
No dia a dia, quando efectuo as minhas classes, devo confessar que não me sinto “trair-me” pela inclusão de um “factor comercial” no meu trabalho. Isto acontece porque, não obstante estar a trabalhar no sentido contrário ao que moralmente apregoo, não deixo de gostar da dinâmica em que laboro no dia a dia.
Cada pessoa, cada terapeuta, deverá pensar todos estes elementos. Por exemplo, sei que há fisioterapeutas que preferem trabalhar na Fisioterapia convencional, mesmo que a baixos preços. Admiro essas pessoas, apesar de que também elas se vendem e vendem a própria Fisioterapia (desta vez pela mera razão de que estão a trabalhar a baixo custo...). E sei que há quem trabalhe em contextos complexos, mas sempre com amor pela profissão. Não sendo despicienda a existência de uma certa e potencial “alienação”, construída logo no decorrer dos cursos, ainda assim o que interessa verdadeiramente é a felicidade, a qual é, na realidade, a mesma coisa que a percepção pessoal da felicidade (não a percepção dos outros).

sexta-feira, junho 11, 2010

Falta de objectividade da Comunicação Social

Assisto, de boca aberta ao seguinte “fenómeno”: No site do Jornal “I”, podemos ler: “Caso PT/TVI: Inquérito conclui que Sócrates mentiu no Parlamento”. No site do “Público”, lemos: “Relatório PT/TVI: Primeiro-ministro mentiu ao Parlamento”. No site do “DN” lemos: “Governo e Sócrates “tinham conhecimento” da operação”. E no site do “Expresso” podemos ler precisamente: “Relatório não prova mentira de Sócrates”. Parece que este último jornal terá lido o relatório em causa “de outra maneira”, supostamente “na íntegra”. Mas aquilo que concluo verdadeiramente de tudo isto é que a Verdade dos factos parece querer ser aquela que dá jeito a cada um. Em particular reparemos na atitude que certo jornal tem tido ao longo de anos relativamente ao Governo...
Reparemos, sobretudo, como é possível conseguir que a “mesma” verdade possa ser interpretada de maneiras tão diferentes... Assusta-me que o conceito de Objectividade seja realmente tão frágil por entre esse meio que é o da Comunicação Social...

quinta-feira, junho 10, 2010

A Ordem dos Fisioterapeutas: será uma ilusão? Um manifesto

Peço-vos: não se acerquem da ilusão que um certo “utilitarismo maioritário” tem concebido relativamente a uma futura Ordem dos Fisioterapeutas. No plano teórico, a Ordem será muito bem vinda, e todos devem contribuir para a “petição”. Mas, no plano prático, as coisas não são assim tão simples.
Na realidade, a Associação Portuguesa de Fisioterapeutas pede aos seus associados para subscrever uma petição, que, se for a bom porto, permitirá tornar os fisioterapeutas “bem colocados” da APF num órgão ainda mais poderoso: uma Ordem. A APF precisa dos seus associados como combatentes em nome de um órgão que irá, supostamente, tornar os fisioterapeutas profissionais mais autónomos e reconhecidos.
Em tempos, os enfermeiros também tinham a mesma ilusão. Mas, como veio a verificar-se, a Ordem dos enfermeiros tornou-se um organismo totalmente anémico, incapaz de exercer qualquer tipo de pressão, ou de realizar qualquer tipo de acto licencioso capaz de “ajudar” verdadeiramente os profissionais. Perguntem aos enfermeiros se se sentem “reconhecidos” pela sua Ordem...
Assumindo que a “nossa” Ordem não irá cair na pura “ineficiência” dos “enfermeiros”, devo dizer que a Ordem dos Fisioterapeutas, um pouco à semelhança dos sindicatos, só poderá vir a favorecer todos aqueles fisioterapeutas “velhos do Restelo” que se encontram bem colocados nos Hospitais e Centros de Reabilitação. Já a grande maioria dos jovens fisioterapeutas, muitos deles a ganharem a recibos verdes, e eventualmente a trabalharem em conjunto com auxiliares de fisioterapia e médicos fisiatras nas clínicas existentes, não conhecerão qualquer tipo de vantagem com uma pretensa Ordem; esta só fará com que aumente o nível de conflito (já existente) entre os diversos profissionais, os quais têm que inelutavelmente trabalhar como equipe.
Pergunto: quem fará parte da administração da Ordem? Provavelmente os membros da Associação. Pergunto: que vantagens possuo em fazer parte da APF? Descontos nas suas próprias formações? Acordos inúteis com outros Organismos? Divulgação de cursos ao preço de 200 euros? Divulgação de um Boletim que já quase nem é impresso?
Pergunto: Que fez a Associação para impedir a abertura indiscriminada de escolas de Fisioterapia? (Teremos consciência de que os membros da APF são, na sua maioria, professores nessas diversas escolas?...)... Que fez a APF para divulgar o mundo da Fisioterapia nos meios da Intelligentsia portuguesa? (Sozinho, publiquei mais artigos na Comunicação Social do que todos os membros da APF, presidente incluída, em conjunto). Que fez a APF para divulgar a verdade deste mercado grosseiro das múltiplas formações pós-graduadas? (Antes pelo contrário, ajuda e apoia um mercado que explora os jovens fisioterapeutas)... Podia continuar eternamente... Claro que a pergunta “final” é óbvia: Se a futura Ordem vai ser constituída por membros da APF, quem me garante que a Ordem vai fazer mais do que a APF tem feito?...
Já sei o que vão responder... A Ordem possui maior poder e legitimidade de intervenção que uma simples Associação. Daí a necessidade de criar uma Ordem, a qual possuirá maior poder “persuasivo”. Que grande ilusão!... A Ordem visa dar poder a quem quer poder! A Ordem visa dar lóbis e “cadeiras douradas” aos que já estão bem instalados! Pois, na realidade, nem sequer as entidades patronais se preocupam com a nossa suposta Ordem. Não são as nossas Cédulas reconhecidas unicamente pelo Ministério da Saúde?... Cédulas algumas em que os nossos colegas são identificados como “Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica”...
A realidade real das coisas tem demonstrado que as Ordens em geral não passam de organismos de abuso de poder, muitas vezes completamente descaracterizados e distantes da realidade dos profissionais. A “Elite” quer existir às nossas custas, mas não poderá resolver a nossa situação.
Acho que, no fundo, é mais fácil, para o nosso reconhecimento e autonomia, provar junto das nossas entidades patronais, principalmente se forem médicos, as nossas verdadeiras capacidades intelectuais e pragmáticas. É o que tenho feito junto dos meus “patrões” e todos os outros colaboradores, o que me permitiu, com o tempo, crescer na “empresa”. E digo-vos que a directora clínica da Clínica onde trabalho (médica fisiatra) tem demonstrado muitas vezes mais reconhecimento pelo meu trabalho e qualidades do que a simples recepcionista ou a mulher da limpeza...
Pensemos menos em formações! Pensemos menos em Ordens ou Sindicatos! Pensemos menos em soluções de “outros” relativamente à nossa vida. Pensemos mais nas nossas próprias qualidades heurísticas, na nossa capacidade competitiva, na nossa capacidade para conseguir “crescer” e mostrar que somos mais eficientes que muitos “outros”. Este tipo de “combate constante e competitivo” não existe para aqueles que já estão bem instalados (e encostados) nos diversos hospitais que por aí abundam...
Não coloquemos muita fé numa suposta Ordem. Esta gosta, muitas vezes, de exercer o seu poder de forma supostamente arbitrária. O nosso reconhecimento e autonomia estão dependentes, acima de tudo, das nossas capacidades, as quais devem basear-se num exercício de Liberdade (responsável). A Ordem dos Fisioterapeutas não será eficiente. Se o vier a ser, então transformar-se-á em mais um organismo de mero exercício de Autoridade.

sexta-feira, junho 04, 2010

O problema da demarcação e a sociedade aberta

Há quem se refira a um hipotético “Choque de civilizações” para se referir às diferenças, sabidamente tonitruantes, entre os valores que medeiam as sociedades ocidentais, conhecidas entre nós como sociedades evoluídas, e os valores que consubstanciam o funcionamento das sociedades ditas “fechadas”. A questão deste texto trata de saber se as diferenças referidas poderão ser “objectivadas” cientificamente, ou se continuarão a ser exclusivos do campo do preconceito com base num certo relativismo histórico-social.
Sabemos que existe, nos tempos que correm, uma tradição pós-modernista de carácter assaz historicista que pretende que o nosso conceito de “banalidade do mal” (Arendt) não passa de uma forma de subjugação das sociedades orientais a uma hipotética superioridade do ocidente. E sabemos também que até existe toda uma verborreia psicologista que pretende relativizar o impacto de certos fenómenos que os ditos “ocidentais” pretendem criminosos (como a pedofilia ou a excisão genital feminina).
Não sendo de negar o realismo pragmático de um certo relativismo, algo que terá de ser necessariamente respeitado por todos os actores sociais das ditas sociedades evoluídas, existe aquilo que podemos designar por um “limite da tolerância”, correspondente provavelmente ao “intolerável” (e este “intolerável” é-o independentemente das razões psicossociais - conscientes ou inconscientes - que subjazem a determinado fenómeno de natureza imoral). Mas este mesmo “intolerável” só poderá existir “realmente” se, de algum modo, consubstanciarmos a existência, também ela “real”, de Valores ético-morais.
Sejam ou não de base explicativa bio-genética e evolutiva, os invariantes que conhecemos por Valores permitem a construção de critérios de funcionamento sócio-moral. Mas estes mesmos critérios não possuem qualquer sustentação se o agente que os constrói não possuir um verdadeiro espírito de “racionalismo crítico”. Pois não terão sido Platão, Hegel e Marx profetas, supostamente hipermorais, teóricos de uma sociedade perfeita, construtores de uma escala de Valores que veio mais tarde a revelar-se enganadora?...
Karl Popper, no seu “Sociedade aberta e os seus inimigos” faz a análise destes – para utilizar a expressão de Berlin – “inimigos da liberdade”. E essa sua análise não pode ser separada daquilo que o mesmo entende como o critério da demarcação (referido primacialmente em “A lógica da descoberta científica”) entre científico e não científico (poderíamos dizer entre racional e irracional): a falsificabilidade.
Ora, atendendo a que, de certo modo, determinados Valores, no sentido da sua conversão em regras morais, possuem um carácter ambíguo e redundante, que o mesmo será dizer que nem sempre a temática “política” se move pela unanimidade moral de intentos, resta à ciência, à verdadeira ciência pura, exacta e falsificável, a criação desse já citado critério (de racionalidade) que permite, na teoria, descartar falsas ideologias libertaristas. Reside, portanto, a meu ver, na ciência, principalmente a popperiana (que não se baseia num realismo ingénuo, como a dos neo-positivistas, mas também não recai na infinita “multiplicidade de olhares”), a função de determinar aquilo que pertence ou não a uma escala de Valores instituída com visão única na Liberdade.
Porém, a constituição de uma ciência contemporânea, conhecida por pós-modernismo, vem abalar toda a presunção de uma objectividade moral, pelo menos se nos propusermos a aceitar o que foi dito anteriormente.
Acredito, no entanto, que a ciência pós-moderna se baseia num grande mal-entendido. É que dizer que o Homem se move por um conjunto de factores inúmeros que se movem uns pelos outros num suposto “efeito borboleta” – o que acarreta, obviamente, um certo relativismo, assim como o tratamento das ciências sociais e humanas no prelo de um estatuto autónomo – não é o mesmo que dizer que o Homem está preso a uma máquina de indeterminismo. Ou, traduzindo numa linguagem “quântica”: dizer que existe um incomensurável conjunto de colisões entre partículas, não completamente mensuráveis pelo homem (sem que o mesmo altere esse mesmo estado cinético), não significa que não exista um limite virtual para o conjunto dessas colisões (futuramente mensuráveis).
Ora, se a própria evolução da ciência propõe um controlo futuro do conjunto imenso de factores que enformam o agir humano, o necessário determinismo que daqui advém acarreta a cientificação plena das temáticas sociais, o que, por si, acabará por acarretar a construção de uma criteriologia que esboce a edificação de uma sociedade aberta e de relações internacionais basilarmente morais (na mais pura das axiologias).
Somente a vontade de continuarmos a viver como “animais irracionais”, ao sabor de um certo evolucionismo retrógrado e instintivo, poderá fazer com que a “sabedoria das nações” (Beauvoir) não se delineie na plenitude. Até agora, parece que a história do Homem tem sido a história de um poderoso Id. Talvez esteja na hora de nos constituirmos como seres amplamente Humanos. Talvez esteja na hora de nos começarmos a guiar pela verdadeira Razão.

Filosofia enquanto ciência? A escola analítica

Falar da filosofia enquanto mãe de todas as ciências não passa de pura vanidade. Pois, na realidade, a filosofia, enquanto prática mais ou menos literária ou mais ou menos silogística, existe há muito mais tempo do que aquele em que o “Logos” passou a ser matéria banal. Mas, é bem certo que as relações entre a filosofia e a ciência estão longe de estar completamente reiteradas, apesar de que é certo – ou foi certo, até ao século XIX – que a matéria filosófica passa mais por doxa do que por matéria falsificável.
A filosofia grega mais ou menos essencialista, a patrística e a escolástica, a filosofia do renascimento e das Luzes, assim como toda a restante que passa por “moderna” (compreendendo que este “período” se finaliza com Nietzsche), é, apesar das suas diferentes áreas e dissemelhantes escolas, matéria essencialmente especulativa. Esta filosofia tende a confundir-se muitas vezes com “história da filosofia”, pelo menos no que respeita à prática contemporânea de um pensamento já pensado pelos autores canónicos. Queiramos ou não, a filosofia dita “historicista” tem mais a ver com exercício hermenêutico do que propriamente com uma actividade dita científica. Não existe nela a “metodologia” que é necessária à constituição de matéria adequadamente testável, ou pelo menos não existe simplesmente um “método”.
Sabemos que a divisão da filosofia europeia em dois tipos de praxis pensante – filosofia anglo-saxónica e filosofia Continental (o C maiúsculo é propositado) – nasce, pelo que é legítimo considerar da divisão da filosofia em empirismo britânico (desde o empirismo propriamente dito de Locke até ao empirismo radical ou idealismo de Hume) e racionalismo continental (Descartes, Leibniz, Spinoza), no século XVII, tendo a sua aparente resolução “construtivista” em Kant, no século XVIII. Ora, esta tradição tende a manter-se em pleno século XX, com os países anglófonos a serem essencialmente empiristas e os países do Continente a serem essencialmente dados à “razão historicista”. Mas, ao contrário do que se possa pensar, a tradição do século XVII tem pouca influência na divisão de escolas da contemporaneidade, sendo que o empirismo lógico pouco ou nada tem (inicialmente) de idealista, enquanto que a filosofia Continental pouco mantém das minudências cartesianas.
Enquanto o continente se mantém relativamente apegado aos grandes pensadores, no formato de novas filosofias como a fenomenologia, o existencialismo, o estruturalismo e a filosofia pós-marxista (portanto, mantém-se como matéria ainda essencialmente especulativa e não científica), nasce, nos países anglófonos, uma tradição de análise supostamente científica da filosofia. Trata-se da filosofia analítica. Esta filosofia pretende tratar os diversos temas filosóficos (à excepção da metafísica e de outros temas dificilmente “comensuráveis”) com recurso à dissolução logicista das matérias linguísticas em questão. E parece que esta tradição do “Tratado Lógico-filosófico” de Wittgenstein e da obra de Russell colheu bastantes fãs, pois, de tal modo a filosofia parecia cientificar-se que os pensadores do Círculo de Viena fizeram uso deste material da Lógica para poderem exprimir a sua filosofia neo-positivista (também chamada de positivismo lógico). Ao que parece, uma grande parte dos filósofos anglo-americanos passaram, de certo modo, a considerar a filosofia (analítica) como matéria científica. Não devemos claro confundir a filosofia analítica com o neo-positivismo, supostamente epistemologia científica, cuja cientificidade viria a ser dominada pela contradição popperiana do princípio da observação.
A ciência aqui estava na forma de trabalhar da filosofia analítica, a qual chegava a dispensar a leitura dos filósofos do passado, tal como um físico não precisa de ler Newton ou Bohr para construir uma bomba atómica. Mas também esta filosofia dita científica viria a falhar na explicação da “enormidade” do mundo. É que, não só Gödel viria a mostrar que nem tudo é matemática ou linguística, como os próprios filósofos analíticos iriam mergulhar numa espécie de esquizofrenia idealista, criando uma brecha para um tipo de filosofia solipsista baseada na análise linguística sem relação com a Realidade real. Lá ficou pelo caminho a pretensão de constituir uma filosofia inteiramente científica.
Em jeito de curiosidade, note-se que os diversos caminhos da filosofia continental também levaram à análise das estruturas linguísticas (numa tradição essencialmente estruturalista, inicialmente meramente formal e semiótica), e também estas acabaram em exercício “idealista”, perpetrado fundamentalmente pelo desconstrucionismo de Derrida.
Conclusão: apesar de existir ainda uma forte tradição analítica, e apesar de a filosofia historicista das grandes obras ser ainda aquela apaixonante e dominante forma de fazer filosofia, o pós-modernismo – a tendência mais moderna e pragmática de fazer filosofia (e, ao contrário do que é dito, algo que merece grande consideração) – assume-se como a nova grande forma de fazer filosofia, que é precisamente a forma de filosofar mais longínqua que alguma vez existiu da forma de fazer verdadeira ciência.

segunda-feira, maio 31, 2010

Facebook e a questão da privacidade

Agora que todos falam do Facebook e da questão da "invasão da privacidade", gostaria de dizer umas quantas palavras sobre isso. Não há ninguém que seja mais crítico relativamente às inovações do tipo "redes sociais" e "Ipad" quanto eu. Acredito até que estas "modernices" representem o fim hipotético de um mundo que tem muito mais graça, que é o mundo dos livros bolorentos e dos engates em real time. Por outro lado, sabidamente também eu me traí e também eu criei uma página no Facebook. É verdadeiramente um defeito. Mas é um defeito que assumo consciente e responsavelmente. E acredito que a maioria das pessoas ligadas a esta rede social tem plena noção daquilo que acarreta a sua subscrição. Daí não entender toda esta "prosódia" sobre o ataque à privacidade. Pois, quem coloca um perfil no Facebook sabe perfeitamente que está a criar uma brecha na sua privacidade e, suponho eu, está a responsabilizar-se por esse acto. Dizendo de outro modo, quando coloco informações nas redes sociais, sei perfeitamente que toda a gente vai ter acesso àqueles dados; aliás, o objectivo é esse mesmo. Depreendo obrigatoriamente que aquele é um espaço em que autorizo a sua revelação. Por isso, não entendo a questão da "Privacidade", visto que, talvez exceptuando as crianças pequenas, essa é uma questão da pura "liberdade responsável" dos utentes das redes.

Publicado parcialmente no Correio dos Leitores do Jornal "I"

domingo, maio 02, 2010

O elogio da dança contemporânea

Disse já várias vezes que as terapias de âmbito expressivo, como a psicomotricidade ou a dançoterapia, constituem o futuro da reeducação postural. É que, a evoluir no sentido de um conceito essencialmente “neurodinâmico”, porque “postura” se trata essencialmente de área neurológica e não tanto orto-reumatológica, a reeducação postural só poderá mesmo avançar no sentido que Bobath conseguiu tão bem explanar em termos mais teoréticos.
Podemos chamar-lhe imensas coisas: Chi-Kung, Tai-chi ou PNF-Chi, Temple Fay, Phelps, Affolter ou Bobath, psicomotricidade, psicodrama ou terapias expressivas... Todas têm em comum a fenomenologia facilitatória e de baixo-impacto das forças expressivas de um ser humano criativo. Já falámos várias vezes da questão dos “paradigmas” e das similitudes entre os diversos métodos (a questão das diferenças semióticas dos diversos modelos de intervenção). Por isso, não vale a pena batermos no ceguinho. Agora estou em fase de experimentar a dança contemporânea, essa prática que integra um pouco de tudo aquilo que referi atrás. Essa prática que podia ser vista como um PNF ou um Bobath aplicados a um corpo heurístico, mas com um nome diferente: dança contemporânea, movimento contemporâneo, dança ou movimento expressivo, dança ou movimento livre, etc.
A dança contemporânea ou expressiva, que tenho praticado, constitui, na teoria, uma desconstrução do ballet e das suas estruturas e/ou regras mais ou menos rígidas. É uma prática que dá espaço ao corpo e à relação corpo-mente para falarem livremente, como se cada gesto fosse o resultado do mais puro e duro livre-arbítrio. Inclui também o funcionamento como um todo, padronizado, algo que já é perspectivado há milénios pelo Yoga e pelo Chi-kung, e há séculos pelos bailarinos, algo que foi intelectualizado – e não descoberto – pelos fisioterapeutas da “facilitação neuromuscular” ou das técnicas de “facilitação e inibição”...
E, para tornar tudo mais perfeito, tudo o que ando a defender há anos está presente nas mentes dos bailarinos: o relaxamento e o alongamento a frio a iniciarem o “treino”, o trabalho de inibição tónica por meio do treino de movimentos facilitatórios (Bobath? Alexander? Feldenkrais? Reconstrução Postural?... Que interessa o nome que os fisioterapeutas lhe dêem...), a consciencialização corporal e postural, a vivência do movimento criativo sem esforço, a integração sensorial, o treino proprioceptivo, o desafio constante ao equilíbrio (físico? Mental?...) a concepção espácio-temporal, o relaxamento (do corpo? Da mente? Da estrutura que os integra?...), e a consubstanciação expressiva da criatura (supostamente) livre que nos enforma.
Tenho só coisas boas a dizer destas minhas experiências com a dança. Como seria bom que todo o mundo da “hipermodernidade” (para utilizar o termo do cada vez mais modal Lipovetsky) do fitness aprendesse algo com estas experiências da arte do movimento (movimento? Postura?...).

sábado, abril 24, 2010

Falsificacionismo ingénuo ou a epistemologia de Lakatos

Depois de ter escrito e publicado artigos sobre Popper e Kuhn, os dois nomes mais sonantes do mundo da teoria do conhecimento, urge laborar em algumas “evoluções”, pela mão específica de Imre Lakatos. Pois, na realidade, no seio de um certo acometimento do pensamento, concluo, de vez, que certos argumentos de Popper relativos à importância da “falsificação” como critério de demarcação e como requisito de crítica ao relativismo/historicismo não me convencem verdadeiramente; e, assim, a emergência do pós-modernismo torna-se uma realidade crua, um sentido fatal e inexaurível.
É possível que a realidade do pós-modernismo seja virtualmente falsa, pela virtualidade das possibilidades de controlo de certos factores consideravelmente difíceis de prever e controlar. Mas parece que o relativismo está mais próximo da realidade pragmática das coisas que o empirismo essencialista, pelo menos no que respeita ao funcionamento das ciências sociais. E não tenho dúvidas de que o critério do falsificacionismo não tem utilidade no funcionamento das ciências sociais, sendo estas totalmente probabilísticas.
Assim, o facto de certos acontecimentos não provarem de todo a emergência do princípio de observação mézièrista não implica a falsidade do princípio, no sentido em que a excepção não implica o abandono de uma certa propensão probabilística.
Conheço os argumentos de Popper relativos às críticas dos relativistas. Mas não sei se me convencem...
No contexto desta discussão, o nome de Lakatos é fundamental, no sentido em que este analista da obra de Popper fala da falsidade da evolução da ciência por “tentativa e erro” (tal como defendido por Popper), assim como se refere à ingenuidade de um critério de “falsificação” como princípio evolutivo do progresso das ciências. Este falsificacionismo “ingénuo” ou “dogmático”, defendido por Lakatos nos seus ensaios, aponta a epistemologia dos paradigmas de Kuhn como estando mais próxima da Verdade real ou pragmática das coisas. É que na realidade é assim que a ciência progride verdadeiramente: por jogos de resistência, apagões de teorias contraditórias, negações de falsificações, tentativas de inclusão das anomalias relativas à teoria, e, finalmente, uma rendição relativa a um novo paradigma no caso do período revolucionário ter sido bem sucedido.
O falsificacionismo continua a ser importante... mas no domínio das ciências exactas. Por outro lado, mesmo nestas, a evolução da ciência é feita por um processo que não tem nada a ver com o Ideal evolucionista propugnado por Popper. É que a realidade pragmática das coisas tem demonstrado que a dinâmica dos paradigmas e das “epistemis” (Foucault) domina a evolução da ciência, sendo que a incerteza e o relativismo são realidades impossíveis de apagar.
A partir daqui, resta apenas a tentativa de ter tudo em conta, de sermos necessariamente razoáveis, e de evitar ao máximo a fuga ao meio-termo. Nem Popper é Lei, nem o relativismo é necessariamente a resposta única das coisas.

Publicado em 'As Artes Entre As Letras', dia 28 de Julho de 2010

segunda-feira, abril 19, 2010

Bullying: visão de uma vítima

Há alguns anos atrás, quando descobri pela primeira vez o significado do termo “bullying”, estava longe de pensar que o mesmo “fenómeno” viesse a tornar-se uma moda, assaz mais um fenómeno conceptual das “indústrias culturais”. Nessa mesma altura em que descobri o conceito de “bullying”, senti-me feliz pelo facto de existir um nome para aquilo que eu próprio tinha vivido durante anos a fio.
Lembro-me que, quando ingressei numa nova escola por volta dos dez anos de idade, não levaria muito tempo para que os gozos e as ameaças se tornassem uma constante na minha vida. Acusavam-me de ser “menina”, de ser mariquinhas. E eu sofria por não me rever nas acusações. E pelo menos metade da turma a que pertencia criou o hábito de me gozar e assediar diariamente, horas e horas a fio. Esse gozo durou todos os anos do meu percurso naquela escola e naquela turma. E, à medida que os anos iam passando, também a minha pessoa se foi modificando. Anos e anos de gozo levaram-me ao extremo da máxima auto-depreciação; perdi os poucos amigos que tinha, a minha personalidade tornou-se sombria e o meu comportamento intelectualizado, o meu corpo era desvalorizado e até a minha identidade sexual se achou totalmente baralhada. Lembro-me que fiquei incapaz de ir à casa de banho em conjunto com outros rapazes, pois as acusações constantes dos mesmos faziam com que não tivesse auto-estima suficiente para partilhar um mesmo espaço de forma “masculina” (ainda hoje, mais de quinze anos depois, sou incapaz de urinar no urinol masculino de casas de banho públicas).
Durante todos os anos que aquele gozo durou, e todos os anos seguintes, o meu medo dos rapazes e das relações com as raparigas, viria a minar a minha vivência adolescente e juvenil, tornando-me algo anti-social e preconceituoso relativamente às pessoas (quando não intolerante).
Lembro-me que o bullying a que fui sujeito não fez com que as minhas notas baixassem. Antes pelo contrário! Intelectualizei-me, refugiei-me nos livros e arranjei uma forma um tanto ou quanto artificial de me expressar.
E durante todo o processo nunca contei nada aos pais. Refugiei-me dentro de mim mesmo, no meu mundo interior... e também nos meus livros.
Nunca tentei mudar de escola, pois algo me dizia que havia algo em mim que iria acompanhar-me também na nova escola. Seria alvo de novos gozos... E tal aconteceu de facto quando fui para a escola secundária. Ao perceber que havia algo implícito em mim que me tornava vítima de bullying nos diversos contextos (escolares ou não escolares) da minha vida, percebi que o gozo e o assédio fariam parte constante da minha vida. Agora, penso, mais do que nunca, que existe, de facto, um “perfil de vítima”...
E, assim como existe um perfil de vítima, também existe, provavelmente um perfil de vitimizador. Não sei se estes perfis estão de algum modo dependentes dos estratos sociais ou das condições de vida. No meu caso, sei que foram certos maneirismos, associados a um certo tipo de personalidade, que precipitaram todas as formas de assédio. Mas, de uma coisa estou certo: é tão real o bullying sofrido modificar toda a nossa vida quanto é real que o bullying não pode ser resolvido pela mera mudança do estatuto ou comportamento do professor.
É claro que a justiça implícita no “não gozar” acarreta que não devamos tentar modificar o perfil da vítima (ao contrário do que o meu ex-psicanalista diria). Mas também é certo que o perfil do vitimizador é tal que não existe qualquer vantagem em aumentar os níveis de controlo dos “bullers”. Qualquer criança ou adolescente saberá que o controlo do professor é visto como “uma mamã que protege o pequeno filho”. Qualquer criança ou adolescente sabe que os castigos ou chamativos de atenção aumentam ainda mais os gozos e os assédios. Lembro-me que, sempre que um professor repudiava um dos meus vitimizadores, logo que o professor virava a cara, esse mesmo “valentão” tudo fazia para se vingar do potencial “queixinhas”. Daí desconfiar muito da forma como as “autoridades” estão a conceber o fenómeno de bullying.
Claro que o perfil e o comportamento dos professores, pais e educadores também contam. Não vá outra criança apanhar um daqueles professores de educação física que é ele mesmo um vitimizador (as aulas de educação física da minha adolescência ainda hoje me provocam um certo ressentimento relativamente a todas as formas de treino físico)... Mas, confesso que tenho dúvidas de que o fenómeno do bullying possa ser travado pela mera imposição de uma autoridade. Talvez fosse mais vantajoso promover a (re)construção das relações entre colegas e entre professores-alunos, assim como promover o equilíbrio do Sistema que comporta o conjunto dos alunos, pais, professores e todos os agentes sociais com estes envolvidos. E, em última análise, é toda uma cultura, toda uma sociedade que tem de mudar. Para que o preconceito e a intolerância possam medrar no seio de uma sociedade “aberta” (Karl Popper)!...

terça-feira, março 30, 2010

A nova greve dos enfermeiros

Decorridos cerca de dois meses após a primeira greve dos enfermeiros do ano corrente, eis que uma nova greve dos mesmos profissionais se realiza, desta vez por vários dias consecutivos. Tentemos, de uma forma justa, apontar alguns aspectos positivos, assim como negativos, relativos a esta importante manifestação de profissionais de saúde não médicos.
Penso que é inegável, e ninguém tem dúvidas disso, que os diversos profissionais de saúde não médicos possuem uma importância crescentemente relevante para os diversos tipos de cuidados. De igual maneira, a formação destes profissionais é também crescentemente – senão exponencialmente – mais estrídula, à semelhança do seu grau de responsabilidade e de proficuidade laboral. Na realidade, os diversos profissionais de saúde (falo enquanto fisioterapeuta que sou) sabem que tanto a exigência da formação como a exigência da própria actividade laboral são cada vez maiores, questionando-nos muitas vezes se tanto esforço valerá mesmo a pena... E a tal facto poderemos decerto acrescentar que é certo que muitos médicos, ao contrário do que pode ser pensado, se dedicam mais tempo a papeis e burocracias do que aos próprios doentes (com muitas óbvias excepções...).
Os argumentos apresentados, acrescentados à necessária credibilização das várias profissões de saúde não médicas – incluindo tecnologias de saúde e também profissões menos reconhecidas no âmbito legal –, tornada justa por uma formação de licenciatura do mais alto grau de exigência, tornam as greves dos enfermeiros justas, assim como coerentes.
Por outro lado, todos nós, profissionais de saúde não médicos, sabemos que é apanágio do nosso “inconsciente colectivo” o desejo de uma autonomia, senão de um poder, que nos igualize, de certo modo, ao Sr. Dr. E, na nossa sociedade, não faltam terapeutas e profissionais de medicinas não convencionais que se auto-intitulam de Senhor Doutor ou Senhor Professor. Ora, a realidade é que a natureza da actividade de enfermeiro tem, apesar da inegável qualidade técnico-científica matricial, pouco a ver com uma actividade que se possa apelidar de “intelectual” (numa gíria dita marxista). Os enfermeiros têm feito tudo para que as suas actividades se “intelectualizem”. Até os compreendo!... Mas, na realidade, ao evitarem lavar rabinhos aos idosos e mudar as fraldas aos incontinentes, os enfermeiros começaram, há muito, a escavar a sua própria sepultura; o novo paradigma da actividade de enfermeiro está a fazer com que esta profissão seja substituída por outros profissionais de menor formação. Ora, acredito que as novas exigências remuneratórias dos enfermeiros, apesar de aparentemente justas, constituirão mais um factor de destruição da imagem do enfermeiro enquanto profissional de apoio directo ao paciente. Um enfermeiro encarecido torna-se menos necessário. E – mais – um enfermeiro intelectualizado tende a fugir cada vez mais às tarefas de enfermagem, para se aproximar cada vez mais das tarefas de gestão e de controlo.
Acredito que os enfermeiros devam ser respeitados de outras maneiras que não o aumento salarial directo. Este só poderá fazer com que os enfermeiros se tornem mais “dispensáveis”, para além de dificultar a entrada de novos enfermeiros nos serviços, e de poder ter consequências deletérias para os custos do Serviço Nacional de Saúde.
Considero a actual remuneração dos enfermeiros justa (aliás, os profissionais das tecnologias de saúde, igualmente licenciados, recebem menos que os enfermeiros). E considero que, perante o clima económico emergente do nosso país, nem os enfermeiros, nem quaisquer outros profissionais de saúde devam, neste momento, efectuar greves do tipo da realizada.
No seu tempo, mediante a facilitação e flexibilização do horário de trabalho, da promoção e financiamento das formações profissionais, avançadas e pós-graduadas e da premiação da assiduidade, os enfermeiros poderão e deverão vir a conhecer outras formas de serem mais justamente pagos pelo seu (real) trabalho. Ou seja, acredito que tanto os enfermeiros, como os diversos profissionais de saúde médicos ou não médicos, devem ser pagos em função de um processo de “promoção”, o qual poderia funcionar segundo um esquema avaliativo semelhante àquele que está a ser pensado para os professores. Ou seja, centremos os ganhos mais na produtividade e tratamento com vista à humanização, e menos nas formações académicas de base.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

RPG: lista prévia de estudos publicados (encontrados na Biblioteca Virtual em Saúde)

Marques, A. P., Mendonça, L. L. F., & Cossermelli, W. (1994). Alongamento muscular em pacientes com fibromialgia a partir de um trabalho de reeducação postural global (RPG). Rev. Bras. Reumatol., 34(5): 232-234.

Marques, A. P. (1994). Hérnia de disco cervical tratada com reeducação postural global (RPG). Rev. Fisioter. Univ. São Paulo, 1(1): 34-37.

Marques, A. P. (1996). Escoliose tratada com reeducação postural global. Rev. Fisioter. Univ. São Paulo, 3(1/2): 65-68.

Pita, M. C. (2000). Cifose torácica tratada com reeducação postural global. Arq. Ciênc. Saúde, 4(2): 159-164.

Teodori, R. M., Moreno, M. A., Fiore Junior, J. F., & Oliveira, A. C. S. (2003). Alongamento da musculatura inspiratória por intermédio da reeducação postural global (RPG). Rev. Bras. Fisioter., 7(1): 25-30.

Castro, P. C. G., & Lopes, J. A. F. (2003). Avaliação computadorizada por fotografia digital, como recurso de avaliação na reeducação postural global. Acta Fisiatr., 10(2): 83-88.

Smania, N., Corato, E., Tinazzi, M., Montagnana, B., Fiaschi, A., & Aglioti, S. M. (2003). The effect of two different rehabilitation treatments in cervical dystonia: preliminary results in four patients. Funct Neurol, 18(4): 219-225.

Teodori, R. M., Guirro, E. C. O., & Santos, R. M. (2005). Distribuição da pressão plantar e localização do centro de força após intervenção pelo método de reeducação postural global: um estudo de caso. Fisioter. Mov., 18(1): 27-35.

Gomes, B. M., Nardoni, G. C. G., lopes, P. G., & Godoy, E. (2006). O efeito da técnica de reeducação postural global em um paciente com hemiparésia após acidente vascular encefálico. Acta Fisiatr., 13(2): 103-108.

Moreira, C. M. C., & Soares, D. R. L. (2007). Análise da efectividade da reeducação postural global na protusão do ombro após a alta terapêutica. Fisioter. Mov., 20(1): 93-99.

Fregonesi, C. E. P. T., Valsechi, C. M., Masselli, M. R., Faria, C. R. S., & Ferreira, D. M. A. (2007). Um ano de evolução da escoliose com RPG. Fisioter. Bras., 8(2): 140-142.

Fozzatti, M. C. M., Palma, P., Herrmann, V., & Dambros, M. (2008). Impacto da reeducação postural global no tratamento da incontinência urinária de esforço feminina. Rev. Assoc. Med. Bras., 54(1): 17-22.

Heredia, E. P., & Rodrigues, F. F. (2008). O tratamento de pacientes com fibrose epidural pela reeducação postural global – RPG. Rev. Bras. Neurol., 44(3): 19-26.

Cunha, A. C. V., Burke, T. N., França, F. J. R., & Marques, A. P. (2008). Effect of global posture reeducation and of static stretching on pain, range of motion, and quality of life in women with chronic neck pain: a randomized clinical trial. Clinics, 63(6): 763-770.

domingo, fevereiro 14, 2010

Liberdade de expressão e importância dos blogues

Mesmo não tendo muito a ver com a temática deste blogue, atendendo à polémica presente relativamente às “escutas” e à “liberdade de imprensa”, penso que devo publicar aqui uma chamada de atenção.
Não nego que pode, de algum modo, ter havido uma certa pretensão por parte do Governo de auferir de um certo controlo dos conteúdos de certos meios de Comunicação Social. De certo modo, atendendo ao exagero próprio de alguns órgãos mediáticos viventes de “sensações”, esse controlo até poderia ser visto como uma dádiva à responsabilidade de informação...
É precisamente este último ponto que pretendo sublinhar. Assim como existe uma certa necessidade de os Governos nos atirarem areia para os olhos – sempre foi apanágio das democracias, e não só dos regimes mais totalitários – também os órgãos de Imprensa possuem essa mesma necessidade. Se a tentativa de controlo dos conteúdos e formato de um telejornal são um atentado à liberdade de Imprensa, diria que aquilo que os órgãos de Imprensa fazem no dia a dia – controlam o tamanho e conteúdos dos artigos, assim como censuram os artigos de opinião que são menos coesos com a política editorial do jornal em questão – também é claramente um atentado à liberdade de expressão! Eu, que tanto publico e tento publicar nos vários jornais nacionais, bem sei a forma como jornais como o “Público”, entre outros, gostam de fingir que não recebem certos artigos (cujos conteúdos são críticos para o jornal em si), assim como fingem que os seus conteúdos são irrelevantes. Aliás, até determinada data, era comum publicar uma ou duas “cartas ao director” no Público (para além de que já tinha publicado quatro artigos propriamente ditos), mas desde que apresentei a minha crítica relativamente à “gracinha” pseudo-intelectual “Vasco Pulido Valente vs. Miguel Sousa Tavares” parece que os meus artigos e cartas deixaram todos de ter qualidade para serem publicados no “Público” (mas não em outros jornais como o “Expresso” ou o “Semanário”). Ora, se isto não é um atentado à liberdade de expressão é o quê?...
Daí considerar hipócritas as acusações dos diversos jornais relativamente ao caso das “Escutas”. Também considero que existe um certo exercício de jornalismo cor-de-rosa, dado à exploração de sensações descartáveis. Em geral, considero que aquilo que os vários órgãos de Comunicação Social estão a fazer corresponde a uma absoluta falta de decoro, responsabilidade e rigor. Com estas coisas, os jornalistas vão tecendo uma “História” e uma “Verdade”, as quais não estão verdadeiramente de acordo com os factos reais.
Acuso, portanto, os diversos órgãos de Imprensa – incluindo jornais pretensamente de qualidade – de estarem a praticar um jornalismo sensacionalista, adstrito à prática do empolamento do caso das Escutas. Não estão verdadeiramente a defender a liberdade de expressão, estão a defender a liberdade de uma Imprensa irresponsável e sem rigor. Estão a defender um “jornalismo de aventuras”, romanceado, cujos conteúdos são exagerados até ao ponto em que nos pretendem fazer crer numa tentacular “teoria da conspiração”. E esse acto de praticar um jornalismo sensacionalista está a ser de tal modo exagerado que até o jornal “Sol” se permite praticar ilegalidades – legitimadas pelos jornais dos “amigos” – assim como aproveita o grande número de vendas para lançar um número extra. Mas, no entanto, jornais como o “Público” ou o “Expresso” solidarizam-se, chegando a afirmar que o direito à informação da Opinião Pública legitima a prática de ilegalidades.
Que Opinião Pública é esta que é educada por estes mesmos órgãos dos média e da Imprensa? Será a mesma Opinião Pública fisioterapêutica que é educada pelo boletim de uma “justa” Associação Portuguesa de Fisioterapeutas? Ou será que o lobbie é generalizado?
Por estas e por outras, apesar de serem fontes eventualmente pouco rigorosas, a Net, os blogues e a Fisiozone podem, muitas vezes, estar mais perto da Verdade real que aquilo que encontramos nas notícias televisivas, jornais e boletins de Associações com lobbies e favoritismos. Isto porque qualquer um pode escrever num blogue ou na Fisiozone. E esse “qualquer um”, que a Imprensa não permite, é que é a verdadeira concertação da democracia.